“Até quem adota posição contrária à minha, concorda que ela (a vítima) foi maltratada, humilhada, achincalhada. Cabia a ele (juiz) a condução do processo”, afirmou a presidenta do Conselho Nacional de Justiça, a ministra Rosa Weber, em seu voto favorável à abertura do Processo Administrativo Disciplinar (PAD), para apurar a conduta do juiz de direito Rudson Marcos, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), na condução da audiência sobre o caso Mariana Ferrer. Seguindo o voto do relator, o ministro Sidney Pessoa Madruga, Weber desempatou a votação do plenário que teve oito votos favoráveis e sete contrários à instalação do PAD, durante a 8ª sessão ordinária, na tarde da última terça-feira (23).
“Eu decido com muita tranquilidade […] O que se exige do juiz durante uma audiência? A condução do processo. Ele é quem conduz o processo, quem dirige a audiência, ele é quem detém o poder de polícia. Pode ele, detentor do poder de polícia, permitir que uma parte, um integrante da relação jurídico processual, seja achincalhado por qualquer dos outros participantes do ato processual? Eu entendo que não pode. Se não pode, na verdade, ao não ter uma intervenção mais efetiva, ele se omitiu. Isso é suficiente para condená-lo? Talvez não, mas para apurar o procedimento dele sim”, alegou a ministra.
Também votaram favoráveis os ministros Luis Felipe Salomão, Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, Salise Monteiro Sanchotene, Luiz Fernando Bandeira de Mello Filho, Marcos Vinícius Jardim Rodrigues e Marcio Luiz Coelho de Freitas.
Contrários à abertura do processo votaram os ministros Richard Pae Kim, Mauro Pereira Martins, Jane Granzoto Torres da Silva, Giovanni Olsson, Marcello Terto e Silva, João Paulo Santos Schoucair e Mário Henrique Aguiar Goulart Ribeiro Nunes Maia.
Em 28 de setembro de 2021, os conselheiros decidiram por maioria dos votos, rever a decisão da Corregedoria do Tribunal de Justiça de SC, que arquivou o processo disciplinar contra o magistrado. Em 22 de novembro do ano passado, o CNJ deu início à análise de revisão disciplinar para a abertura de PAD contra o juiz.
O magistrado é acusado de ter sido omisso durante a audiência de instrução do caso Mariana Ferrer, realizada em 27 de Julho de 2020, diante dos insultos dirigidos à vítima pelo advogado de defesa do acusado de estupro, Gastão da Rosa Filho. O caso ganhou repercussão nacional com a divulgação das imagens da audiência, pelo Intercept Brasil, em 3 de novembro de 2020, as quais mostram a jovem sendo ofendida pelo advogado de André de Camargo Aranha, sem que houvesse efetiva ação do juiz para conter os insultos.
“As cenas registradas ali são impressionantes. Tem-se que a vítima de um crime de natureza sexual vê-se praticamente sozinha, num ambiente em que o sistema de justiça falha por completo, num cenário em que a defesa oferecida pela defensoria pública à vítima […] mantém-se praticamente omissa e o Ministério Público interviu poucas vezes e de forma titubeante, o advogado de defesa toma conta da audiência como se fosse ele o condutor dos trabalhos”, afirmou o conselheiro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, em seu voto favorável à abertura do PAD.
“Extrai-se dos vídeos uma espécie de reverência ao advogado que fez calar a todos os participantes da audiência, com exceção da vítima que se debateu de forma angustiante tentando manter intacta a sua dignidade”, acrescentou o conselheiro durante a leitura do voto.
Na análise de Mello Filho, o advogado adotou uma “linha de defesa que agride, transforma a vítima em acusada, violenta a sua honra e dá o tom da audiência, trata-se de sessão de assédio moral à vítima, agravada pela omissão eloquente dos demais integrantes do sistema de justiça, em especial do juiz, responsável último pela condução dos trabalhos e preservação dos direitos e da honra dos sujeitos envolvidos na audiência”.
Seguindo a linha argumentativa dos pares contrários ao PAD, o conselheiro Marcello Terto e Silva avaliou que o problema apontado na condução do juiz teria relação com o sistema de justiça como um todo e, por isso, o magistrado não deveria ser alvo de processo administrativo. Para justificar sua posição, lembrou que o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, publicado em 2021, é uma resposta ao que considerou uma falha sistêmica. “O sistema de justiça, como um conjunto, falhou na ocasião, falhou por essas questões circunstanciais que o conselheiro João Paulo muito bem colocou, era um momento de exceção, era uma realidade nova, virtual. Não isento o magistrado de qualquer responsabilidade em função da passividade em relação ao tratamento das partes e dos protagonistas da justiça ali envolvidos, mas a falha foi sistêmica. Não é tudo na vida que se resolve por PAD”, afirmou Silva.
Durante a apresentação do voto de desempate, a ministra Rosa Weber fez menção ao arquivamento do processo ético-disciplinar em desfavor do advogado, instaurado em 14 de setembro de 2020 na Ordem dos Advogados do Brasil de Santa Catarina. “Não estamos aqui para apreciar a atuação do advogado, se a OAB entendeu de outra forma, não nos cabe emitir qualquer juízo de valor a respeito”, afirmou a presidenta em resposta a manifestações contrárias à abertura do PAD.
Entramos em contato com a assessoria de imprensa do TJSC, mas ainda não obtivemos manifestação sobre a abertura do PAD contra o juiz. Já a OAB/SC enviou informações sobre como funciona o procedimento, mas nada informou sobre o arquivamento: “esses procedimentos são sigilosos, em razão disso a OAB não pode passar informações a respeito sobre o arquivamento do procedimento interno contra o advogado”.
Ofensas sem limites
Durante a audiência, o advogado exibiu fotos da jovem que nada tinham a ver com o processo, alegando que ela estava em “posições ginecológicas”. Ferrer foi chamada por Gastão da Rosa Filho de “mentirosa” e “mulher que nem você”, que segundo ele, usava de “farsa”, “showzinho”, “choro falso”, e “lágrimas de crocodilo”.
Rosa Filho afirmou ainda: “Peço a Deus que meu filho não encontre uma mulher que nem você. E não dá para dar o teu showzinho, teu showzinho você vai lá dar no Instagram depois para ganhar mais seguidores.”
Em resposta, Ferrer chora durante a audiência e pede respeito. “O que é isso? Nem acusado de assassinato é tratado como estou sendo tratada, pelo amor de Deus. Nunca cometi crime contra ninguém”, diz.
O processo
Na origem, a corregedoria do TJ/SC decidiu monocraticamente pelo arquivamento da reclamação disciplinar contra o juiz. O entendimento é que não cabia um PAD, e sim uma orientação a Rudson Marcos pela “falta de pulso” na condução da audiência.
Já no CNJ, o caso ficou sob a relatoria do conselheiro Sidney Madruga, que considerou haver elementos suficientes a revelar a omissão do juiz, sendo necessária a instauração de PAD, sem afastamento cautelar, para melhor análise da conduta do magistrado. Na avaliação de Madruga, Rudson Marcos não atuou com a firmeza devida diante dos constrangimentos suportados por Mariana Ferrer.
A divergência havia sido inaugurada pelo conselheiro Richard Pae Kim por entender que inexistia justa causa para instauração do PAD. Em seguida, Luis Felipe Salomão havia pedido vista para melhor análise do caso. O conselheiro Marcos Vinícius Rodrigues antecipou seu voto e acompanhou o relator.
Resultados da repercussão
Após a repercussão do caso Mariana Ferrer, foi sancionada em 2021 uma lei que proíbe o constrangimento de vítimas de crimes sexuais e testemunhas durante julgamentos e audiências na Justiça. A Lei Mariana Ferrer (Lei 14.245/2021) estipula que na audiência de instrução e julgamento, e, em especial, nas que apurem crimes contra a dignidade sexual, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa. No mesmo ano, também foi publicado o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero 2021 com uma série de diretrizes para evitar preconceitos e discriminação por gênero durante julgamentos. Em março deste ano, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tornou obrigatórias as diretrizes do protocolo para todo o Poder Judiciário nacional.
Mariana Ferrer
Em 2019, o primeiro promotor a assumir o caso denunciou Aranha por estupro de vulnerável e pediu sua prisão preventiva. O juízo de 1º grau aceitou a denúncia e decretou a prisão, a qual acabou sendo revogada pelo TJ/SC, por meio de habeas corpus.
O primeiro promotor saiu do caso. Para o segundo promotor, não foi possível comprovar o estado da jovem, nem se ela estaria em condições de consentir ou negar o ato.
Ao aceitar o pedido de absolvição, o magistrado concordou com a tese do promotor e afirmou que é “melhor absolver 100 culpados do que condenar um inocente”. A absolvição foi confirmada pelo TJ/SC.