"Quer saber o motivo? O motivo é comportamento suspeito”, disse o policial. Comecei a pedir ajuda. Foi quando um policial me empurrou.
Eriane Pacheco (*)
Em junho deste ano, fui ao show ‘Numanice’, da Ludmilla, em Porto Alegre. Sou uma mulher negra não retinta, militante política da luta feminista e antirracista. Atualmente, sou chefe de gabinete da deputada estadual Bruna Rodrigues (PCdoB), do Rio Grande do Sul.
O show foi um dos grandes eventos de Porto Alegre – principalmente para a parcela negra da população que pode ter referências e viver uma festa ao mesmo tempo. Porém, o modus operandi da segurança privada do show e da Polícia Civil gaúcha foi um show de horrores – e de racismo.
Fui uma das vítimas de racismo de uma polícia totalmente despreparada e racista. Decidi sair antes do show acabar para poder pegar meu carro de aplicativo em segurança, pois estava sozinha. A partir disso, fui encurralada por duas pessoas que pediram pra eu tirar tudo da bolsa apontando uma arma pra mim. “É um assalto”, pensei. Não era. Somente depois do desespero e constrangimento que eu passava, os policiais, aos gritos, falaram que era uma abordagem policial e mostraram um distintivo. Perguntei o nome deles e o motivo da abordagem. Não foi me dito. Entreguei meu documento (que inclusive era minha carteira de Assistente Social), peguei meu celular para contatar minhas amigas, o qual o policial arrancou da minha mão e disse que eu “não ia filmar nada”. Fiquei muito nervosa, disse que eu tinha direito de filmar em uma abordagem, assim como eu tinha direito de saber o nome deles e o motivo dela.
“Quer saber o motivo? O motivo é comportamento suspeito”, disse o policial. Comecei a pedir ajuda para quem passava. Foi quando um policial me empurrou. Depois, chegou a ter em torno de oito policiais ao meu redor. Fui revistada por duas policiais mulheres de maneira agressiva: rasgaram a pochete que eu usava e uma delas apertou meus seios dizendo que “certamente” eu devia alguma coisa para estar tão preocupada.
Após verificarem meu documento e perceberem que não havia nada, vários deles saíram. Um deles finalmente se apresentou e comentou que muitos celulares estavam sendo roubados naquela festa. Pedi meu celular de volta e quando devolveram, acionei uma amiga. Para ela, uma mulher branca, os nomes dos policiais foram divulgados. Fomos ao posto policial, que apresentava um cenário caótico e sem controle. Falei com o delegado responsável pela operação da festa sobre a abordagem truculenta, mas infelizmente este não me auxiliou, ao contrário, e saí para realizar o boletim de ocorrência no Palácio da Justiça.
Eu não apresentava resistência pra polícia, eu era uma mulher sozinha. Se quisessem realizar uma abordagem policial, deveriam se apresentar, pedir o documento e me liberar. É normal as abordagens parecerem criminosas? Entende-se hoje, através de diversos autores, que o racismo é estruturante na sociedade brasileira e se consolida a partir de três processos essenciais: as divisões de classe, a concentração de riquezas por meio de concentração da posse da terra e da superexploração do trabalho e a violência como prática permanente, expressa por meio da repressão continuada. Essa referência nos possibilita problematizar o significado e a incidência do racismo estrutural e da violência racial nos diferentes espaços da sociedade, sejam eles públicos ou privados, de formação e de trabalho ou de militância.
Se vive em um país em que a cor da pele determina quem tem mais oportunidades e direitos e quem tem menos. E mais do que isso: determina em diversos casos quem tem direito à vida. Em um país em que as mulheres negras têm travado uma trajetória histórica de resistência e lutas por legitimidade e inclusão social, contribuindo de forma efetiva na construção de uma nação democrática e igualitária, os desafios impostos em função de nossa ancestralidade impactam nossa dinâmica socioeconômica.
O racismo opera, legitimando uma hierarquia social, onde se torna aceitável que pessoas e cargos tidos como superiores sejam naturalmente assumidos por pessoas em posições sociais privilegiadas em relação aos demais. Isso ocorre quando lugares de menor reconhecimento e visibilidade são naturalizados às pessoas negras, consideradas inferiores. Não tenho esperança alguma que esses policiais revejam suas atitudes, mas inclusive no espaço político que ocupo, preciso usar minha voz para que isso não se repita dessa forma com outras pessoas. É urgente um protocolo de abordagem policial em grandes eventos.
(*) Assistente Social e mestra em Políticas Sociais (UFRGS). Chefe de gabinete da deputada estadual Bruna Rodrigues (PCdoB). Militante feminista e antirracista. e-mail: