Quase lá: 'A existência do Judiciário não se confunde com justiça', diz Soraia Mendes, candidata ao STF

Se escolhida para vaga da ministra Rosa Weber, a jurista será a primeira mulher negra a chegar ao Supremo

Fabiana Reinholz
Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |


"Minha trajetória é a trajetória de uma advogada popular, de uma intelectual que produz conhecimento engajado", afirma a jurista - Foto: Aline Bittencourt

Ela é, como diz, "uma guria da vila". E "vila", no Sul, é o nome da favela. Negra, feminista e mãe, Soraia Mendes nasceu na vila Sepé Tiaraju, em Viamão, na Grande Porto Alegre, filha de uma empregada doméstica e de um operário. A jurista, advogada e professora é uma das mulheres cotadas na disputa por uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF), em substituição à ministra Rosa Weber, que deve se aposentar em outubro próximo. 

Em 2021, no governo Bolsonaro, 130 organizações defenderam uma cadeira para Soraia na Corte. Era, porém, uma anticandidatura, resposta da sociedade civil organizada à indicação de André Mendonça, o preferido do ex-capitão. 

"O Poder Judiciário nunca foi um lugar para a mulher, porque a mulher é construída como alguém que não deve estar na esfera pública, alguém que deve estar na esfera privada, e na esfera privada submetida ainda assim ao poder masculino". É o que pontua Soraia que, caso seja nomeada, será a primeira mulher negra a chegar ao STF.

Seu currículo é respeitável. Soma mestrado em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), doutorado em Direito, Estado e Constituição pela Universidade Nacional de Brasília (UnB) e pós-doutorado em Teorias Jurídicas Contemporâneas, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Foi também coordenadora nacional do Comitê para América Latina e o Caribe de Defesa dos Direitos das Mulheres (Cladem).

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Como advogada atuou em casos emblemáticos como os da influencer Mariana Ferrer, da atriz Dani Calabresa e de Luana Barbosa, mãe, negra, lésbica e periférica assassinada por policiais militares, além das vítimas de assédio sexual dentro da Caixa Econômica Federal (CEF), durante a gestão Pedro Guimarães. A jurista escreveu uma carta compromisso endereçada ao presidente Lula sobre o STF.

Brasil de Fato RS esteve com ela durante o debate STF: Democracia, Justiça Social e Garantismo, realizado em Porto Alegre, na Assembleia Legislativa. Na conversa, Soraia deu sua visão sobre feminismo, patriarcado, racismo, garantismo, justiça social e outros temas. E explicou o sentido da sua candidatura ao STF.

Brasil de Fato RS: Pesquisa do Conselho Nacional de Justiça indica que a magistratura tem 12% de juízes negros em toda a sua história. Segundo o CNJ, a igualdade só será atingida em 2056. Hoje, nenhum dos 11 ministros é negro. Como essa falta de representatividade afeta o judiciário? 

Soraia Mendes: A gente precisa politizar esse termo "representatividade". Por representatividade não podemos entender tão só a presença de uma mulher, ainda que seja uma mulher negra. Representatividade tem que ser entendida como um compromisso com pautas que são as estruturas maiores do próprio texto constitucional, que dizem respeito a democracia e à justiça social. Dizem respeito a todo esse sistema de garantias que foi violado por conta da Lava Jato. E não só por conta da Lava Jato, mas que vem desde o Mensalão.

Por outro lado, em termos de justiça social, significa um compromisso com os direitos dos trabalhadores e trabalhadoras e dos povos indígenas tal como a discussão do marco temporal agora está. Quando estamos falando de representatividade, primeiro precisamos dizer que ela é praticamente inexistente porque nós não conseguimos aferir, ainda que haja pessoas negras, se essas pessoas negras estão identificadas com estes compromissos. 

Se a pergunta é a respeito do número de pessoas negras, obviamente o número é muito baixo em relação a uma população que é muito maior em número. E muito baixo, aí sim, demonstrando o quanto as políticas públicas ainda não chegaram de uma forma geral ao nosso povo. E mesmo que tenham chegado, o espaço do judiciário ainda é um espaço refratário. 

Acho que se precisa colocar essas duas dimensões. Ainda na época da anticandidatura se dizia: 'Se Bolsonaro nomear será a primeira ministra negra'. E eu sempre disse: não se trata de ser uma mulher e não se trata de ser uma mulher negra, porque não basta isso. É preciso que compreendamos as estruturas que compõem esse Estado e sociedade, que são de gênero, raça e classe. É que vai nos fazer avançar.

Homens brancos e de classe média-alta ou ricos são a maioria avassaladora dos juízes, desembargadores e ministros dos tribunais superiores no Brasil. De outra parte, a maioria da população é formada por mulheres, mulheres negras e negros, e de classes econômicas inferiores. Que tipo de justiça se fará assim? 

Talvez o ideal seja não falar de justiça, falar tão somente da existência de um Poder Judiciário. A existência do Poder Judiciário não se confunde com a justiça. Justiça é justiça social, é justiça que compõe um ideário democrático de democracia substancial. 

Então, se você me diz que, agora sim, majoritariamente, o que existe ali é um pensamento cis, hétero, branco, elitista e que preserva os seus privilégios e o seu lugar desde que essas terras foram invadidas por aqueles que vieram de além-mar, aí sim estamos falando de grupos que permanecem no poder. E que não fazem justiça. Pelo contrário, mantém privilégios e que fazem com que se mantenham as situações de desigualdade. Temos o quê? Um Poder Judiciário estruturado. Mas justiça não é o cárcere lotado, não é que os direitos das mulheres trabalhadoras não sejam considerados enquanto tais, seja na própria justiça do trabalho ou mais ainda quando chegam em debates no próprio STF. É disso que precisamos falar de forma mais aprofundada. 


"Assim como o poder Judiciário entrega muito para encarcerar, não entrega praticamente nada quando se trata de concretização de direitos" / Foto: Aline Bittencourt

Porque a gente confunde justiça com justiça social, às vezes, as pessoas ficam indignadas por não verem justiça no sistema, não entendem esses meandros.

Exatamente. É porque o sistema não é justo. E também não é porque ele funcione mal. Isso é uma outra falácia. Se pararmos para refletir sobre o sistema como esse grande complexo do qual o Poder Judiciário faz parte, do qual principalmente o exercício do poder punitivo faz parte, a gente está falando de uma engrenagem que funciona bem, e muito bem. Mas para quê? Para manter as populações historicamente perseguidas pelo poder punitivo "controladas". É isso que reflete esse estado de coisas inconstitucionais do sistema carcerário superlotado por pessoas pretas e pobres. E, no caso das mulheres, por mulheres que são vítimas de violência, mães de mais de dois filhos, jovens, encarceradas pela política de drogas. 

E, por outro lado, de não garantia de direitos. Assim como o Poder Judiciário entrega muito para encarcerar, não entrega praticamente nada quando se trata de concretização de direitos. Isso faz com que a gente verifique que o Poder Judiciário funciona mal? Não, ele funciona bem para os fins que esse grupo quer, os fins que o sistema está apresentando. 

Voltando à questão do STF, em que medida a política de cotas ajudaria a Justiça a fazer uma justiça melhor? 

Sou favorável à política de cotas em todos os sentidos e em todos os âmbitos. Não tenho dúvida de que a política de cotas traz a possibilidade de que tenhamos cada vez mais presença de corpos que nunca estiveram presentes ou que nunca sequer foram aceitos em determinados lugares. Isso é fundamental. É importante que tenhamos as políticas de cotas e, muito especialmente, as políticas de cotas no sistema educacional, nos concursos públicos, para os fins de ingresso cada vez maior de pessoas negras. 

Mas precisamos, no campo do STF, fazer uma discussão diferenciada a respeito do que significa isso como representatividade. Como representatividade vinculada a um compromisso de gênero, raça e classe, que não é só racial para voltar a dizer que não basta ser mulher, não basta ser mulher negra, é preciso compromisso. 

Chama a atenção que, em 132 anos de STF, só três mulheres ocuparam aquele espaço.

Nossa perspectiva atual demanda a conciliação desses três aspectos: gênero, raça e classe. Vemos que isso é em decorrência da sociedade patriarcal. O Poder Judiciário nunca foi um lugar para a mulher. A mulher é construída como alguém que não deve estar na esfera pública, alguém que deve estar na esfera privada, e na esfera privada submetida ainda assim ao poder masculino. 

O patriarcado explica isso. Agora, posso problematizar um pouquinho mais? É importante dizer que temos ao longo da história três mulheres, três mulheres brancas, e três mulheres vindas das instituições do sistema de justiça. Tivemos duas magistradas, uma atual ainda, a ministra Rosa Weber, a ministra Ellen Gracie, duas magistradas, e a ministra Carmem Lúcia como procuradora. A visão que estas mulheres têm - com o devido destaque à ministra Rosa Weber, porque vem das fileiras da Justiça do Trabalho e de uma Justiça do Trabalho comprometida com a justiça social - as demais mostram uma perspectiva desconectada com aquela que compõe uma trajetória vinda da advocacia. Não é à toa que se fala tanto 'É preciso nomear um advogado, um advogado garantista'. Isso também tem que valer para as advogadas. 

É chegada a hora de que não tenhamos mais pessoas que vêm com a visão do Estado, seja da advocacia pública, seja da magistratura, e muito menos do ministério público. Mas que venham aquelas mulheres - e é por isso que construímos essa candidatura que vem de uma advocacia direcionada para compromissos de defesa da ordem jurídica e dos direitos humanos e que, claro, tenham uma base na advocacia popular.

Isso faz com que o olhar seja diferenciado no momento de decidir. Basta que se tenha em mãos os últimos três anuários da Justiça e que se analise de que forma decidiram agora especialmente a ministra Rosa Weber e a ministra Carmem Lúcia para vermos o quanto a instituição pesa. Precisamos de gente da advocacia no STF. Está na hora de chegar uma advogada no STF. 

Recentemente terminou aqui no estado a Conferência Estadual dos Direitos Humanos onde foi pontuada a questão do acesso à Justiça.

Temos de internalizar que temos direito ao acesso a uma Justiça que seja verdadeiramente justiça. Que não seja o (acesso ao) Poder Judiciário. Uma coisa é você bater à porta do Poder Judiciário e ter uma resposta que seja uma resposta que resolveu o processo, mas não resolveu o conflito. Isso não é acesso à justiça. É acesso ao Judiciário. É cumprir meta. O Judiciário não pode estar direcionado tão somente ao cumprimento de metas. Precisa funcionar de acordo com o ideário de realização de justiça. 

Porque digo isso? Porque sou uma advogada que trabalha na defesa de vítimas de violência. Quando as mulheres batem à porta do sistema de justiça, normalmente não recebem a justiça que procuram. Vou dar um exemplo: uma mulher, vítima de violência doméstica e familiar, vai até o Juizado de violência doméstica e familiar, e eventualmente consegue uma medida protetiva de afastamento daquele agressor do lar. Pois bem, nesse mesmo tempo, o Poder Judiciário na área de família, concede uma guarda compartilhada, que determina que eles (o casal) devam ter um relacionamento nem que seja para a entrega e o recebimento daquela criança nos dias adequados. Isso é anacrônico. 

Quando uma mulher bate à porta de um juizado de violência doméstica e familiar e o Juizado reconhece que existe uma situação de violência, que aquele homem tem de estar afastado dela, não pode, de outro lado, esse mesmo Poder Judiciário dizer que ela é obrigada a encontrar com aquele homem para entregar a ele o filho. Existe aqui o absurdo de pensar que seja do melhor interesse da criança conviver com um pai agressor. Precisamos problematizar isso. Essas áreas simplesmente não se conectam.

Nesse sentido tem a questão da alienação parental.

A lei de alienação parental é um instrumento jurídico a serviço da manutenção do patriarcado, a serviço da manutenção de um estereótipo de mulher manipuladora, enlouquecida, capaz de fazer o que quer que seja, inclusive induzir o próprio filho, a própria filha, para os fins de causar alguma espécie de dano aquele homem. Isso é histórico. Escrevo isso no meu livro Criminologia Feminista. Isso é secular. Olhar para a mulher e dizer: 'Esta mulher tem o mal em si, é má'. A mulher, num contexto medieval, ela é pecadora. Então ela é má, é mentirosa, é maliciosa. 

Quando estamos em pleno século 21 com uma lei que dá a possibilidade de fazer uma análise subjetivista em relação à mulher, e que chega a esses mesmos resultados, estamos reificando aquilo que existe desde a Idade Média. A lei de alienação parental institucionaliza uma violência contra as mulheres e é um tema sobre o qual o STF ainda precisa se manifestar. O Brasil preserva o anacronismo científico porque não há cientificidade nessa lei. É um anacronismo total.  

Estamos falando da questão de raça e estamos em estado que é um dos mais racistas do país. Falamos do Judiciário e não se tem como não falar do racismo estrutural.

Quando repito reiteradamente gênero, raça e classe, é para dizer que temos essas três estruturas. A estrutura da desigualdade que impera no sistema capitalista e cada vez mais se agudiza com as diversas fases do neoliberalismo. Assim como o racismo estrutural que se deu a partir do processo de escravização de homens e mulheres negras vindos da África. E, por fim, do patriarcado. Todas essas dimensões não são somente faces. São estruturas que determinam os lugares em que cada um de nós está dentro do próprio sistema capitalista. Raça e classe e gênero estão todas embrenhadas para construção de uma perspectiva de não-vida para maior parte da população, e de privilégios para alguns. 


"Não tenho dúvida de que a política de cotas traz a possibilidade de que tenhamos cada vez mais presença de corpos que nunca estiveram presentes" / Foto: Fabiana Reinholz

Então é isso, raça é estrutura. Quando o professor Sílvio Almeida [ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania] fala em racismo estrutural, está dizendo isso. É uma perspectiva profundamente marxista. Existem estruturas, o patriarcado é uma estrutura, porque ele nos coloca como mulheres em condição de subalternidade. Ele nos coloca em condição de subalternidade ao ponto de estarmos falando aqui que, ao longo de mais de um século, só três mulheres que tenham chegado ao STF. É decorrência da estrutura patriarcal. Aquele não é um lugar para nós. O patriarcado nos exclui daquele lugar. 

E por fim, óbvio, o sistema de exclusão econômica. Essas três dimensões precisam ser compreendidas para tudo aquilo que vai ser pensado, em termos de políticas públicas, pelo Poder Executivo, em termos de legislação elaborada pelo legislativo, mas também daquilo que vai ser decidido no Poder Judiciário. 

Tem uma carta aberta publicada no ano passado pelo Brasil de Fato, onde você se declara uma intelectual dedicada às ciências criminais sob uma perspectiva crítica feminista. Como isso influi nas suas decisões? 

Adorei essa pergunta. O senso vulgar de conhecimento demonizou o feminismo. E demonizou o feminismo, claro, primeiro porque primeiro demonizou as mulheres de uma forma geral. Somos consideradas maldosas, maliciosas, mentirosas, loucas, tudo isso. Mas, quanto ao feminismo, enquanto movimento social de reivindicação de direitos, a demonização vem porque o avanço dos direitos das mulheres faz com que os homens também tenham que ceder lugar, ceder poder. 

Para que você sente na cadeira alguém tem que levantar. E eles sabem que precisam levantar. E sabem que o feminismo faz isso enquanto movimento social. Então, o feminismo acabou sendo demonizado para que se diga isso: as feministas são radicais, não toleram nada, querem subjugar os homens, querem um mundo só de mulheres, querem mandar nos homens. O que é um absurdo porque o projeto feminista é um projeto de compartilhamento de poder. 

 

Os homens podem ficar tranquilos. Não queremos fazer com eles o que eles já fizeram conosco

 

Os homens podem ficar tranquilos. Não queremos fazer com eles o que eles já fizeram conosco. Não queremos trancá-los em casa, não queremos interná-los em manicômios dizendo que são doentes mentais, loucos por conta dos seus hormônios. Não queremos que eles ganhem menos do que nós. Não é nada disso, queremos partilhar o poder. E partilhar o poder é transformar também o mundo em um mundo possível de viver para todas e todos e todes nós com mais felicidade porque os homens também vão ser mais felizes se se libertarem desses estereótipos de gênero. 

 

O feminismo, ao mesmo tempo que vai à rua com cartaz, é uma teoria crítica

 

Dito isso, respondendo a tua pergunta, o feminismo ao mesmo tempo que é um movimento social que vai à rua, que leva cartaz, que diz que quem ama não mata, que diz eu não mereço ser estuprada, que faz essas reivindicações, também é, sob a perspectiva teórica, uma teoria crítica. Significa dizer que aquilo que nós produzimos como conhecimento é um conhecimento que coloca luz onde estão os poderes opressores. Isso é profundamente marxista também. Estamos colocando luz sobre os poderes opressores para que possamos apresentar alternativas. O feminismo é uma teoria crítica transformadora. Como isso influencia nas minhas decisões? Influencia na medida em que a realização do texto constitucional transforma vidas. 

Se digo - e agora não preciso escolher um tema relacionado as mulheres - que o marco temporal indígena é inconstitucional, estou dizendo sob uma perspectiva teórica crítica. E isso não deixa de também ser um aspecto do feminismo na medida em que estou mostrando que aquilo ali não reflete o ideário do texto constitucional. 

Se produzo conhecimento, preciso produzir conhecimento que seja transformador da realidade. Ser uma feminista, uma teórica crítica no campo das ciências criminais, significa demonstrar esse processo de criminalização das mulheres que se dá a partir da política de drogas, significa falar a respeito da vitimização das mulheres em relação aos crimes sexuais, da forma como somos tratadas pelo sistema de Justiça Criminal, como é o caso da Mariana Ferrer (que foi estuprada e, apesar disso, humilhada durante audiência judicial).

Há outros nomes de mulheres negras indicadas ao STF. Foi um movimento articulado entre vocês? 

Não houve articulação. Para mim foi uma certa surpresa essa profusão de nomes e a forma como foram apresentados. De nossa parte fizemos uma discussão aprofundada e politicamente centrada a respeito do que deveria ser feito nesse momento específico. Fizemos um debate sobre os anúncios que o presidente Lula fez a respeito da possível indicação do colega advogado Cristiano Zanin. E nossa campanha - falo 'nossa' porque é um coletivo - compreende a total legitimidade do presidente na indicação de Cristiano Zanin. Não vejo nenhum desvio ético nisso. Sou alguém que vem de uma advocacia que defende pessoas que lutam por direitos. Sou advogada de sem-terra que foi preso, fui advogada de lutador pela moradia que foi preso. 

Sei o que é andar ao lado de alguém que, por lutar por direitos sendo inocente, é considerado criminoso. E o Cristiano Zanin andou 580 dias do lado de alguém que foi considerado o maior criminoso desse país. Não é pouca coisa e precisa ser respeitado. O presidente Lula saiu da prisão com o gigantismo que ele tem, mas ninguém sai da prisão incólume. A prisão deixa marcas muito profundas e, portanto, a decisão dele precisa ser respeitada. 

Por isso colocamos o meu nome à disposição para a vaga de outubro. Entendemos que não era o momento de traçar esse antagonismo. Mas que poderíamos fazer o que estamos fazendo a partir dessa arrancada do Rio Grande do Sul com essas tantas agendas com as bancadas progressistas, com os movimentos sociais, com lideranças nacionais.

Da nossa parte - e falo eu, Soraia Mendes - qualquer construção precisa ser coletiva e pensada politicamente entendendo-se que a política não é o que eu desejo, mas é o que é possível. 

Agora me chamou atenção alguma coisa pessoal. Tens no pulso uma oyá.

Sou filha de Oyá. Então, tenho Eparrê num braço e Oyá no outro, minha mãe. Talvez a gente deva falar mais sobre tolerância religiosa. Sou alguém que teve de parte de pai uma família evangélica da Assembleia de Deus e de parte de mãe uma família umbandista. Nunca vi na minha casa nenhuma discussão sobre religião porque todos e todas se respeitavam. Cresci com os valores e com os ensinamentos que aprendi das cristãs e dos cristãos na igreja evangélica. E cresci também sendo defumada e benzida pelo Preto Velho. Isso me fez ser uma pessoa de muita fé. Acredito profundamente nos meus Orixás. Tomei a minha própria decisão mas que rechaça totalmente a utilização da igreja como instrumento de dominação política e de guerra cultural. Tolerância religiosa e laicidade do estado são fundamentais. 

Fale um pouco da sua trajetória jurídica. 

A perspectiva que tenho do direito é fundada na interseccionalidade de gênero, raça e classe. Vem de uma construção teórica, vem daquilo que eu estudei. Sou mestra em ciência política, doutora em direito, Estado e Constituição e pós-doutora em teorias jurídicas contemporâneas. Mas vem de algo que me compõe como sujeito. Sou filha de uma empregada doméstica, sou filha de um operário de fábrica, sindicalista, fundador da Central Única dos Trabalhadores, trabalhador de chão de fábrica, sobrinha-neta de preso político.

Tenho como referência o fato de vir de uma família brizolista, desse lugar da resistência, desse lugar que lega tantas outras vertentes. Sou, como dizemos aqui, uma guria da vila. No Rio Grande do Sul, vila é a favela, vila é a comunidade, vila é a periferia. Então, sou uma guria da favela, de uma família que sempre lutou por direitos. Com as dificuldades agregadas pelo fato de sermos uma família negra. 

Quando falo que a minha perspectiva é uma perspectiva de gênero, raça e classe, estou falando daquilo que concebo teoricamente, ideologicamente, como perspectiva de Estado e de sociedade. Mas é aquilo que eu vivi. 

Eu sei o que é viver na favela, o que é ver o pai chegar em casa com o corpo queimado. Meu pai era operador de caldeira, vivia na frente de uma caldeira na fábrica e por 25 anos  trabalhou assim. Tem o corpo marcado pelas queimaduras. 

Sei o que é sair pela manhã na chuva e afundar o pé inteiro na lama. É algo que não me envergonha. Pelo contrário, me fez ser quem eu sou. E de ter a maior tranquilidade de dizer para quem quer que seja que eu sei qual é o meu lugar, qual é a minha posição de classe. Isso faz com que eu não tenha dificuldade alguma de me posicionar. Também não é algo que possa ser considerado estranho. Primeiro, porque estudei o suficiente para poder dizer que isso é o que a Constituição diz. De defesa de direitos sociais é isso. Só que eu também vivi e, como vivi, sei que quero um outro mundo para quem ainda está nesse lugar onde eu já estive.

Eu não sou cria das cotas porque a minha geração, infelizmente, foi uma geração em que faltava professor. É bom que se lembre para as gerações mais jovens que tivemos um presidente da república que era um professor e sucateou a universidade pública. E que essa universidade pública, passa a ser o que é quando chega um operário à presidência. 

Fiz faculdade, mestrado, doutorado e pós-doutorado na universidade pública. Eu sou uma devedora do povo brasileiro, porque cada um e cada uma de nós que sentou ou que senta num banco da universidade pública, tem que saber que aquele banco é pago pelo suor do povo brasileiro. 

Minha trajetória é a trajetória de uma advogada popular, de uma intelectual que produz conhecimento engajado. Que entende que a perspectiva de direito com a qual a gente precisa trabalhar é uma perspectiva de direito que nasce na esfera pública. Que nasce das reivindicações que os movimentos sociais fazem e isso se chama garantismo social. É alguém que chega se dizendo não somente uma mulher negra, mas uma mulher negra que tem perspectiva de gênero, de raça e de classe, e que chega como alguém que quer servir ao povo brasileiro. 

Uma mensagem final? 

Espero que mais pessoas venham a agregar ao nosso projeto. Um projeto de debates sobre acesso à Justiça, sobre o Poder Judiciário, sobre a justiça social, sobre a democracia. Fazer política não é fazer política partidária. Fazer política no sentido de um debate aberto e democrático. Com amor ao povo brasileiro, à humanidade, ao meio ambiente tão atacado, aos povos indígenas, ao povo negro. E vou me arriscar aqui a terminar dizendo agreguem-se ao nosso projeto, engrossem essas fileiras, para que a gente chegue em outubro com legitimidade suficiente e sem medo de ser feliz. 

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Ayrton Centeno


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