Quase lá: Falta de defensoras negras afeta desdobramentos raciais em casos de violência doméstica

Pesquisa da USP identifica lacunas em processos judiciais que envolvem racismo em contexto de violência doméstica e familiar; ausência de letramento racial é determinante na escuta de relatos

Jornal da USP -   12/8/2024
Texto: Guilherme Ribeiro*
Arte: Diego Facundini**
 
 

De acordo com levantamento de 2022 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mais de 50 mil mulheres sofrem com violência todos os dias, sendo 53,8% dos casos dentro de seus lares. Dessas vítimas, 65,6% são mulheres negras, que, além dos abusos sofridos por seu gênero, ainda sofrem com a violência racial. O desafio é considerar as duas situações conjuntamente nos processos judiciais. 

Essa questão foi objeto de análise de Patrícia Oliveira de Carvalho em sua dissertação de mestrado, Insubmissos relatos de mulheres negras: violências raciais em contexto de violência doméstica e familiar e seus desdobramentos judiciais. Advogada formada pela Universidade Salvador (Unifacs), Patrícia se propôs a compreender como a violência racial em contexto de violência doméstica e familiar é configurada na lei.

“A Lei Maria da Penha tem enquadramentos específicos para ser utilizada e a violência racial também possui suas especificidades. Porém, mesmo que aconteça dentro do ambiente doméstico, a violência racial não se aplica no enquadramento da Lei Maria da Penha. Então, judicialmente, como se configura esse tipo de situação? Foi o que busquei analisar”, explica a pesquisadora. 

Patrícia Oliveira de Carvalho - Foto: CV Lattes

 

Analisando resultados de pesquisas feitas com defensoras públicas e advogadas, ela percebeu que a violência racial, ainda que presente em contextos de violência doméstica, pode ser pouco percebida. Segundo a pesquisadora, um desdobramento judicial para tratar de casos assim passa pela percepção e proximidade da profissional com a situação racial. 

Gislene Aparecida dos Santos - Foto: Arquivo pessoal/IEA-USP

 

A dissertação de mestrado pela FD foi defendida por Patrícia em novembro de 2023 e contou com a orientação de Gislene Aparecida dos Santos, que é livre docente pela USP e pesquisadora do Diversitas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

“É um trabalho que tem um grande potencial de contribuição com o campo do direito por apontar a complexidade que esses casos de violência possuem e as lacunas dos processos judiciários”, comenta Gislene sobre a dissertação de Patrícia.

Além de graduada e mestranda em Direito, Patrícia integra a Clínica de Direitos Humanos das Mulheres (CDHM), do Grupo de Estudos e Pesquisas das Políticas Públicas para Inclusão Social (GEPPIS) da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) e do Grupo de Pesquisa e Estudos de Inclusão na Academia (GPEIA) da Faculdade de Direito (FD), todos da USP. 

A influência da representatividade

Em sua pesquisa, Patrícia realizou uma série de entrevistas com sete defensoras públicas e oito advogadas que, em suas atuações, já mobilizaram a Lei Maria da Penha para assessorar mulheres em casos de violência doméstica e familiar. 

A pesquisadora solicitou que as 15 entrevistadas declarassem cor e raça com as quais se identificavam. Dentre as sete defensoras públicas, apenas uma se declarou parda, enquanto todas as demais se autodeclararam brancas. Quanto às advogadas, três se declararam brancas, três pardas, uma preta e uma amarela. 

Além da autodeclaração, Patrícia solicitou às entrevistadas que também classificassem outras 14 mulheres em uma das categorias de raça/cor, por meio de um formulário composto por fotos. O objetivo dessa etapa foi estabelecer para cada entrevistada quem são as pessoas que elas leem como mulheres negras.  Quanto a esse processo de identificação, Patrícia observou que as entrevistadas encontraram dificuldade e incômodo em caracterizar a raça e cor de outras mulheres.  

Patrícia questionou as entrevistadas se relatos de violência racial já estiveram presentes em casos de violência doméstica e familiar que tenham trabalhado. As entrevistadas negras afirmaram, enfaticamente, já terem se deparado com casos assim e trouxeram exemplos de relatos; enquanto as que se declararam com brancas no máximo apenas responderam que sim. 

Para a advogada e pesquisadora, o relato de uma vítima de violência racial em contexto de violência doméstica tem influência da aproximação e identificação racial entre relatora e defensora. Mulheres negras se sentem mais seguras e mais confortáveis em se abrirem para mulheres com as quais se identifiquem. 

“Em Salvador eu atuava como advogada trabalhista, não trabalhava com violência doméstica, e ainda assim já tinha contato com mulheres negras que se abriam para mim com relatos de violência racial e sobre a dificuldade que enfrentavam em processos judiciais para conseguirem medidas” reitera Patrícia, que é mulher negra.

Lei Maria da Penha

A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006) é o principal mecanismo de defesa das mulheres contra a violência doméstica no Brasil. A lei, que completou 18 anos no dia 7 de agosto, foi criada com o intuito de prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher. 

Qualquer ação motivada pelo gênero que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial configura violência doméstica e familiar contra a mulher. 

Um dos maiores instrumentos de proteção que a lei oferece é a medida protetiva. O recurso consiste em uma ação judicial que visa conter atos de violência que a vítima tenha sofrido ou esteja sofrendo, impondo restrições de contato ou proximidade entre agressor e vítima. Tal mecanismo, de acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, duplicou o número de pedidos entre 2019 e 2023.

Ainda que a Lei Maria da Penha seja uma das mais completas, inclusive já considerada uma das melhores leis de amparo à mulher do mundo, o Brasil segue listado entre os países que mais matam mulheres no planeta. Utilizando dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o País figura em quinto lugar da lista.

Mesmo sendo uma ferramenta de suma importância no combate à violência contra a mulher, a Lei Maria da Penha possui uma lacuna quando observada pela perspectiva da pesquisa de Patrícia. A violência ou injúria racial não se enquadram como modalidades de violência doméstica, mesmo que aconteçam dentro do ambiente familiar. 

Dessa forma, vítimas de violência racial em contextos domésticos e familiares dependem de que seus defensores judiciais encaminhem processos de injúria qualificada separadamente do processo de violência doméstica. 

O que nem sempre acontece, explica Patrícia. “A proximidade do defensor com a discussão racial e o letramento racial desse profissional acaba sendo muito determinante para os possíveis desdobramentos que podem ser conferidos aos relatos de violência racial.”

*Estagiário sob supervisão de Tabita Said

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