Quase lá: Estratégia do Cfemea prioriza fortalecimento das lutas e a autonomia econômica das mulheres nos territórios

Territórios de Cuidado, Luta e Sustentação da Vida, a marca da ousadia do Cfemea. Feministas querem buscar uma nova metodologia de criação de empresas coletivas que incorporem a economia (produção e geração de renda) com os cuidados (reprodução) para retirar mulheres de terrítórios periféricos da miséria

 

oficina dez23Integrantes do Cfemea, Coletivo de Mulheres do Calafate (Salvador, Bahia), Movimento de Mulheres Cuidando e Mobilizando Territórios (Rio de Janeiro, capital) e do MECE – Movimento de Educação e Cultura da Estrutural (Brasília, Distrito Federal) em oficina preparatória do projeto, em dezembro de 2023. 

 

Territórios de Cuidado, Luta e Sustentação da Vida é uma estratégia feminista antirracista para enfrentar a dura realidade que as mulheres vivem nas periferias do nosso país. O  Cfemea, consolidou sua parceria com o Coletivo de Mulheres do Calafate (Salvador, Bahia), com o Movimento de Mulheres Cuidando e Mobilizando Territórios (Rio de Janeiro, capital), e com o MECE – Movimento de Educação e Cultura da Estrutural (Brasília, Distrito Federal), e todas assumiram o desafio de construir alternativas a partir dos próprios territórios, onde esses coletivos estão radicados, vivos, gerando possibilidades de co-criação de alternativas vigorosas para a sustentação da vida nas comunidades a que pertencem, assim como de fortalecer a luta por direitos e políticas públicas.

O conjunto de iniciativas e estratégias que se organizam desde o final do ano passado sob a forma dos Territórios de Cuidado, Luta e Sustentação da Vida se inspira em outras experiências nacionais e internacionais que aliam a luta por transformações ecossociais à geração de renda com redes de solidariedade e processos de cuidado coletivo e autocuidado, tais como a experiência do Território Doméstico (Espanha), dos territórios agroecológicos protegidos e sustentados por mulheres dos movimentos campesinos brasileiros e a rede de Tecelãs do Cuidado. Assim como essas, a estratégia proposta pelo Cfemea objetiva superar a desassociação entre trabalhos produtivo e reprodutivo para viabilizar novas formas de convivência e compartilhamento do trabalho e do cuidado que sustentem a vida, gerem renda e aliviem a desigual e injusta carga de trabalho imposta às mulheres nas periferias, quase sempre negras. Afinal, a sobrecarga de afazeres domésticos, cuidados familiares e comunitários não só as onera severamente como é um dos fatores que lhes impede superar a condição de pobreza nos territórios em que vivem, tão marcados pelo racismo ambiental.

“Queremos potencializar as capacidades das sujeitas de tecer, com vários fios, redes que sustentem a vida e ampliem horizontes no sentido do Bem Viver, ultrapassando as fronteiras que confinam as mulheres em espaços de privação material, intelectual e afetiva”, destaca Guacira Oliveira, diretora colegiada do Cfemea.

encontro rj out23Encontro entre Cfemea e Movimento de Mulheres Cuidando e Mobilizando Território em novembro de 2023, na sede da ONG Criola, no Rio de Janeiro. 

 

É preciso romper com a lógica patriarcal que aprisiona as mulheres na miséria

O Cfemea, há mais de uma década, tem conseguido criar experiências de autocuidado e cuidado entre ativistas, desenvolvendo metodologias e técnicas como parte de uma estratégia feminista e antirracista de proteção e fortalecimento das lutas das mulheres, um caminho para lidar com as emergências, sem renunciar às batalhas e responsabilidades das mulheres pela transformação ecossocial e superação do patriarcado. A partir de 2015, a estratégia passou a compor as linhas institucionais e políticas de ação do Cfemea, orientada à sustentabilidade do ativismo feminista e das mulheres.

Nesse longo tempo, todas as ativistas e feministas envolvidas aprenderam muito. A estratégia do cuidado coletivo e autocuidado entre ativistas se alastrou e foi incorporada por um significativo conjunto de movimentos sociais e populares, dentro da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) e também no Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores Sem Terra (MST), junto a coletivos articulados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), na Confederação Nacional dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag), na Marcha das Margaridas e na Marcha das Mulheres Indígenas.

Durante os difíceis anos da pandemia da Covid19, as estratégias de cuidado coletivo e autocuidado foram essenciais para a sobrevivência de muitas ativistas, que foram jogadas para além dos limites de suas capacidades de resiliência física e mental. Os depoimentos das participantes das Rodas de Cuidado refletem essa realidade. Afinal, “a gente precisa se ter, para poder se dar”, como ressaltou Gabriela Fidelis, ativista da AMB e integrante da equipe do CFEMEA. 

A importância da proteção das ativistas e do fortalecimento de suas organizações para a luta e a sustentação da vida emerge justamente a partir do reconhecimento, na prática e na vida, das múltiplas formas de dominação e exploração das mulheres, na sua grande maioria negras, que vivem nas periferias urbanas e rurais, violentas e empobrecidas, e também das indígenas nas lutas pela retomada dos territórios dos povos originários.

Essas ações já vêm sendo reconhecidas em diferentes contextos, não apenas por ativistas e beneficiárias das atividades de cuidado promovidas pelo Cfemea, mas também por outras organizações e ativistas parceiras. Sueli Carneiro, fundadora do Geledés – Instituto da Mulher Negra, de São Paulo, ressaltou a importância do autocuidado e do cuidado coletivo para a luta das mulheres. "É um salto qualitativo que nós estamos dando com relação ás nossas práticas no sentido do reconhecimento das sequelas e agravos que essa militância pode provocar e provoca, por ausência de autocuidado, por ausência de uma rede, de uma sororidade", declarou Sueli Carneiro no livro "Cuidado entre Ativistas. Tecendo Redes para a Resistência Feminista", organizado por Guacira Oliveira e Jelena Dordevic.

citacao sueli livro guaGuacira Oliveira e Jelena Dordevic. Cuidado entre Ativistas. Tecendo Redes para a Resistência Feminista. Brasília: Cfemea, 2015. p. 33

 

Protagonismo das mulheres

Nos territórios em que o Cfemea atua em parceria com outras entidades, as mulheres assumem, na maioria das vezes sozinhas, as tarefas e responsabilidades de cuidado de toda a família, filh@s, agregad@s, idos@s, até de pessoas da vizinhança que estejam em situação mais vulnerável e precária. Quando têm, dividem a renda conquistada de programas de transferência de renda, como Bolsa Família, e dos Benefícios de Prestação Continuada. Muitas, porém, sequer conseguem ter acesso a esses programas ou à Previdência Social, e são ainda mais marginalizadas e invisibilizadas.

No entanto, essas mulheres nunca deixam de buscar formas de sobrevivência, sempre em trabalhos precários, insalubres, muitas vezes humilhantes, e sem qualquer garantia de que poderão obter os recursos necessários ao seu sustento nos dias seguintes. Trabalham pela manhã para garantir o jantar do mesmo dia. É grande o número delas que iniciaram empreendimentos individuais e fracassaram uma, duas e várias vezes. Cada fracasso lhes é imputado como culpa individual e acaba provocando ainda mais malefícios e dívidas.

Para o filósofo Vladimir Safatle, essa ideologia do empreendedorismo não contribui para a luta, pelo contrário. No caso das mulheres, especialmente mulheres negras, a lógica empreendedora resulta, muitas vezes, em um fator a mais de violência social. Conforme ressalta Safatle no livro “Alfabeto das Colisões – Filosofia Prática em Modo Crônico”, o empreendedorismo “não é apenas uma forma de ação econômica. Ele é uma forma de violência social, pois pressupõe organizar relações a partir da generalização da lógica da concorrência, da redução instrumental dos objetos à condição de ‘capitais’, da redução da ação à dinâmica de produção do valor”. Contra isso, os Territórios de Cuidado, Luta e Sustentação da Vida buscam gerar alternativas estimulando a solidariedade, fortalecendo os vínculos comunitários,  construindo de redes de apoio e cuidado mútuo, e lutando pelo Bem Viver.

citacao livro safatleVladimir Safatle. Alfabeto das Colisões - Filosofia Prática em Modo Crônico. São Paulo: Ubu Editora, 2024. 

 

Por exemplo, é recorrente o drama que muitas mulheres enfrentam quando conseguem algum trabalho fora de seus territórios e têm que deixar as crianças e idosos aos cuidados de outras pessoas, quando há essa opção. Muitas vezes, a tarefa de cuidar dos filhos pequenos é contratada de outras mulheres que são ainda mais exploradas e precarizadas. Além disso, a existência de filhos pequenos, a distância da moradia e outras situações sociais que envolvem a residência das mulheres (território violento, por exemplo) aumentam as dificuldades de acesso a empregos.

O desafio de romper com esse círculo de opressão e exploração está presente em quase todo o planeta, mas não há modelos consolidados e testados que possam ser utilizados como uma receita para romper com essa situação. Em geral as políticas públicas de geração de renda e programas sociais, promovidos por governos nacionais e organismos internacionais, são feitas para homens ou desconhecem os cuidados exercidos pelas mulheres, dessa forma terminam por reforçar as estruturas patriarcais e reproduzem as velhas formas de divisão sexual e racial do trabalho.

visita rj jan24Visita de ativistas do Cfemea ao território do Movimento de Mulheres Cuidando e Mobilizando Territórios (Rio de Janeiro, capital), em janeiro de 2024 

 

Buscar referências históricas e a experiência de movimentos sociais

A inexistência de modelos mostrou ao Cfemea e às organizações parceiras que seria necessário construir algo novo, pautado na economia feminista, diferente do tradicional, mesmo que alicerçado na experiência histórica dos movimentos sociais e das políticas públicas criadas com objetivo de reduzir as desigualdades sociais por meio da geração de emprego e renda e do combate da miséria e da fome.

Partindo da experiência das Ligas Camponesas no final dos anos 1950 e nos anos iniciais da década de 1960, Clodomir Santos de Morais, jornalista, advogado, sociólogo, professor, deputado estadual (Pernambuco) e consultor em desenvolvimento agrário da Organização das Nações Unidas (ONU), desenvolveu um método de capacitação massiva para a geração de empresas associativas e cooperativas. Após aplicar e desenvolver esse método com bastante sucesso nos anos de seu exílio em mais de 30 países na América Central, na África e na Ásia, em finais da década de 1980, ele retornou ao Brasil e, na Universidade de Brasília, cria o Instituto de Apoio Técnico aos Países do Terceiro Mundo (IATTERMUND). A partir dessa base, organizou mais de 300 ações derivadas dessa metodologia em experimentos denominados Laboratórios Organizacionais de Terreno (LOT), que hoje é inspiração para os Território de Cuidado, Luta e Sustentação da Vida.

Os Laboratórios Organizacionais são “um ensaio prático e real no qual se busca introduzir a consciência organizativa que necessita para atuar em forma de empresa ou ação organizada. A consciência organizativa é introduzida no grupo social por intermédio de uma aceleração preconcebida da práxis de organização através da análise teórico-prática dos fenômenos quer sejam os que dão forma ou os que buscam desintegrar o todo orgânico programado, ou seja a empresa” (SANTOS DE MORAIS. Clodomir. Elementos sobre a Teoria da Organização. Brasília/DF: Ed. IATTERMUND, 1986. p. 40).

Algo semelhante também foi implementado no processo de formação da Superintendência do Desenvolvimento do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), quando de sua criação em 1959, período em que Celso Furtado organizou e propôs a capacitação da primeira equipe técnica da autarquia. Os primeiros quadros da Sudene passaram por um curso intensivo chamado Técnico de Desenvolvimento Econômico, uma experiência que também pretendemos incorporar ao arsenal de métodos e técnicas de formação que aplicaremos por meio da Universidade Livre Feminista Antirracista.

A experiência dos Laboratórios Organizacionais foi absorvida pelo Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores sem Terra (MST) e constituiu a base de todo o processo que gerou e sustentou os sistemas produtivos e de comercialização (cooperativas) e os processos formativos do MST. Além do MST, essa metodologia foi aplicada com bastante sucesso em programas governamentais de geração de emprego e renda nas décadas entre 1990 e 2010.

O que o Cfemea está construindo atualmente é um passo seguinte desse método e dessa experiência histórica, incorporando as reflexões e vivências da economia feminista e da estratégia de cuidado coletivo e autocuidado entre ativistas. O desafio é construir uma experiência viva que reúna em um mesmo processo soluções coletivas de empreendimentos que tenham em si as dimensões produtivas (produção, serviços) e reprodutivas (cuidados), servindo como sustentação das mulheres nos territórios e de nossas lutas.

 

Oficina preparatória

Momento de trocas durante oficina preparatória do projeto, ocorrida em dezembro de 2023, em Brasília.

Integrantes do Cfemea, do Coletivo de Mulheres do Calafate (Salvador, BA) do MECE (Brasília, DF) e do Movimento de Mulheres Cuidando e Mobilizando Territórios (Rio de Janeiro, RJ) estiveram reunidas em dezembro de 2023 para dialogar e intercambiar suas experiências comunitárias, identificar pontos de convergência, assim como especificidades de cada entidade, a fim de fortalecer os vínculos e os sentidos e construção coletiva dos projeto.

Para Flávia Concécio, do Movimento de Mulheres Cuidando e Mobilizando Territórios (RJ), a estratégia dos Territórios de Cuidado, Luta e Sustentação da Vida vai contribuir com a luta que as mulheres vêm construindo há tempos. “Para nós, esse primeiro encontro foi muito valioso. Estamos aprendendo a cada dia umas com as outras. O Cfemea sempre valoriza a história das mulheres se articularem. Nós nos sentimos acolhidas, é um projeto que tem tudo para durar muito tempo”, destacou.

Mariza Leni, integrante do MECE (DF), ressalta que acredita muito na proposta do autocuidado como uma ferramenta de luta. "A pessoa que sou hoje está pronta para luta; porque agora, com o autocuidado, eu tenho mais força, mais conhecimento, mais disposição para enfrentar a luta", relatou Mariza. Para ela, o encontro foi um primeiro passo fundamental para o futuro: "muitas coisas boas virão daqui [do encontro]", projetou.

Próximos passos

A oficina de 2023 foi a sequência de uma série de encontros, reflexões e debates que se processaram com as mulheres e suas organizações nos meses anteriores. Os acordos e propostas dos dias de trabalho imersivo e intenso iniciaram um processo que segue em 2024 em várias etapas.

Agora, no primeiro semestre de 2024, está sendo desenvolvida uma formação com todos os territórios e o Cfemea, utilizando os espaços virtuais da Universidade Livre Feminista Antirracista (ULFA), articulando processos virtuais e presenciais com imersões que buscam crias as bases para a organização, ainda em 2024, do primeiro Laboratório Organizacional Feminista em Brasília. Durante esse período, o Cfemea e os coletivos estarão também dialogando com organismos governamentais e parceiras na sociedade civil e especialistas, verificando pontos de ligação e proximidade com políticas públicas em processo de criação e buscando apoios financeiros, logísticos e técnicos para a realização dos Laboratórios.

A iniciativa não encontra na legislação atual uma referência tranquila para sua existência. Não existe a figura de uma empresa social nos moldes que está sendo criada que seja reconhecida e amparada. É preciso dialogar muito com governos e com o Congresso Nacional para superar as limitações legais ainda existentes. Ao mesmo tempo, os mesmos diálogos precisam ser implementados e desenvolvidos com municípios, estados e organismos federais, além de organismos de fomento, brasileiros e internacionais, para se criar linhas de crédito que possam amparar os passos iniciais dos empreendimentos que estão em construção. Afinal, a proposta dos Territórios de Cuidado, Luta e Sustentação da Vida é algo que o Cfemea sonha que esteja presente em todo o país e, quem sabe, até além de nossas fronteiras, fazendo parte do diálogo que a Universidade Livre Feminista Antirracista está implementando com nossas parceiras na Comunidade de Países de Língua Portuguesa.

 

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Território poético de lutas, cuidado e sustentação da vida

Uma carta para o março das lutas das mulheres

Por Gabriela Fidelis*

Em águas de março. Hoje, 17 de março de 2024 fui acordada pelos meus ancestrais. A hora do dia já estava do sol do meio da manhã e o tempo marcava o agora. Levanta, hoje é nosso dia!

Nos espaços dos dias conhecidos como final de semana, o domingo vem com sol forte e brilhante, um calor arretado. O corpo fica meio mole e lento para processar o dia e se dar o direito de ir devagar para degustar as horas, os espaços, o dia. Mas, hoje é aquele dia da velocidade da paciência. E o que seria isso?

Foram tempos e tempos olhando para o mesmo lugar e vendo tudo sufocado, amontoado, sem luminosidade e desordenado. Tudo crescendo, se esparramando com as chuvas, águas de marés altas, natureza e vida que segue acontecendo. Contudo, precisava de cuidado. Tudo era bonito e estava bem, mas precisava de cuidado. A certeza racional estava presente, há tempos que aquele lugar precisava de cuidado. E tudo era bonito e estava bem. Parado!

O corpo ao se levantar, agradecer e se alimentar já sabia o que tinha que fazer: atender ao chamado. Foi rápido e tudo já começou a acontecer, tudo que se precisa estava ali à disposição da vontade de realização. O tempo, o caminho e o chão-território pedem passagem. Movimento!

Com as ferramentas em mãos, a conversa não parava de acontecer na cabeça. Gente, eu não posso fazer isso hoje. Organizei as atividades da casa ontem, de limpeza, abastecimento de alimentos, aquele rodejão de feira e mercado para hoje, domingo pela manhã concentrar e estar em paz para fazer diversas leituras, tempo para lazer, prazer e escritas afetivas. Eu preciso escrever. Escrever? Qual sua necessidade? Qual seu limite? Tudo sufocado, amontoado, sem luminosidade e desordenado. Tudo crescendo, se esparramando com as chuvas, águas de março, natureza e vida que seguem acontecendo. Chegou tempo e precisa de cuidado.

E aquele que é certeiro me acertou, o caçador respondeu. E aquele, o vencedor das guerras e demandas me indagou, vai soltar suas ferramentas? Como vais vencer a guerra? O corpo tremeu. E aquele, dono das plantas e da cura, avisou; lembre de cuidar de quem está pedindo para nascer e já nascendo. E as mais velhas estão reclamando do descaso, querem mudanças, nova terra e lugar. Onde você habita? Eu sei que de onde você vem têm te sacudido os dias com memórias, recontando histórias e te buscando. É não podemos esquecer do lugar em que se nasce, onde enterraram o umbigo, onde o vento soprou dentro do corpo e colocou esse vento-vida, corpo no mundo, a te levar. Quer curar agora para abrir e movimentar caminho? Pensando novamente: Eita que sol da lasqueira, calor medonho. E eu vou aguentar? Meus ancestrais me responderam: Você está pronta! Lembra da paciência? É isso, foi o tempo passando, seu olhar, sua consciência, vontade de transformar. Vontade de encontro ancestral e chegamos nesse hoje, é dia de cuidar.

E tudo já estava ali acontecendo e se transformando. Caminhos guiados e nem precisa pensar muito para realizar. O tempo foi se abrindo ao meio e nesse espaço estava o chão firme para apoiar os pés, teve o respiro do vento que circulou por baixo das espadas e encheu os pulmões. Nesse momento dos cortes e de arrancar pela raiz os excessos, os olhos viram as miudezas belas, esverdeadas e macias como veludo vindo da terra. O ar soltou dos pulmões, expirou a vida para nascer. É preciso coragem para romper a camuflagem do belo e do tudo bem comum, “dessufocar” o cotidiano que sempre diz que é de hoje para amanhã e nunca hoje para agora, vida e não apenas mundo!

O mundo precisa caber na vida que nasce, respira e precisa de tempo, espaço e cuidado para si e para viver entre nós, coletividade respirante. Os lugares foram nascendo, foram suor e lágrimas, sorrisos para a satisfação de conseguir escolher e dizer sim sem estar para morrer, sem ter uma circunstância voraz a empurrar para ação reativa. Não! É difícil dizer não e difícil dizer sim. Hoje foi um não para o tempo de moer gente, sonhos e coragens e sim para o tempo conectado com a vida, o corpo e seu ritmo natural.

Corpo território de cuidado ancestral. Cuidado antes de tudo que você possa pensar e sentir, é ancestral. O cuidado nutre cada corpo para sustentar a si e aos seus mais velhos, seus mais novos e aos seus iguais, em comunidade. O cuidado coletivo armazena a força para mover as estruturas das visões de mundos, necessárias para enxergar o nascer e o morrer como ciclos da vida. Existir e viver para deslumbrar a construção do agora presente, respirando e honrando os ancestrais. Batendo cabeça, como se diz: Kolofé.

São novos espaços a nascer. Territórios de cuidado, luta e sustentação da vida. A porta sempre esteve ali, a resistência também, o caminho que é a própria vida sempre existiu e a sobrevivência também, as ferramentas são diversas e permanecem em nossas mãos. Porque assim, nossos ancestrais existiram e hoje permanecem dentro de nós dizendo: levanta hoje é nosso dia!

As mais velhas descansam e gozam a vida por novas terras. E tem um ar fresco que são as mais novas respirando juntas para crescer. As mais novas nos dizem: esse território constrói minha identidade. Olhando para aquelas que mudaram de lugar e são sempre faróis pelos caminhos nossos. Harmonizou-se o dia, o tempo e o chão território para o caminho de movimento e transformações reais, de nós para nós vivermos. Agora, tudo cheira a bete branca, água de alevante, alfazema e uma planta que dizem afastar os corações que não querem mais amar. As espadas com raiz estão firmes no território, belas em diversos tons de verde respiram ares abertos e bem amoladas, vencedora de seus caminhos.

*Gabriela Fidelis é poetisa, integra a assessoria técnica do CFEMEA, faz parte da Rede de Tecelãs do Cuidado e é ativista da Articulação de Mulheres Brasileiras.

*As fotos que ilustram esse texto também foram feitas por Gabriela Fidelis.

fonte: https://www.cfemea.org.br/index.php/pt/?view=article&id=9054:territorio-poetico-de-lutas-cuidado-e-sustentacao-da-vida&catid=625:territorios-de-cuidado-luta-e-sustentacao-da-vida

 


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