Observando a sociedade, não podemos ignorar a relevância da linguagem na construção do que está posto na cultura
Quando tratamos de linguagem, estamos lidando com um campo diverso e com uma variedade de conceitos que abordam o tema. Observando a sociedade, não podemos ignorar a relevância da linguagem na construção do que está posto na cultura. A linguagem/língua não pode ser compreendida como um mero agrupamento de palavras, gestos, sons e imagens. A linguagem não está apartada da sociedade. Há uma simbiose entre ambas. Afinal, somos seres de/da linguagem e nossa existência ocorre nela, na cultura e na história.
Nomear, caracterizar, predicar alguém está para além de substantivos, adjetivos, orações coordenadas ou subordinadas, hipérboles ou metáforas. Nomear alguém implica existência no mundo em que vivemos. Estudiosos e estudiosas, como Kanavillil Rajagopalan, nos ensinam isso. Uma criança branca, na escola, chamar uma criança preta de "macaca" é desumanizá-la, animalizá-la e inferiorizá-la. Tudo isso ganha existência quando a criança é predicada assim. E os efeitos na vida dessa criança? Danosos!
Quando pensamos na educação linguística, aquela que aborda o ensino de línguas e linguagens, parece-nos relevante atentar para que ações estamos ensinando dentro e fora das instituições de educação formal. Na linguagem, podemos ensinar o outro a ofender, ferir, humilhar, desestruturar, hierarquizar alguém. Também, na linguagem, podemos elogiar, exaltar, motivar, amar e curar a depender da situação e de quem está na interação conosco. Essas ações, por mais simples que possam parecer, e não são, ocorrem na interação com alguém. Como nossas interlocutoras e nossos interlocutores podem compreender o que está sendo dito ou não dito é também um mar de possibilidades, mas regulado pelas normas da interação, naquele momento ou instante.
Nesses ditos ou não ditos, temos o racismo que ganha sua existência na e pela linguagem, ou seja, quando falamos, escrevemos, gesticulamos, olhamos etc. damos existência às questões raciais e ao racismo. "Eu não vou a médico preto", dito por um homem branco a uma médica preta aponta para o racismo desse homem. "Para trabalhar aqui, você precisa dar um jeito neste cabelo", dito por uma mulher branca a um jovem negro dá existência ao racismo e à branquitude que estão na cultura. Sendo assim, conhecer o campo minado que é a linguagem pode contribuir para que saibamos fazer uso da língua, dos gestos, dos olhares para combater o racismo e outros dispositivos de opressão que operam na sociedade-em-linguagem.
Nos exemplos citados, neste breve texto, as relações de poder estão postas, e contestá-las implica empregar o poder de transformação da linguagem que Rajagopalan nos mostra, ou como nos dizem Bell Hooks e Kassandra Muniz, a linguagem pode curar. Como? Uma jovem negra em seu espaço de trabalho ao escutar que seu cabelo crespo é lindo traz efeitos inimagináveis para quem sempre escutou que alisar é a regra. Um menino negro olhado como uma criança com um futuro promissor pela frente, e não como um possível infrator, pode ter o efeito de se sentir humano, ou seja, naturalmente gente.
Quando em uma aula de língua portuguesa, deixa-se de fazer a redação sobre minhas férias, e propõem-se temáticas como as conquistas do povo preto, abre-se um leque imenso para a mobilização de outras histórias e narrativas que ganham sua existência na caneta, no papel e na tela de quem raramente se vê na sociedade de forma positiva.
A educação linguística pode, assim, nos ajudar a compreender o funcionamento dos discursos de ódio e tantos outros que circulam nos grupos, nada secretos, da escola, da universidade e do trabalho. Se na linguagem, as relações de poder se colocam, há também no discurso a possibilidade de outras formas de se operar no mundo, incluindo contestar hierarquizações que são postas.
Somos seres de linguagem-em-sociedade. Nela, negociamos nossa forma de nos colocar e sermos colocados no mundo. Na linguagem, damos existência às memórias, às narrativas, às histórias e aos discursos que podem transformar, profundamente, o mundo em que estamos. Isso porque linguagem e sociedade nunca se apartam, na verdade, se mesclam o tempo todo. Transformando as narrativas que circulam, construídas na e pela linguagem, fortalecemos as propostas do Movimento Negro Educador abordado por Nilma Lino Gomes, e nós, do campo dos estudos da linguagem, podemos contribuir para tal.
*Glenda Cristina Valim de Melo, Professora do Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).