Pesquisa da Universidade Federal Fluminense (UFF) investiga formas de transformar o audiovisual nacional a partir de coletivos formados por mulheres e dissidências de gênero
Universidade Federal Fluminense
O cinema brasileiro tem ganhado o mundo. Nos últimos anos, foram vários os filmes nacionais presentes no circuito cinematográfico internacional, conquistando reconhecimento dentro e fora do país, como “Cidade de Deus” (2002), de Fernando Meirelles e Kátia Lund, “Tropa de Elite” (2007), de José Padilha, e “Bacurau” (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Para além do idioma e dos traços da cultura nacional, um ponto em comum é a marcante presença masculina nas obras. Refletindo sobre quem produz o audiovisual no Brasil e quais imaginários são criados a partir dele, a pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal Fluminense (PPGCine-UFF), Danielle Parfentieff de Noronha, desenvolveu o estudo “O coletivo é político: O papel dos coletivos contemporâneos de mulheres e dissidências de gênero na (re)configuração das imagens e sons do cinema e audiovisual brasileiros”.
Como explica a professora Karla Holanda de Araújo, supervisora da pesquisa que contou com apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), o estudo se dedica a fazer um levantamento de coletivos, tentando perceber a pluralidade de mulheres e dissidências de gênero que trabalham no audiovisual. “Sabemos muito bem que são produções feitas por homens brancos, ricos, de uma determinada localidade, geralmente Rio de Janeiro ou São Paulo, que predominam na sociedade. O trabalho da Danielle vai nesses locais, nesses coletivos, para descobrir como esse imaginário pode ser refeito”, destaca a docente.
O estudo, segundo de Noronha, nasceu de uma reflexão teórica sobre paradigma decolonial, com foco em mulheres e dissidências de gênero — o que inclui pessoas transexuais, travestis e não binárias — e tem como objetivo descobrir de que modo é possível produzir novos sons e imagens, diferentes dos que normalmente são criados no cinema brasileiro: “Já estava trabalhando com teorias feministas e decoloniais e algo que comecei a pensar é como podemos fazer para decolonizar o nosso ver, que, por consequência, também influencia no nosso imaginário, na nossa prática e nas nossas subjetividades”.
De acordo com a pesquisadora, para transformar a forma com que o audiovisual brasileiro é visto, é preciso pluralizar o grupo de profissionais que estão por trás das câmeras, mas não apenas aquelas pessoas que estão no set de filmagens, como também toda a estrutura do cinema nacional, incluindo o mercado exibidor. “Toda a estrutura precisa ser transformada, porque ela é majoritariamente ocupada por homens brancos de lugares centrais”, afirma. “Por trás das câmeras, tem todo um ambiente complexo que se relaciona também com a necessidade de mudanças nas obras que consumimos. Há um conjunto, em especial, de pesquisadoras e de cineastas refletindo sobre as desigualdades de gênero que existem no setor, interseccionadas com outros marcadores sociais, como raça, sexualidade, região, território e geração”, complementa a pesquisadora.
Partindo dessa discussão, a pós-doutoranda passou a observar coletivos — “pensando coletivo como uma forma de resistência” — que atendem a todo o conjunto de pessoas que estão à margem no cinema nacional. “A ideia de coletivo em si já tem uma carga bastante transformadora. Aqui, estou olhando para um conjunto que tem essa proposição de transformação das estruturas desiguais que permeiam o audiovisual em termos de profissionais, das pessoas que estão atrás das narrativas e na frente das telas”, explica. Ao longo da pesquisa, de Noronha também percebeu que ainda há muito pouco material produzido sobre o assunto, com algumas pesquisas voltadas especialmente para coletivos dos anos 1980 ou outros da América Latina. Nesse sentido, começou a pensar em realizar um mapeamento dos coletivos atuais, que foram reunidos no site Coletivas de Cinema.
“Tiveram algumas etapas até o site ficar pronto e ainda podem ser incluídos novos conjuntos, que ali estou pensando de forma bem ampla, como grupos de mulheres e dissidências de gênero reunidas para fazer algum projeto dentro do cinema e do audiovisual”. A reunião dos coletivos começou com uma busca pela internet, depois, por meio do contato com cineastas em busca de indicações de grupos e a realização de um formulário divulgado pelas redes sociais. O questionário serve para identificar os coletivos, além de outras informações importantes para a pesquisadora em relação ao estudo. A partir das respostas, foi feito um filtro, “porque havia alguns casos que não se tratavam da reunião de mulheres e dissidências de gênero ou não cabia na proposta do estudo, mas a maioria entrou. Grande parte dos grupos que encontrei foi por meio desse formulário”, conta de Noronha.
Em seguida, houve um segundo momento da pesquisa que envolveu a seleção de seis dos coletivos mapeados para um trabalho mais profundo. “Encaminhei um formulário apenas para as membras dos selecionados, pegando mais informações sobre a participação de cada uma, e as pessoas que responderam são as que se disponibilizaram a participar da entrevista em profundidade que estou realizando agora”, explica. Assim, a primeira etapa, como a professora Karla Holanda de Araújo apresenta, foi mais abrangente, dedicada a encontrar os coletivos; já a segunda, propôs um aprofundamento em como é a dinâmica desses grupos e como se organizam. Nas conversas, são levantadas questões que Noronha pretende utilizar em um artigo científico e servem para entender como esses conjuntos estão atuando na transformação da vida dessas mulheres tanto pessoal quanto profissionalmente.
Nos coletivos é criada uma rede de apoio para além do âmbito profissional e um espaço acolhedor, sem deixar de lado as tensões e contradições encontradas ao trabalhar com o audiovisual como profissionais de diferentes recortes sociais e de gênero. Os resultados parciais do projeto foram apresentados na Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (Socine), em 2022, e também serão apresentados no Colóquio de Cinema e Arte da América Latina (COCAAL), em setembro deste ano. No site, está disponível todo o mapeamento dos coletivos que integraram a primeira etapa da pesquisa. Também é possível utilizar filtros para selecionar regiões ou o tipo de atuação para saber mais detalhes sobre eles: https://coletivasdecinema.com.br/pesquisa/.
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Danielle Parfentieff de Noronha é pós-doutoranda do Programa de Pós-graduação em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal Fluminense (PPGCine-UFF). Doutora em Mídia, Comunicação e Cultura pela Universitat Autònoma de Barcelona (UAB, 2017). Possui mestrado em Antropologia pela Universidade Federal de Sergipe (UFS, 2013) e graduação em Jornalismo pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP, 2009). É vice-líder do Grupo de Estudos Culturais, Identidades e Relações Interétnicas - GERTs, da UFS, e pesquisadora do Grupo Documentário e Fronteiras, da UFF, e do Grupo Geni - Gênero e Interseccionalidades na Comunicação, da UFS.
Karla Holanda de Araújo é professora do curso de Cinema e Audiovisual do Programa de Pós-graduação em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal Fluminense (PPGCine-UFF). É pesquisadora Nova Cientista do Nosso Estado/Faperj, doutora em Comunicação (UFF), onde estudou a produção documentária independente, centrando-se no Programa DocTV, e mestra em Multimeios (Unicamp), onde desenvolveu pesquisa sobre o documentário feito no Nordeste. Realizou pós-doutorado no Núcleo de Estudos de Gênero - PAGU/Unicamp (2019-2020). É autora do livro “Documentário Nordestino” (Annablume, 2008); organizadora do livro “Mulheres de Cinema” (Numa, 2019); e coorganizadora dos livros “Feminino e Plural: mulheres no cinema brasileiro” (Papirus, 2017) e “Cinema e América Latina: estética e culturalidade” (Socine, 2016).