Parceria entre o Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) possibilitará o desenvolvimento de material pedagógico, físico e digital, com o intuito de recontar a história a partir de um olhar colaborativo e decolonial
Encontro do grupo de trabalho do primeiro kit africano e afro-brasileiro do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP - Foto Cecília Bastos/USP Imagens
Publicado: 10/05/2023 - Jornal da USP
Texto: Danilo Queiroz
Arte: Gabriela Varão
Reconhecido pela tradição em formar professores e desenvolver kits pedagógicos utilizados na educação básica, como de arqueologia e etnologia geral, arqueologia do Mediterrâneo, brinquedos infantis indígenas e maquetes táteis de arqueologia brasileira, o MAE buscará desenvolver, de forma inédita, um material que seja referência no País e sirva como ferramenta na promoção de uma educação antirracista.
O projeto é resultado de uma parceria do MAE com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) firmada em janeiro. Num prazo de dois anos, será desenvolvido o material como meio de divulgação científica e educação museal em espaços científico-culturais. A iniciativa reúne pesquisadores da USP e membros da comunidade negra de setores religiosos, artísticos e educacionais, na busca por uma produção pedagógica em formato de kit que pretende estabelecer uma perspectiva colaborativa e decolonial. Segundo os organizadores, o intuito é também desenvolver de forma educativa um kit que rompa com ideias equivocadas sobre os povos africanos e afro-brasileiros, permitindo conhecer a riqueza que há no berço da civilização até os dias de hoje
O projeto é dividido em três grandes fases. A primeira, que está em andamento, consiste em mapear propostas de como o kit será desenvolvido a partir das articulações com os diferentes participantes. Em seguida, haverá a contratação dos serviços e a produção dos conteúdos. Por fim, haverá a realização das formações educacionais e difusão do material pedagógico.
Confira abaixo a equipe participante na construção do kit afro-brasileiro e africano:
- Tata Katuvanjesi, liderança espiritual do Terreito Inzu Tunbamzi de Candomblé de Matriz Kongo-Angola;
- Andréa Andira Leite (museóloga), Joyce Farias de Oliveira (pesquisadora) e Siméia de Mello Araújo (educadora) do Museu Afro Brasil Emanoel Araújo;
- Carolinne Mendes da Silva (professora), Eva Aparecida dos Santos (professora) e Solange Alves Miranda (professora) do Núcleo de Educação para as Relações Étnico-Raciais da Secretaria Municipal de Educação;
- Liliane Pereira Braga (professora) da Prefeitura Municipal da cidade de São Paulo;
- Antonia Terra de Calazans Fernandes, professora do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e coordenadora do Laboratório de Ensino e Material Didático (Lemad), ambos da USP;
- Mariana Inglez, pesquisadora em bioantropologia e doutoranda no Laboratório de Arqueologia e Antropologia Ambiental e Evolutiva do Instituto de Biociências (IB) da USP, além de divulgadora científica;
- Patrícia Marinho de Carvalho, Fábio Guaraldo Almeida e Luciana Alves Costa, pesquisadores do Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre Tecnologia e Território (Lintt) do MAE;
- Maurício André da Silva e Carla Gibertoni Carneiro, educadores do MAE e coordenadores do projeto; entre outras pessoas.
Composição do kit
O kit educativo será composto de livro didático, réplicas de objetos religiosos e artísticos, africanos e afro-brasileiros do MAE e do Museu Afro Brasil Emanoel Araújo; elaboração de mapas e produção de vídeos educativos. O material, desta vez, também será disponibilizado digitalmente com ferramentas acessíveis como audioguia, audioguia com audiodescrição, videoguia com intérprete de Libras e publicação em braile; elaboração de mapas e produção de vídeos educativos. Após confeccionado fisicamente, poderá ser retirado no museu seguido de uma formação educativa. Os kits até então produzidos podem ser solicitados neste link.
O conteúdo presente nesta edição representa a realização de um sonho para Maurício André da Silva, um dos coordenadores do projeto. A antiga demanda que professores e estudantes encaminharam ao Educativo do MAE no desenvolvimento de um material que atendesse às especificidades culturais da civilização africana e afro-brasileira felizmente, agora, foi atendida. A produção do kit educativo segue em andamento. Mesmo que tardia, a ideia ser posta em prática, o educador admite: “Demoramos não somente por conta da falta de investimento, mas devido à branquitude que está instituída por todos os cursos da USP há décadas. Somos a última universidade do País a aderir ao sistema de cotas!”
Maurício André da Silva- Foto: Danilo Queiroz
Kits educativos desenvolvidos no MAE e que podem ser solicitados para empréstimo - Créditos: Ader Gotardo
A presença de pessoas das mais diversas condições – de classe, cor da pele, região -, por meio da Lei de Cotas possibilitou repensar qual o modelo educacional estava sendo reproduzido na formação de professores. Para o espanto dos educadores do museu, não estavam desenvolvendo uma educação antirracista, mesmo que a Lei 10.639 – que obriga o ensino de história africana e afro-brasileira – já tenha completado 20 anos no Brasil.
Carla Gilbertoni Carneiro - Foto: Reprodução/IEA - USP
Apesar de o projeto estar em fase inicial, com discussões acerca dos materiais que serão selecionados, as conversas têm sido bastantes enriquecedoras por apresentar diferentes olhares às temáticas estudadas, segundo os organizadores. O Jornal da USP acompanhou um desses encontros. Para Carla Carneiro, que também atua na coordenação deste kit, a proposta é também repensar que ideia de África é essa que foi sendo reproduzida na escola. “Juntos poderemos questionar essa narrativa oficial, retirando do imaginário brasileiro e mundial de sempre associar a África a algo que remeta à pobreza. Temos um acervo que demonstra a riqueza tecnológica e artística que essas populações desenvolveram!”, relata empolgada a educadora.
Educação antirracista
Entre os educadores convidados para o trabalho de estruturação do kit educativo, está a professora Caroline Mendes. Ela atua no Núcleo de Educação para Relações Étnico-Raciais (NEER) da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, que desenvolve formações continuadas com professores e gestores de escolas do ensino fundamental 1 e 2, é necessário saber a forma correta de repassar esses conteúdos, pautados pela ótica de uma educação antirracista. Este ano o grupo desenvolveu um material com orientações pedagógicas sobre povos afro-brasileiros, que pode ser acessado clicando aqui.
Caroline Mendes - Foto: Arquivo pessoal
"Cavando até minha ancestralidade"
Patrícia Marinho foi a primeira mulher negra arqueóloga formada no MAE. A pesquisadora desde o mestrado estuda comunidades quilombolas no Brasil a partir do prisma da arqueologia colaborativa, método este que surgiu devido aos contatos que teve com as comunidades, resistentes ao processo de escravidão desde o período colonial. Segundo ela, é importante salientar “que o acervo presente no museu não dá conta da totalidade dos saberes dos povos africanos”.
Patrícia Marinho - Foto: Danilo Queiroz
Segundo Patrícia, a aposentadoria da professora Marta Heloísa, que era docente no MAE e especialista em Etnologia Africana, deixou um vácuo no museu na produção de conhecimentos sobre as temáticas afrodiaspóricas. Atualmente o museu universitário não possui nenhum especialista em Etnologia Africana. “Enquanto mulher negra pesquisadora, ter contato com esse acervo do MAE diz muito sobre a minha existência. É conhecer a história que não me foi dada. É investigar minha ancestralidade e descobrir de onde venho”, conta orgulhosa. “Desenvolver o kit africano e afro-brasileiro é uma atitude política,” observa Paty Marinho, como é mais conhecida.
Arte educativa
O Museu Afro, como é mais conhecido, está localizado numa região de classe média alta em São Paulo, no Parque do Ibirapuera. Mais que servir de espaço para abrigar coleções de arte, o museu assume também um espaço político e educativo. Para Joyce Oliveira, artista visual e pesquisadora do Museu Afro Brasil Emanoel Araújo, “é papel de todo museu público ser educador”. Romper com a ideia de uma beleza museal presente apenas na história da arte europeia é um desafio. A curadoria de arte é marcada por conflitos. “Selecionar aquilo que será apreciado passa por uma série de questões, sendo o racismo uma delas”, explica ela, que atualmente desenvolve estudos sobre patrimônios culturais e afrodiaspóricos.
Os objetos do Museu Afro serão utilizados em formato de réplica no kit educativo - Créditos: Núcleo de Salvaguarda (MAB Emanoel Araujo)
Alguns objetos estarão presentes no kit educativo em forma de réplicas. São eles objetos decorativos, indumentárias e artefatos religiosos. A proposta, de fato, é reunir diferentes olhares para que o primeiro kit do MAE com proposta antirracista seja construído colaborativamente. Afinal, segundo Joyce, “assim será possível abrir um espaço para entender a história de um jeito múltiplo. Celebrando a beleza, a cultura e as tecnologias de africanos e afro-brasileiros. Tornando visível a história do berço da civilização por meio da educação”.
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