Pesquisa da USP identifica lacunas em processos judiciais que envolvem racismo em contexto de violência doméstica e familiar; ausência de letramento racial é determinante na escuta de relatos
Texto: Guilherme Ribeiro*
Arte: Diego Facundini**
De acordo com levantamento de 2022 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mais de 50 mil mulheres sofrem com violência todos os dias, sendo 53,8% dos casos dentro de seus lares. Dessas vítimas, 65,6% são mulheres negras, que, além dos abusos sofridos por seu gênero, ainda sofrem com a violência racial. O desafio é considerar as duas situações conjuntamente nos processos judiciais.
Essa questão foi objeto de análise de Patrícia Oliveira de Carvalho em sua dissertação de mestrado, Insubmissos relatos de mulheres negras: violências raciais em contexto de violência doméstica e familiar e seus desdobramentos judiciais. Advogada formada pela Universidade Salvador (Unifacs), Patrícia se propôs a compreender como a violência racial em contexto de violência doméstica e familiar é configurada na lei.
“A Lei Maria da Penha tem enquadramentos específicos para ser utilizada e a violência racial também possui suas especificidades. Porém, mesmo que aconteça dentro do ambiente doméstico, a violência racial não se aplica no enquadramento da Lei Maria da Penha. Então, judicialmente, como se configura esse tipo de situação? Foi o que busquei analisar”, explica a pesquisadora.
Analisando resultados de pesquisas feitas com defensoras públicas e advogadas, ela percebeu que a violência racial, ainda que presente em contextos de violência doméstica, pode ser pouco percebida. Segundo a pesquisadora, um desdobramento judicial para tratar de casos assim passa pela percepção e proximidade da profissional com a situação racial.
A dissertação de mestrado pela FD foi defendida por Patrícia em novembro de 2023 e contou com a orientação de Gislene Aparecida dos Santos, que é livre docente pela USP e pesquisadora do Diversitas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
“É um trabalho que tem um grande potencial de contribuição com o campo do direito por apontar a complexidade que esses casos de violência possuem e as lacunas dos processos judiciários”, comenta Gislene sobre a dissertação de Patrícia.
Além de graduada e mestranda em Direito, Patrícia integra a Clínica de Direitos Humanos das Mulheres (CDHM), do Grupo de Estudos e Pesquisas das Políticas Públicas para Inclusão Social (GEPPIS) da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) e do Grupo de Pesquisa e Estudos de Inclusão na Academia (GPEIA) da Faculdade de Direito (FD), todos da USP.
A influência da representatividade
Para a advogada e pesquisadora, o relato de uma vítima de violência racial em contexto de violência doméstica tem influência da aproximação e identificação racial entre relatora e defensora. Mulheres negras se sentem mais seguras e mais confortáveis em se abrirem para mulheres com as quais se identifiquem.
“Em Salvador eu atuava como advogada trabalhista, não trabalhava com violência doméstica, e ainda assim já tinha contato com mulheres negras que se abriam para mim com relatos de violência racial e sobre a dificuldade que enfrentavam em processos judiciais para conseguirem medidas” reitera Patrícia, que é mulher negra.
Lei Maria da Penha
Ainda que a Lei Maria da Penha seja uma das mais completas, inclusive já considerada uma das melhores leis de amparo à mulher do mundo, o Brasil segue listado entre os países que mais matam mulheres no planeta. Utilizando dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o País figura em quinto lugar da lista.
Mesmo sendo uma ferramenta de suma importância no combate à violência contra a mulher, a Lei Maria da Penha possui uma lacuna quando observada pela perspectiva da pesquisa de Patrícia. A violência ou injúria racial não se enquadram como modalidades de violência doméstica, mesmo que aconteçam dentro do ambiente familiar.
Dessa forma, vítimas de violência racial em contextos domésticos e familiares dependem de que seus defensores judiciais encaminhem processos de injúria qualificada separadamente do processo de violência doméstica.
O que nem sempre acontece, explica Patrícia. “A proximidade do defensor com a discussão racial e o letramento racial desse profissional acaba sendo muito determinante para os possíveis desdobramentos que podem ser conferidos aos relatos de violência racial.”
*Estagiário sob supervisão de Tabita Said