Uma afronta às mulheres e aos seus direitos
Metrópoles
Arthur Lira não rasgou a fantasia de estadista porque nunca a vestiu, por mais que tenha sido aconselhado a vesti-la. A fantasia nunca coube nele. Uma vez político do baixo clero, aprendiz de Eduardo Cunha, o ex-líder do MDB e presidente da Câmara cassado e preso por corrupção, assim Lira se mantém até hoje.
Não foi Lira que se elevou, foi a política que se rebaixou a ponto de ele ascender à condição de presidente da Câmara, o terceiro na linha de sucessão do presidente da República. Para quem já foi acusado de violência doméstica e de estrupo pela ex-mulher, nada inusual que patrocine um projeto que atinge em cheio as mulheres.
O projeto de lei que equipara o aborto legal ao homicídio entrou na pauta do Congresso porque Lira está em dívida com os seus colegas evangélicos e precisa do apoio deles para eleger seu sucessor na presidência da Câmara. A dívida foi contraída para assegurar a Lira um segundo mandato de presidente.
Cobrado a pagá-la, ele bancou a aprovação para que fosse votado com urgência o Projeto de Lei 1904. O projeto fixa um teto de 22 semanas para a realização de qualquer procedimento de aborto em casos de estupro e equipara a punição para o aborto à reclusão prevista em caso de homicídio simples.
Assim, a mulher que fizer o procedimento, se condenada, cumprirá pena de 6 a 20 anos de prisão. A pena prevista para estupro é de 6 a 10 anos, podendo chegar a 8 ou 12 anos se houver lesão corporal. Quer dizer: a estuprada, mulher ou menina, arrisca-se a cumprir pena maior do que quem a estuprou. Uma aberração!
Você conhece algum lugar do mundo que imponha restrições ao direito do homem de mandar no próprio corpo? Pode existir, mas ignoro. Mas certamente você conhece ou já ouviu falar de lugares que proíbem as mulheres de mandar no seu corpo; são muitos esses lugares. Os Estados Unidos voltaram a ser um deles.
Lira jamais imaginou que a rejeição popular ao Projeto de Lei 1904 seria tão imediata, gigantesca e barulhenta – e isso é só o começo. Amedrontado, saiu-se com esta para enganar os trouxas:
“O fato de você votar a urgência de um projeto não quer dizer que ele vai ser aprovado nem que será o mesmo texto, porque o caminho ainda é longo. É uma Casa plural, com pensamentos diversos, ideologias e partidos diversos, e minha única função é promover o debate”.
Se sua única função “é promover o debate”, por que a votação do regime de urgência do Projeto de Lei 1904 se deu em pouco mais de 20 segundos, sem que muitos deputados sequer soubessem o que estava em votação, sem que fosse pelo menos mencionado o número do projeto e, naturalmente, sem nenhum debate?
Se soubesse do que se tratava, qualquer deputado poderia requerer votação nominal. Então, se saberia se havia quórum para votação. Havendo, se saberia também como cada um votou. Só se conhece os nomes dos 33 deputados autores do projeto. O país foi pego de surpresa. O cinismo de Lira não tem limite.
O que ele disse mais:
“É um texto polêmico e, se não tiver condição, se não tiver consenso, não vai ao plenário. Mas, por sentimento, entendo que o Congresso não irá avançar em cima do que já está pacificado na legislação, com as exceções que se permitem [para o aborto]”.
Se Lira diz somente agora que o projeto de lei 1904 “é um texto polêmico”, e que “se não tiver consenso” não irá ao plenário, por que patrocinou a urgente votação dele, sem debates, às escondidas? Porque Lira é Lira e suas excrescências, um presidente de Câmara indigno, desprezível e aliado do atraso.