Premiado no Festival de Gramado, o longa de Christiane Oliveira A primeira morte de Joana, sobre o rito de amadurecimento juvenil, estreia no DF
Com apoio do brasiliense Gustavo Galvão no roteiro do mais novo longa (A primeira morte de Joana), a diretora Cristiane Oliveira cercou-se de colaborações internacionais como a da consultoria no roteiro do português João Nicolau e a presença dos técnicos Raúl Locatelli e Nohemi Gonzales.
O reforço do "tom onírico" na história de duas meninas (interpretadas por Letícia Kacperski e Isabela Bressane) em fase de transformações veio ainda do artista plástico e cineasta Cao Guimarães, que auxiliou na montagem, que rendeu a Tula Anagnostopoulos prêmio no Festival de Gramado. Filmado na região de lagoas gaúchas, o longa teve locações nas cidades de Osório e Santo Antônio da Patrulha.
"As experiências pessoais servem de inspiração, mas são ressignificadas no contexto do filme, que contou com a colaboração da atriz e roteirista Silvia Lourenço. Memórias de nós duas se misturaram na escritura da trajetória da protagonista Joana", observa a diretora, em entrevista ao Correio.
A diretora contesta atitudes desumanas que rendam atraso social. "Toda a tradição que não respeite a cidadania íntima das pessoas me interessa questionar", enfatiza. Selecionado para o Talents Script Station (laboratório de desenvolvimento do Festival de Berlim), o próximo longa de Christiane será uma coprodução italiana, e traz uma senhora pronta para se reinventar a fim de manter a família unida "em tempos de polarização".
Entrevista // Cristiane Oliveira, cineasta
No preparo do elenco, pesaram cuidados especiais, pelo tema de A primeira morte de Joana?
Ambas atrizes adolescentes estavam na faixa etária das personagens. Assim que escolhidas, formamos um grupo de diálogo conjunto com os pais sobre as temáticas do filme, para escutarmos as experiências um do outro. E essa vontade de ouvir me guiou também na direção: não dei o roteiro a elas num primeiro momento. Eu contava das situações e ouvia o que elas tinham a dizer a respeito, debatíamos como a personagem reagiria e escrevíamos as falas como elas falariam.
Dentro do cinema, como espectador, percebe mudanças de retrato das mulheres?
Sim, há mais divulgação sobre a história do cinema realizado por mulheres e cada vez mais diretoras realizando. A trajetória é árdua, em especial pela falta de apoio adequado à maternidade. Toda mulher que consegue chegar a lançar comercialmente seu filme coloca mais um tijolinho nessa construção coletiva pela igualdade.
Há alguns traços de filmes clássicos de Ingmar Bergman, no novo filme?
Não foi uma referência direta, mas admiro como Bergman mergulha na intimidade humana. Escrevo sempre buscando trazer o espectador para junto dos conflitos internos dos personagens. Outra conexão com Bergman talvez seja a relação do humano com a religiosidade. Nomes que estiveram presente em minhas trocas com o fotógrafo Bruno Polidoro (premiado em Gramado) foram Dorota Kedzierzawska e Krzysztof Kieslowski.
Filmar cenas e um terreiro exigiu que nível de autenticidade?
Rodamos num terreiro real, com seu grupo agindo como de costume. E, no sentido de preservar os mais velhos com sensibilidade para “receber” as entidades, foram eles que escolheram quem representaria o momento-chave: alguém com experiência para saber o que ocorre com o corpo, mas com o controle para não “receber” de fato, pois havia o risco. Definimos antes as músicas para o técnico de som saber quem microfonar. A partir daí, a câmera dançou livremente com eles.
Dois filmes sobre estranho país
Em A Primeira morte de Joana, de Cristiana Oliveira, garota explora suas relações familiares e sexualidade em meio aos horizontes vastos e à moralidade estreita do extremo Sul. Jair Rodrigues, de R. Rewald, aponta peculiar negritude do músico
Publicado 04/05/2023 às 15:45
Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema
No extremo sul do Brasil, uma menina de 13 anos investiga sua relação com o mundo ao redor e com sua própria sexualidade. Este poderia ser um resumo de A primeira morte de Joana, de Cristiane Oliveira, embora deixando de fora boa parte da riqueza do filme.
Entre a infância e a adolescência, entre a casa e a escola, entre o mundo das meninas e o dos meninos, o percurso de Joana (Letícia Kacperski) se faz de modo hesitante, mas decidido. Tudo começa com a morte de sua tia-avó Rosa (Rosa Campos Velho), uma artesã solteirona que nunca teve um namorado. Essa circunstância singular leva a garota a perscrutar os traços biográficos de Rosa, sem perceber que o que estava procurando entender era seu próprio corpo, suas pulsões e seus medos.
https://youtu.be/fP95l32d0xQ
Romance de formação
A diretora Cristiane Oliveira filma esse romance de formação com habilidade e sutileza, entrelaçando de modo orgânico o drama interior de Joana e o ambiente familiar, geográfico e social em que se desenrola.
Na região das grandes lagoas gaúchas – “onde o vento faz a curva”, como brinca uma professora – tudo adquire aos poucos um significado ao mesmo tempo informativo e simbólico, vale dizer, poético: as enormes torres eólicas que as meninas chamam de “cataventos”, as algas que proliferam na superfície da lagoa, os bonequinhos de argila criados pela tia-avó, um pequeno altar com velas acesas numa gruta da mata, etc.
A paisagem bucólica esconde mal um ambiente provinciano e opressivo, de reiteração de preconceitos e de controle da conduta alheia. Há coisas que só meninos podem fazer, há afetos e desejos proibidos. A família, a escola, o pastor: toda uma rede de vigilância funciona com o automatismo dos fenômenos da natureza.
A amizade de Joana com a colega de classe Carolina (Isabela Bressane) torna-se alvo de mexericos e zombarias. A própria Joana não compreende bem essa relação e suas reações a ela. Seu corpo ainda é quase um desconhecido em transformação. E ela só tem como espelho e parâmetro a vida das mulheres mais próximas: a avó ainda ativa sexualmente (Lisa Becker), a mãe solitária (Joana Vieira) que prega uma castidade impossível – além, claro, da mencionada tia-avó que teria morrido virgem.
Descobertas tateantes
Essa atenção às tateantes descobertas da protagonista quanto a seus próprios desejos impede o filme de cair no maniqueísmo militante de tantas obras sobre o “empoderamento” da mulher. Encarar a si mesmo é sempre mais difícil que abraçar exteriormente uma identidade, uma causa, um discurso.
A primeira morte de Joana não abandona sua protagonista nem por um momento, espiando com ela por frestas de portas, entreouvindo conversas sussurradas, parecendo oscilar e descobrir junto com a menina os mistérios da condição feminina num ambiente adverso.
Realizado em 2019 (e ambientado em 2007), o filme só agora chega aos cinemas brasileiros, inclusive ao IMS Paulista, depois de ter sido triplamente premiado em Gramado (prêmios da crítica, fotografia e montagem) e percorrido dezenas de festivais mundo afora.
Jair Rodrigues
Um bom documentário sobre uma figura famosa é aquele que vai além da mera hagiografia ou celebração e revela aspectos pouco conhecidos do biografado. É o caso de Jair Rodrigues – Deixa que digam, de Rubens Rewald, em cartaz nos cinemas.
Com sua gestualidade exuberante, seu sorriso do tamanho do mundo, Jair Rodrigues sempre foi visto mais como um “entertainer” do que como um intérprete “sério”, e colocado numa espécie de segunda divisão da música popular brasileira. Se não chega a desfazer esse veredicto, o documentário de Rewald traz ao primeiro plano pelo menos dois aspectos geralmente negligenciados da arte do cantor.
https://youtu.be/CZu5FgNChWg
O primeiro tem a ver com sua negritude, que não se expressava em discursos e posicionamentos explícitos (o que lhe rendeu acusações de omissão e alienação), mas no seu modo de cantar e se apresentar no palco. Assim como, em outros registros, Jorge Benjor, Tim Maia e Wilson Simonal, Jair contribuiu para “re-enegrecer” uma música popular que havia embranquecido com a bossa nova.
O outro aspecto que o filme destaca é o trânsito do cantor entre o samba e a música sertaneja. Nascido no interior paulista, trabalhando desde menino na roça, Jair se criou no universo da música caipira da época. Ao se profissionalizar, cantando em boates, no rádio e na televisão, afastou-se por um tempo dessas raízes, mas as reencontrou na maturidade, quando gravou “Majestade, o sabiá”, de Roberta Miranda, alcançando um sucesso que não via desde os tempos do célebre “Fino da Bossa”, programa de TV com Elis Regina. Parecia que tinha nascido para cantar aquilo.
Jair Rodrigues – Deixa que digam é sóbrio, informativo, repleto de material de arquivo e depoimentos bem escolhidos. Seu único esboço de ousadia formal é colocar o cantor Jair Oliveira, filho do biografado, para reproduzir falas do pai, como se interpretasse o seu papel. É, em grande medida, um documentário convencional, desses que têm a modéstia de se recolher na sombra para deixar seu retratado brilhar.