Quase lá: Cuba: o que aprender com as brigadas internacionais de saúde

A solidariedade médica do país caribenho é exemplo de como garantir atendimento a populações vulneráveis. Programa começou há 60 anos e é responsável também por formar profissionais nos países onde atua

Médica cubana atende família na África do Sul. Foto: Granma

Em maio de 1963, um grupo de trabalhadores da saúde cubanos chegou à Argélia para apoiar os esforços de reconstrução do país após a independência da França. Durante a formação da equipe, nenhum de seus membros sabia o que esperar. “Agora, quando você diz que esteve em uma missão, as pessoas entendem o que você quer dizer. Já existe uma história, uma tradição. Naquela época não havia nada disso. Estávamos dando um primeiro passo, nos lançando ao desconhecido”, disse Pablo Resik Habib, um dos médicos que fez parte desse primeiro contingente, ao jornalista cubano Edelberto López Blanch.

60 anos depois, a solidariedade médica cubana é uma das poucas histórias de sucesso da saúde global. Centenas de milhares de pessoas sobreviveram a surtos de doenças infecciosas e outras milhões passaram a ter acesso à Atenção Básica graças à dedicação de Cuba em apoiar países irmãos.

As guerras travadas pelos Estados Unidos após 2001 já mataram – diretamente – pelo menos 906 mil pessoas. Muitas mais morreram como consequência indireta desses conflitos, e outras ainda sofrem suas consequências. Em contraste com isso, os profissionais cubanos já conduziram o parto de mais de 2 milhões de crianças ao redor do mundo desde a criação das brigadas internacionais de saúde. “Mandar médicos, e não soldados”, como afirmou Fidel Castro após o terremoto de 2010 no Haiti, faz toda a diferença.

Construindo sistemas públicos de saúde juntos

O primeiro grupo a viajar para a Argélia contava com cerca de 60 pessoas, incluindo médicos, enfermeiras e dentistas. Daquele momento até maio de 2022, 605 mil trabalhadores da saúde cubanos serviram em 165 países diferentes. Seu envolvimento vai da participação em programas emergenciais de resposta a surtos de doenças infecciosas e desastres – como furacões e terremotos –  ao oferecimento de atenção primária em saúde.

Além de enviar seus trabalhadores da saúde, Cuba também oferece formação médica aos habitantes de países do Sul Global. De 2005 a 2016, cerca de 25 mil estudantes dessas nações passaram pela Escola Latino-americana de Medicina (ELAM). O número se tornaria ainda mais alto caso abarcasse os estudantes que vêm de países de renda alta, incluindo os Estados Unidos. Nessa conta, mais de 27 mil estudantes estrangeiros já se formaram na ELAM. Seguindo um caminho oposto ao da maioria das faculdades de medicina, a ELAM prioriza matrículas de mulheres e pessoas de origem camponesa, operária e indígena. Isso assegura que os profissionais formados na Escola realmente conheçam, até por experiência pessoal, as condições em que seus pacientes vivem.

Os estudantes da ELAM não aprendem apenas as ciências médicas. Eles também são apresentados à concepção de saúde que surgiu a partir da revolução. Depois de um ciclo básico de estudos, os alunos são enviados para um estágio junto às equipes de médicos e enfermeiros distribuídas pelo país. Como assinala Helena Yaffe, historiadora econômica e especialista em América Latina, em seu livro We Are Cuba! [publicado pela Yale University Press em 2020; ainda sem tradução no Brasil], esses estudantes são ensinados a trabalhar de forma bem distinta de seus pares no Norte Global – dependem muito pouco de equipamentos de alta tecnologia e desenvolvem um espírito de camaradagem com as comunidades em que trabalham e seus praticantes de medicina tradicional.

Eles também são ensinados sobre o potencial revolucionário da medicina e a importância da participação dos trabalhadores da saúde nos movimentos anticoloniais e anti-imperialistas. Neste ano, por exemplo, os estudantes da ELAM promoveram um ato nos 75 anos da Nakba. 163 estudantes palestinos já se formaram na ELAM. Outros 50 ainda cursam seus programas de graduação e pós-graduação, segundo o ministério de Saúde Pública de Cuba.

Saúde Para Todos na prática

A formação médica para estrangeiros é conduzida em paralelo a um esforço nacional de ampliação da força de trabalho na saúde. Em 2022, Cuba contava com 9 médicos para cada mil pacientes, enquanto os Estados Unidos tinham 2,5 por mil. A distribuição dos profissionais da saúde em Cuba também é organizada de forma bastante distinta dos países ricos. Uma rede de clínicas e policlínicas espalhadas pelo país e baseadas nos princípios da Atenção Primária em Saúde assegura que o cuidado esteja disponível para todos que precisam, independente de onde vivam. Por sua vez, os países de renda alta – mais uma vez, os EUA inclusos – estão enfrentando um problema crescente de “desertos médicos”, em que comunidades rurais e populações específicas não têm nenhum acesso à saúde devido à falta de profissionais na região.

De fato, em uma época marcada pela escassez global de profissionais de saúde, a experiência cubana de formar sua própria força de trabalho e compartilhá-la com outros países deveria ser vista como um caminho a ser seguido por todos. Porém, no Norte Global, raramente se reconhece esse feito para além do apoio oferecido à Itália no combate à covid-19 em 2020.

Mas seria incorreto reduzir o internacionalismo da saúde de Cuba à assistência técnica oferecida em momentos de crise. Como os esforços educacionais voltados para enfermeiros, médicos e demais profissionais de saúde vindos de todas as partes do mundo mostram, os programas de saúde internacional dos cubanos oferecem um vislumbre de um cenário diferente do que domina hoje: o cuidado em saúde disponível a todos, independente do quão pobres sejam, oferecido por trabalhadores especializados e formados em um sistema público de educação.

Como afirmou José Ángel Portal Miranda, ministro da Saúde Pública de Cuba, na 76ª Assembleia Mundial da Saúde, o país “teve êxito em aplicar o princípio de ‘saúde para todos’”. São poucos os membros da Organização Mundial da Saúde que podem dizer o mesmo. O que ele não chegou a dizer explicitamente é que, por meio da solidariedade internacional promovida pelos trabalhadores da saúde da ilha, Cuba também lembra aos outros países que saúde para todos precisa ser mais que um lema.

   

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