Um jabuti grotesco foi acoplado na LDO de 2024. Numa tacada só, o Partido Liberal (PL), com amplo apoio na Câmara e no Senado, conseguiu acrescentar no texto da Lei que orienta o orçamento público uma proibição de financiamento estatal para políticas de saúde, direitos humanos, reforma agrária.
Talita Victor - Assessoria Técnica da Bancada do PSOL na Câmara
A emenda-jabuti inseriu na Lei o eixo propositivo de aberrações legislativas contidas em projetos como Escola Sem Partido, Estatuto da Família, Estatuto do Nascituro e o pacote Invasão Zero.
Antes, porém, é preciso analisar o contexto.
Na tarde desta terça-feira, 19 de dezembro, em sessão conjunta do Congresso Nacional, foi aprovada a Lei de Diretrizes Orçamentárias, a LDO ou PLN no 4/2023.
O relator da matéria, deputado Danilo Forte (União Brasil – Ceará) conduziu, junto ao governo, um amplo acordo para aprovar seu texto, que já impunha derrota significativa ao Poder Executivo, com a inovação de um calendário para liberação de emendas, chamada por muitos de “parlamentarismo orçamentário”.
O governo, apesar de entender que essa nova modalidade de emendas impositivas dos parlamentares deve prejudicar os investimentos do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), orientou voto favorável ao parecer de Danilo Forte. Até aí, tudo corria dentro do esperado, das derrotas já esperadas.
Em nome do acordo, quase todos os destaques que visavam mudança no texto da LDO foram retirados e apenas dois foram à discussão e votação. O Governo calculou que ambos seriam derrotados e subestimou a capacidade de articulação do bolsonarismo em torno do que muitos ainda insistem em denominar “agenda de costumes”, “cortina de fumaça”, etc.
O primeiro destaque, da Liderança do PSOL, alterava a meta de resultado primário, passando do déficit zero para déficit de 1%. Este foi rejeitado simbolicamente.
Já o segundo destaque, da Liderança do PL, foi aprovado. E é sobre ele que precisamos nos debruçar para entender o que esperar do parlamento brasileiro em 2024.
Trata-se da emenda n° 30880002, devidamente costurada pelos filhos de Jair Bolsonaro e Abelardo Lupion, respectivamente Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e Pedro Lupion (PP-PR), que dispunha o seguinte:
Art.....É vedado à União realizar despesas que, direta ou indiretamente, promovam, incentivem ou financiem:
I – invasão ou ocupação de propriedades rurais privadas;
II - ações tendentes a influenciar crianças e adolescentes, da creche ao ensino médio, a terem opções sexuais diferentes do sexo biológico;
III – ações tendentes a desconstruir, diminuir ou extinguir o conceito de família tradicional, formado por pai, mãe e filhos;
IV – cirurgias em crianças e adolescentes para mudança de sexo;
V – realização de abortos, exceto nos casos autorizados em lei.
A despeito das muitas inconstitucionalidades desse texto, da sua injuridicidade gritante, o que assusta é que essa emenda contou com o expressivo apoio de 305 deputados e 43 senadores, números muito próximos dos três quintos necessários para aprovar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), que exige 308 votos na Câmara e 49 no Senado.
E tudo isso acontece poucos dias depois de serem derrubados os vetos do Marco Temporal (PL 490/2007), uma tese já declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF), mas que, uma vez reafirmada sucessivas vezes pelo Legislativo, notadamente em 2023, serve para legalizar e aprofundar as invasões de territórios indígenas.
Assim, tivemos um amargo presente de fim de ano, emoldurado em um combo agrofundamentalista, que contém “invasão de terra; ideologia de gênero; assassinato de bebês”. Todo esse espantalho narrativo, repetido à exaustão nos microfones do Congresso e fartamente disseminado pelas redes de desinformação, tem dado liga à extrema direita e mantém mobilizado o fascismo no Brasil, porque coesiona muito bem a misoginia, o ódio de classe, o racismo e a homotransfobia.
O resultado dessa votação se torna ainda mais grave, se considerarmos que, durante governo anterior, o Congresso Nacional não fez avançar a agenda fundamentalista no Parlamento e tampouco instalou uma CPI para criminalizar o MST e outros movimentos de luta pela terra – o que aconteceu em 2023. Todos os elementos desse combo agrofundamentalista, operados por meio do Executivo, não ecoaram no Legislativo da forma que temos visto neste momento, a ponto de aprovarem essas pautas.
Ou seja, mesmo sob Bolsonaro, não se conseguiu levar a plenário o conjunto de projetos chamado Escola sem Partido, encabeçados pelo PL 7180/2014, cuja ideia central havia sido elaborada inicialmente em 2004, e que o STF declarou inconstitucional. Também não se levou a plenário o Estatuto da Família, cujo objetivo de não reconhecer o casamento igualitário pró- cidadania LGBT esbarrava em decisão anterior também do STF. O mesmo aconteceu com o Estatuto do Nascituro (PL 478/2007) e sua tese de proibição absoluta do aborto, a partir da definição do início da vida humana no ato da fecundação entre gametas – matéria parada em comissão.
Sobre esse último, todavia, importa ressaltar o recente voto da (ex) Ministra Rosa Weber do STF, em sede da ADPF 442, favorável à descriminalização do aborto até a décima segunda semana, e o anúncio do backlash (revanche/retaliação) por parte do Congresso. Trata-se de uma reação esperada e aqui vale um paralelo histórico: em 1973, A Suprema Corte dos EUA descriminalizou o aborto naquele país e, pouco tempo depois, o Parlamento aprovou a “emenda Hyde”, que proibia seu financiamento por recursos federais.
Em síntese, o que se demonstrou na tarde dessa terça-feira foi uma vitória de plenário dessa aliança já consolidada entre a bancada ruralista, embalada pela vitória no Marco Temporal, e a bancada “Pró-Vida e Pró-Família”, representante do extremismo religioso, que compõem o núcleo duro do bolsonarismo ao lado da bancada da bala, pró-Armas.
Numa movimentação unificada, com precisão estratégica (frise-se), conseguiram atacar com bastante força os direitos sexuais e reprodutivos, a diversidade sexual, a demarcação de terras, a reforma agrária.
Unidade, por sinal, anunciada pelos ruralistas Alceu Moreira (PMDB-RS) e Luiz Carlos Heinze (PP- RS), dez anos atrás, quando eles bradavam a fazendeiros, incitando a ação armada “quilombolas, índios, gays, lésbicas [e invasores de propriedades rurais] são tudo o que não presta” e ainda “reúnam verdadeiras multidões e expulsem [esses vigaristas] do jeito que for necessário”.
E assim, impuseram um baque na agenda feminista, indígena, LGBTQIA+ e na luta pela terra, dando um recado muito estridente ao STF e ao Governo Lula. Sim, vale registrar que ainda cabe o veto presidencial. Resta saber se haverá força e mobilização capazes de reverter o placar dessa terça-feira.
Ademais, é preciso questionar, em meio a essa queda de braços entre Legislativo, Judiciário e Executivo, que segmentos da população vão pagar a conta de uma governabilidade pós-Bolsonaro, mas radicalmente atravessada pelo bolsonarismo.