Os bastidores do depoimento do líder do MST, que foi inquirido por mais de seis horas e cozinhou a extrema direita
fonte: Os deputados federais Zucco (Republicanos-RS) e Ricardo Salles (PL-SP), presidente e relator da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), respectivamente, preparam um ambiente de guerra para receber João Pedro Stedile, líder do movimento que depôs nesta terça-feira (15) na comissão.
Na véspera do depoimento, Salles e Zucco decidiram que a sessão aconteceria no Plenário 4, onde cabem 80 pessoas. O Plenário 2, onde normalmente ocorrem as reuniões da comissão, tem capacidade para 150 pessoas. Nos bastidores, ficou evidente que a medida foi tomada para evitar que a militância do MST pudesse ocupar a sala e influenciar o ambiente.
Após quase três meses de baixa adesão popular e com cobertura tímida da mídia, o depoimento de Stedile era a bala de prata para os parlamentares bolsonaristas, motor propulsor da CPI. Ao final da audiência seria possível saber se a comissão ganharia uma sobrevida ou se morreria.
Antes do depoimento, deputados governistas, apoiadores do MST, ocuparam a primeira fileira do plenário, todos usando o boné do movimento. A medida foi uma decisão da bancada para demonstrar apoio a Stédile.
A lista de inscrições também foi alvo de uma tática de governistas. Os parlamentares apoiadores do MST decidiram que se dividiriam em dois blocos, no meio da relação, para que a sessão tivesse um respiro, após a intervenção de parlamentares bolsonaristas e no final, para garantir que o encerramento não fosse feito pela oposição.
Quando Salles inaugurou a sessão, silêncio absoluto no plenário. Era a primeira vez que o ex-ministro do Meio Ambiente, símbolo da defesa do agronegócio quando chefiava a pasta, encontrava publicamente com Stédile, um dos principais nomes da luta pela reforma agrária no país.
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Antes do início da sessão, Salles e Stedile já haviam se encontrado próximo da porta do plenário e trocaram um aperto de mãos, provocado por Roberto Podval, advogado do líder do MST, mas que advoga também para o ex-ministro. Após o cumprimento, ambos sorriram.
Entre um gole e outro em seu chá-preto, Stedile escutou pacientemente Salles, que mudou seu estilo diante do líder do MST. O relator, costumeiramente incisivo em seus questionamentos, preferiu um estilo técnico e político, para surpresa da defesa do líder sem terra, que esperava outro comportamento.
Na véspera, Stedile foi instruído por sua equipe de defesa e assessores do movimento a evitar provocações e piadas com a tropa de choque bolsonarista. Também não responderia questões pessoais, deixando o depoimento circunscrito à sua trajetória de militante e líder do movimento.
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Costumeiramente, Zucco posiciona o depoente ao lado do relator, para que Salles possa inquirir as testemunhas mais de perto, se impondo fisiciamente. No entanto, interlocutores do deputado federal e de Stedile acharam melhor intervir, para que eles se sentassem em lados opostos na mesa. Assim foi feito: o ex-ministro do Meio Ambiente ficou na ponta esquerda e o líder sem terra no lado direito.
O candidato
Após meia hora de fala na abertura da sessão, direito regimentar do relator, Salles pediu mais 30 minutos, que foram aprovados por Zucco. Como o tempo é paralisado durante a resposta do depoente, o ex-ministro do Meio Ambiente falou durante três horas, assistido pelos 29 deputados federais inscritos na comissão.
A cada pergunta precedida por comentários longos de Salles, bolsonaristas suspiravam alto, ansiosos para que o ex-ministro os escutasse. Do outro lado, Stedile respondia cada questão aprofundando o tema, desenvolvendo teorias e colocando na mesa argumentos em defesa da reforma agrária. Para surpresa de governistas e oposicionistas, não era interrompido pela dupla Zucco-Salles.
Em determinado momento, dois assessores de deputados bolsonaristas, irritados com Salles, conversavam sobre a postura do relator na CPI. "Ele está se comportando como candidato, quer aparecer para a audiência", disse um deles.
Salles é pré-candidato à Prefeitura de São Paulo nas eleições de 2024. Embora o PL, seu partido, não o considere para o cargo, o ex-ministro de Bolsonaro pretende insistir na disputa e pode trocar de partido para concorrer no pleito. Um embate com um dos principais líderes da esquerda, em rede nacional, a um ano da eleição, é tentador demais para o relator da CPI.
Correram
Com o passar do tempo, a tática adotada pela defesa de Stédile, de evitar o enfrentamento e as ironias, recurso que o líder do MST aprecia, funcionou e a sessão, que precisava pegar fogo para agradar as redes da extrema-direita, estava morna, estagnada na falta de conhecimento dos bolsonaristas.
Após a longa intervenção de Salles e da tranquilidade de Stedile, que seguia sem ser incomodado por questões da oposição, bolsonaristas começaram a abandonar a sessão. Da tropa de choque da extrema-direita na comissão, costumeiramente estridente, chamou a atenção que os deputados federais Gustavo Gayer (PL-GO), Zé Trovão (PL-SC), Marcos Pollon (PL-MS) e Capitão Alden (PL-BA) saíram antes que seus nomes fossem anunciados e não quiseram enfrentar o líder sem terra.
Após mais de seis horas de sessão, governistas e a direção do MST saíram aliviados, com a sensação de que o depoimento de Stedile colocou um ponto final na CPI. "Os deputados da base do agro militar não contavam com este depoimento. Na verdade, a CPI serviu para que as lideranças do MST contem a história do movimento e seus propósitos. Essa CPI se encerra hoje, daqui pra frente é só encher linguiça. Hoje, foi o fechamento com chave de ouro", afirmou Ney Strozake, advogado do líder sem terra.
O deputado Marcon (PT-RS) corroborou a sensação de fim de trabalhos. "Essa CPI pode ter acabado hoje, mas eles vão espernear até o último minuto e tem o relatório do Salles, que vai criminalizar o MST. Vamos esperar, mas não tem mais o que acontecer, agora é só esperar o relatório", disse.
Edição: Thalita Pires
Bancada petista na CPI do MST em defesa da reforma agrária. Fotos: Gustavo Bezerra
João Pedro Stedile desmascarou os bolsonaristas
O líder do MST João Pedro Stédile defendeu nesta terça-feira (15) que a reforma agrária deve ser priorizada no País. Segundo ele, pelo fato de a agricultura familiar não ter sido prioridade nas últimas décadas – inclusive com distribuição de terras – houve uma excessiva concentração de terras em latifúndios improdutivos e em setores voltados exclusivamente à exportação. Durante a reunião, Stédile desmontou ainda narrativas de que o MST teria métodos autoritários de organização.
Ele explicou que as regras internas de acampamento e assentamentos são democráticas e definidas em assembleia, por decisão da maioria dos votantes.
Sobre a reforma agrária, Stédile ressaltou que a democratização do acesso à terra daria um novo impulso à economia brasileira, além de beneficiar dezenas de milhares de famílias atualmente acampadas. O líder do MST explicou que, apesar dos elogios de bolsonaristas ao atual modelo de produção de alimentos no Brasil, o atual sistema pode acabar inviabilizando a própria agricultura brasileira.
“Atualmente, os bancos e o capital financeiro se apropriam dos ganhos da agricultura. A taxa de renda média da produção para o agricultor é de 13%, os outros 87% vão para o capital financeiro e às multinacionais”, explicou.
O líder do MST disse ainda que setores do próprio agronegócio brasileiro, principalmente que apoiaram o presidente Lula na última eleição, já se conscientizaram que é preciso adotar um novo modelo de produção, com mais respeito ao meio ambiente, sem desmatamento e uso de agrotóxicos que contaminam os alimentos, o solo, a água e o ar.
“A União Europeia já determinou que não vai mais adquirir produtos exportados com glifosato (agrotóxico). Daqui a pouco tempo não vai dar mais para o Brasil exportar frutas, por exemplo. É possível produzir com bioinsumos, aumentar a produtividade sem agrotóxicos e preservando o meio ambiente. E esse modelo pode ser adotado pela agricultura familiar, que produz alimentos exclusivamente para o mercado interno”, disse ao defender a reforma agrária.
Acusação de desvios éticos
Ao responder perguntas de parlamentares bolsonaristas sobre a vinda à CPI de ex-militantes do MST que alegaram terem sido vítimas de violência ou ameaça por discordarem de regras dentro de acampamento e assentamentos, Stédile destacou que não concorda com resolução de conflitos interno com uso da força.
Segundo ele, o mesmo acontece nos casos citados pelo relator, deputado Ricardo Salles (PL-SP), sobre suposta apropriação de contribuições. Porém, ele ressaltou que dentro de um universo de 500 mil famílias assentadas ou das 60 mil famílias acampadas, casos isolados de desvio de conduta não podem caracterizar todo o movimento.
“Ainda que possam existir problemas, não se pode culpar o MST. Temos que separar o que é fato do que é política”, disse sobre casos de desentendimentos originados pela disputa de poder. “Os acampamentos e assentamentos fazem as suas regras em assembleias, com voto da maioria. Então, para conter desvios existem decisões colegiadas, divisão de tarefas e disciplina para quem desobedece. Se houve qualquer excesso, aí é caso de delegacia” explicou.
Em relação a alguns casos citados por Bolsonaristas onde teriam ocorridos abusos, Stédile lamentou que outros moradores de acampamentos e assentamentos não tenham sido ouvidos. “Acredito que a CPI deveria ter convidado os vizinhos dessas pessoas que fizeram essas denúncias. É preciso ouvir os dois lados”, observou.
Ocupações ou invasões?
Durante o depoimento, Stédile também desmontou a narrativa sempre repetida pelos deputados bolsonaristas, de que o MST seria um “movimento criminoso” por “invadir terras”. João Pedro Stédile explicou que, quem invade terra pública – ou terras indígenas e quilombolas – são os latifúndios. Segundo ele, essa prática é considerada esbulho possessório, ou seja, invadir para obter ganhos pessoais.
Ao contrário, o líder do MST explicou que já existe jurisprudência da própria justiça de que as ocupações promovidas pelo MST são uma forma justa de luta.
“Nunca incitei crime algum. O que o MST faz é ocupação de terra como forma de pressionar o Estado para que cumpra a Constituição, que é fazer a reforma agrária. E quem decide onde irá ocorrer alguma ocupação de áreas improdutivas ou griladas, são os próprios acampados”, revelou sobre a ausência total de participação da direção nacional sobre essas decisões.
Sobre a acusação de deputados bolsonaristas sobre um possível chamamento de Stédile para uma “onda de invasões” no chamado “Abril Vermelho”, o líder do MST explicou que sua declaração sobre a data foi tirada de contexto para criminalizar o movimento.
“Para nós do MST o dia 17 de Abril é uma data importante porque perdemos companheiros em Eldorado dos Carajás (Massacre que vitimou 19 Sem Terras). O governo Fernando Henrique Cardoso decretou o 17 de Abril como Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária. O que eu fiz à época foi defender atos nesse dia em homenagem aos nossos mártires”, esclareceu.
MST incentiva a educação
O líder do MST destacou que o movimento tem entre seus princípios organizativos o crescimento educacional de seus militantes. “O fato de ser camponês não dá o direito de ser ignorante, no sentido de não ter conhecimento. Por meio do Pronera (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária), mais de 250 advogados saídos de assentamentos já se formaram – inclusive com carteirinha da OAB – além de mais de 6 mil camponeses que já chegaram à universidade.
Petistas elogiam participação de Stédile na CPI
Deputados petistas elogiaram a coragem do líder do MST em comparecer à CPI, sem buscar Habeas Corpus, mesmo prestando depoimento sob juramento de dizer a verdade. Em nome da liderança do PT, a presidenta nacional do partido, deputada Gleisi Hoffmann (PR), declarou que é uma honra lutar ao lado de Stédile pela reforma agrária no País.
“Cumprimento o Stédile pela sua luta, que é a luta da esquerda pelos mais pobres. Sabemos que esse relatório (da CPI) já está pronto e vai criminalizar o MST, porque esse é o posicionamento dos que não concordam com a reforma agrária e dizem que lutar por ela é crime. Tenho muito orgulho de lutar ao seu lado, e do MST, pela reforma agrária”, declarou.
Em nome da liderança do governo Lula na Câmara, o deputado Alencar Santana (PT-SP) também ressaltou a importância do MST.
“Quero parabenizá-lo (Stédile) pela aula que nos deu e pela luta do MST em defesa da reforma agrária, por justiça social e pelo direito de milhares de famílias produzirem. Sabemos da sua luta em defesa da reforma agrária e da democracia, diferente daqueles que o acusam e que defenderem o golpe. Temos muito orgulho de você e da sua luta em defesa da reforma agrária e da agricultura familiar no Brasil”, afirmou.
Também discursaram e fizeram perguntas a João Pedro Stédile os parlamentares petistas Padre João (MG), Nilto Tatto (SP), Marcon (RS), Paulão (AL), Valmir Assunção (BA) e Adriana Accorsi (GO).
Héber Carvalho