Quase lá: BRASIL: “A legislação deveria proteger as mulheres e meninas, não criminalizá-las”

CIVICUS discute o direito ao aborto no Brasil com Guacira Oliveira, diretora colegiada do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA)

 

CIVICUS
ENTREVISTA com Guacira César de Oliveira (CFEMEA) –10 de julho de 2024

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A CIVICUS discute o direito ao aborto no Brasil com Guacira Oliveira, diretora colegiada do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA). O CFEMEA é uma organização feminista antirracista que defende os direitos das mulheres, o cuidado coletivo e o autocuidado e monitora os desenvolvimentos no Congresso Nacional brasileiro.

Em junho, milhares de mulheres saíram às ruas de São Paulo e de outras cidades para protestar contra um projeto de lei que classificaria o aborto após 22 semanas como homicídio, punível com seis a 20 anos de prisão. Os protestos começaram quando a câmara baixa do Congresso acelerou o projeto de lei, limitando o debate. Atualmente, o aborto é legal no Brasil somente em casos de estupro, malformação fetal ou perigo de vida para a pessoa gestante. O projeto de lei proposto, promovido por representantes evangélicos, criminalizaria as pessoas que abortam de forma mais severa do que os estupradores. A reação pública desacelerou o andamento do projeto de lei e agora seu futuro é incerto.

Como essa nova lei antiaborto, se aprovada, afetará as mulheres?

Atualmente, o aborto no Brasil não é punível apenas em casos de estupro, risco para a gestante e malformação fetal grave. Mas a legislação brasileira atual não estabelece tempo máximo de gestação para acessar o aborto legal. O projeto de lei proposto equipararia o aborto após a 22ª semana de gestação ao homicídio, punindo tanto a pessoa que busca o aborto quanto os profissionais de saúde que o realizam.

Isso afetaria especialmente as meninas, pois mais de 60% das vítimas de estupro são crianças com menos de 13 anos. Em mais de 64% desses casos, o estuprador é pessoa do círculo familiar da menina, o que dificulta a identificação do estupro e da gravidez resultante.

Outro aspecto perverso dessa questão é o recorte racial. Quarenta por cento das vítimas de estupro são crianças e adolescentes negras e, entre as vítimas menores de 13 anos, mais de 56% são meninas negras. Das 20.000 meninas menores de 14 anos que dão à luz todos os anos, 74% são negras. Além disso, as mulheres negras têm 46% mais probabilidades de ter um aborto do que as mulheres brancas. A aprovação desse projeto de lei deixaria as mulheres e meninas negras ainda mais vulneráveis do que já são. A legislação deveria proteger essas mulheres e meninas, não criminalizá-las.

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Como a sociedade civil se mobilizou contra o projeto de lei?

O CFEMEA monitora as ameaças ao aborto legal há décadas e integra a Frente Nacional contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto. Com a ascensão da extrema-direita à presidência em 2018, as ameaças aumentaram e os movimentos feministas se mobilizaram para denunciar casos de meninas vítimas de violência sexual que enfrentaram barreiras institucionais para acessar o aborto legal.

Em 2023, em resposta à legislação regressiva, eles lançaram a plataforma “Criança Não é Mãe”, que foi reativada mais recentemente quando o novo projeto de lei contra o aborto foi apresentado em regime de urgência. Mais de 345.000 pessoas subscreveram a campanha e enviaram mensagens aos parlamentares. Elas também exerceram pressão nas redes sociais, por meio de publicações e hashtags como #criançanémãe, #PLdagravidezinfantil e #PLdoestupro.

Também pressionamos por meio de ações presenciais e outras estratégias definidas coletivamente, lideradas principalmente pelas Frentes Estaduais contra a Criminalização da Mulher e pela Legalização do Aborto. Em maio, fizemos uma colocação simbólica de coroa de flores em frente ao Conselho Federal de Medicina, que no mês de abril tinha publicado uma resolução proibindo a assistolia fetal, um procedimento recomendado pela Organização Mundial da Saúde para abortos legais acima de 22 semanas. Assim simbolizamos nosso luto por todas as mulheres e meninas cujas vidas são interrompidas por não terem acesso ao aborto legal. Repetimos o ato em frente à residência oficial da presidência da Câmara dos Deputados, logo antes da aprovação do requerimento de urgência para o tramitamento do projeto antiaborto, que aconteceu na noite do dia 12 de junho.

No dia seguinte ocorreram os primeiros protestos públicos em várias capitais brasileiras. Eles continuaram nos dias seguintes, culminando em um ato unificado em todo o Brasil no dia 27 de junho. A questão ainda está em pauta neste mês de julho e as manifestações seguem vivas.

Por que o Brasil está indo na direção oposta à tendência regional de legalização?

O Brasil tem visto avanços da extrema-direita fundamentalista religiosa desde 2016, quando a presidente Dilma Rousseff foi afastada do cargo por meio de uma manobra jurídico-parlamentar que constituiu um golpe político. A reação etnocêntrica, LGBTQIA+fóbica, neopatriarcal e racista violenta se intensificou em 2018, com a vitória de Jair Bolsonaro numas eleições marcadas pela desinformação.

Os direitos que garantem a existência de vidas “diferentes”, ou seja, de formas de vida plurais, parecem aos conservadores uma ameaça a sua própria existência. Nesse sentido, as propostas regressivas são uma resposta direta às mulheres que lutam contra o patriarcado e todas as formas de opressão das mulheres.

Mesmo após ser derrotada nas eleições presidenciais de 2022, a extrema direita se fortaleceu no Congresso Nacional, onde os extremistas foram a maioria dos legisladores eleitos tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado. Isso resultou no ressurgimento de um projeto de lei conhecido

como “Estatuto do Nascituro”, com o objetivo de conceder “personalidade” ao feto para criminalizar o aborto, que segue em tramitação.

Muitos fatores explicam a reação conservadora no Brasil e no mundo. Para os fascistas no poder e na sociedade, a violência é autorizada contra os grupos considerados “inimigos do povo”, o que pode incluir quaisquer vozes dissidentes – mulheres, povos indígenas, pessoas negras, pessoas LGBTQI+. No caso das mulheres, eles estão tentando nos redomesticar, mandando-nos de volta para casa, servis ao mando e julgo dos patriarcas. O controle da reprodução e de nossos corpos é parte crucial dessa estratégia de controle.

Quais são as forças a favor e contra os direitos sexuais e reprodutivos no Brasil?

A principal força contrária aos direitos sexuais e reprodutivos é o fundamentalismo religioso, que se posiciona como arauto do controle dos corpos femininos e dissidentes de gênero e está fortemente representado no Congresso Nacional. A defesa desses direitos está no campo progressista, representado pela esquerda e pelos movimentos feminista, de mulheres e LGBTQI+.

Mas vale ressaltar que, mesmo com um Congresso ocupado por grupos antidireitos, a maioria da população tem um entendimento menos punitivista e mais empática das lutas feministas e dos direitos das mulheres. Um levantamento que realizamos em 2023, em conjunto com o Observatório de Sexo e Política e o Centro de Estudos e Opinião Pública da Universidade Estadual de Campinas, mostrou que 59% eram contra a criminalização e a possível prisão de mulheres que praticam aborto.

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Quais são as principais reivindicações do movimento feminista brasileiro?

O movimento feminista é plural e diverso, mas tem em comum a luta pelo fim de todas as formas de violência contra a mulher. Na visão do CFEMEA, buscamos transformar o mundo por meio do feminismo antirracista e da tomada de posição contra todas as desigualdades e opressões de gênero. Essa é a nossa posição ao dialogarmos com a sociedade e reivindicarmos dos governos. Demandamos políticas públicas que reduzam as desigualdades entre homens, mulheres e pessoas com outras identidades de gênero, consideradas em suas dimensões intersetoriais de credo, etnia, habilidades físicas, idade, nacionalidade e raça, entre outras.

Uma questão fundamental é a divisão sexual e racial do trabalho, uma estrutura poderosa que mantém e agrava as desigualdades vivenciadas pelas mulheres. Afinal, o trabalho de cuidado que elas realizam, apesar de invisibilizado e desvalorizado pelo capitalismo patriarcal, é condição indispensável à vida humana e à construção do bem viver coletivo. O manifesto do Fórum Feminista Antirracista por uma Política Nacional de Cuidado, assinado por dezenas de movimentos e organizações, afirma a necessidade de reconhecimento e compartilhamento pelo Estado das atividades de reprodução social. Isso significa que o trabalho de cuidado, atualmente não remunerado e realizado em nível familiar e comunitário quase que exclusivamente por mulheres, deve ser efetivamente assumido pelo Estado, pois o cuidado é uma necessidade humana.

Exigimos que os governos aloquem investimentos públicos para combater as desigualdades de gênero em áreas tão diversas como bem-estar, cuidados, cultura, educação, justiça, lazer, meio ambiente, saúde e trabalho. É o Estado, e não o mercado, que pode e deve combater tais desigualdades.

 

O espaço cívico no Brasil é classificado como “obstruído” pelo CIVICUS Monitor.

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fonte: https://civicus.org/index.php/media-resources/news/interviews/7156-brazil-the-law-should-protect-women-and-girls-not-criminalise-them


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