Desigualdade social, racismo, negacionismo e o confronto entre o pensamento de Gilberto Freyre e de Florestan Fernandes são alguns dos temas discutidos na edição 85 da publicação
Texto: Luiz Prado
Arte: Simone Gomes
Capa da Revista do IEB, número 85 - Ilustração IEB
Começa com o direito à moradia. A noite é quente na periferia da zona leste de São Paulo. Litrões de cerveja e uma novena de São Sebastião. O prédio da Igreja Católica ainda no tijolo, sem reboco. Jogadores de futebol de várzea. Uma empresa privada empenhada na regularização fundiária de uma área ocupada. Irmãos e corres do PCC. Integrantes do movimento social e pesquisadores na mesa do bar.
Esses são os elementos com que Gustavo Prieto e Elisa Favaro Verdi apresentam seu trabalho etnográfico no número 85 da Revista do IEB, a mais recente edição da publicação quadrimestral do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. Prieto, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e Elisa, pós-doutoranda no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), integram o conjunto de autores de uma edição explosiva. Desigualdade social, racismo, negacionismo, invisibilidade feminina: o diagnóstico de um Brasil de ontem e de hoje que insiste em fechar os olhos para sua barbárie particular. Uma sociedade surrada, meio desnutrida, que ainda precisa pegar uma estrada bastante longa para fazer valer o slogan “democracia”.
“Irmãos na Terra Prometida: crime, igreja e regularização fundiária em São Paulo” é um relato sobre a violência da urbanização na periferia da capital paulista. Prieto e Elisa contam como um movimento social de bairro, Igreja Católica, crime organizado e empresas privadas se articulam na gestão do espaço urbano, transacionando zonas de atuação e transformando o direito à moradia em negócio. A propriedade da terra virando parte do processo de capitalização fundiária. Escrito com o sabor das boas narrativas etnográficas, o texto faz da descrição vibrante plataforma para análise das relações conflitivas em espaços marcados pela violência.
Continua na sala de aula. Da quebrada para o campus, segue a luta. A próxima batalha é contra o negacionismo, o descrédito em relação à ciência – sobretudo as ciências humanas – e a desvalorização dos professores. Quem escreve é Amanda Raquel Rodrigues Pessoa, professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), e Isabel Maria Sabino de Farias, professora da Universidade Estadual do Ceará (UECE).
Em “Negacionismo e educação: implicações e desafios à formação de professores na pós-graduação stricto sensu”, as autoras defendem a importância da pesquisa acadêmica para capacitar professores da educação básica no combate aos ataques à ciência que encharcaram a sociedade em tempos recentes.
Coleção Isa Aderne, Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB/USP)
Negacionismo que vicejou em um país incapaz de romper o modelo social caracterizado por um capitalismo hipertardio e dependente, cristalizado em um Estado burguês oligárquico-senhorial, lembram Amanda e Isabel. Em sua faceta recente, assediado pelo ultraconservadorismo econômico e social que levou a extrema direita ao poder, com suas bandeiras negacionistas e necropolíticas.
É nesse pesadelo de filme B que os movimentos reacionários montaram suas narrativas, nas quais liberdade de expressão, pensamento crítico e conhecimento científico são colocados em xeque e virados do avesso, enquanto professores e pesquisadores tornam-se o Judas malhado nesse perpétuo Sábado de Aleluia. “Uma onda de negação ao conhecimento e de desrespeito ao diferente intensifica-se e passa a compor acentuada expressão no cenário de atuação profissional do professor”, escrevem as autoras.
Diante desse quadro, pesquisa e reflexão oriundas de programas de pós-graduação stricto sensu surgem, na visão de Amanda e Isabel, como estratégias para rebater tais discursos na educação e na formação de professores. Não há espaço para falsas isenções ou imparcialidades: o projeto educacional de que tratam as autoras é socialmente referenciado e de caráter emancipatório. É preciso investir na formação crítica dos professores da educação básica, aprofundando as conexões entre teoria e prática, deixando de lado o pragmatismo alavancado pelos movimentos conservadores e ampliando a autonomia dos profissionais da educação.
“O que se defende é uma sólida formação docente, pautada em conhecimento científico, filosófico, estético, ético e político em articulação orgânica com a teoria e a prática”, escrevem Amanda e Isabel. “E isso requer pensarmos o conhecimento científico não como um fim em si, mas como um instrumento de superação, de contrarreforma no processo de produção de conhecimento, contrapondo-se a qualquer forma de discurso que não contribua para enxergar a realidade.”
Agora é na Universidade de São Paulo mesmo. Mesa de bar na ZL, sala de aula, Cidade Universitária. Em todo lugar os embates estão postos, aponta a Revista do IEB. Ainda que alguns confrontos surjam em formas mais sutis. Estamos agora entre as erudições do Departamento de Filosofia da USP e as aulas de uma ilustre professora (que poderia ser ainda mais ilustre, conforme veremos).
Entre tais meandros, Taisa Palhares se aventura e compõe o artigo “O legado invisibilizado do pensamento de Gilda de Mello e Souza”. Professora de Estética da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Taisa recupera a trajetória intelectual e acadêmica de Gilda e defende seu pioneirismo em diversos níveis de seu campo de estudos.
Uma das primeiras mulheres formadas na USP, em 1939, Gilda graduou-se em Filosofia aconselhada pelo primo Mário de Andrade. Foi assistente do professor e sociólogo francês Roger Bastide de 1943 a 1953 e se tornou responsável pela cadeira de Estética do Departamento de Filosofia da USP. Foi a primeira mulher professora no departamento e a fundadora dessa área na Universidade. Com esse currículo, seria de se esperar que Gilda fosse presença recorrente nos cursos de graduação e pós-graduação da área.
A realidade, contudo, é outra. De acordo com Taisa, o lugar de Gilda na história da estética tradicional é ao mesmo tempo um “não lugar”. Graças ao seu deslocamento da visão canônica da disciplina e um interesse menos alinhado aos grandes temas do campo. Pouco interessada nos clássicos e nos debates abstratos, Gilda elegeu a modernidade e a análise do concreto como seus temas. A moda do século 19, por exemplo, que foi tema de sua tese de doutorado.
Chegamos aos livros. Batalhar no campo das ideias – o que inevitavelmente leva ao concreto – também é o centro das preocupações de Gustavo Zullo, doutor pela Unicamp. Em seu artigo, o empenho do autor é contrapor dois projetos de democracia para o Brasil antagônicos, elaborados por duas das maiores intelectualidades que o País viu no século 20: Gilberto Freyre e Florestan Fernandes.
De um lado está o patriarcalismo e a democracia étnica do autor de Casa Grande & Senzala, postos a serviço de um projeto conservador para a nação. De outro, o entendimento do processo de exclusão racial em operação desde a colônia, não superado com a chegada da República e a substituição da estrutura estamental de senhores e escravos pela sociedade de classes com seus patrões e empregados, burguesia e proletariado.
“Projeto e antiprojeto para a democracia no Brasil: o antagonismo entre Gilberto Freyre e Florestan Fernandes” é o título. Zullo apresenta a proposta freyreana de articulação entre um novo pacto federativo e controle social na década de 1930, em sintonia com as medidas autoritárias colocadas em movimento com a chegada de Getúlio Vargas ao poder. E analisa também, como contraponto, a desconstrução do mito racial de Freyre e sua narrativa histórica por Florestan Fernandes, que a partir dos anos 1950 esteve empenhado no fortalecimento de um consciência revolucionária direcionada para a democracia e soberania nacional.
Freyre teve um papel fundamental na modernização do racismo, escreve Zullo, tornando a convivência com a cultura negra mais permeável sem, contudo, acabar com seu caráter segregacionista. Seu passado idealizado colocava senhor e escravo coexistindo em harmonia e suas soluções apontavam para a integração dos oposicionistas mantendo sua subalternidade. Para o Brasil das primeiras décadas do século 20, vivendo o crescimento das populações urbanas e, consequentemente, dos conflitos sociais, a receita de Freyre passava pela manutenção de seu patriarcalismo de contos de fadas, substituindo a figura dos senhores de escravos pelo Estado centralizador, responsável por tutelar as massas operárias e apaziguar os conflitos sociais.
Nesse sentido, a estabilidade das estruturas de poder durante os anos 1930 reuniria não apenas a atuação oficial do Estado, mas um disciplinamento da população branca como agente da segregação racial.
A tradição patriarcal se consolidava no mercado de trabalho, que admitia o negro sem mitigar as condições de desigualdade. Era a democracia que procurava manter os elementos do patriarcalismo colonial, tentando assegurar às elites o poder e a docilidade dos trabalhadores.“A democracia proposta por Freyre representava, acima de tudo, a adaptação da segregação típica da sociedade escravista construída no Brasil durante a colonização, e que se estendera até o fim do Império, para o regime republicano”, escreve Zullo.
O projeto de Florestan não poderia estar mais distante disso. Nada de convivência e confraternização entre senhores e escravos, patrões e empregados, dominantes e subalternos, um Estado de harmonia que precisava ser restaurado. Isso era um falseamento da história construído por Freyre, uma tentativa de congelar a descolonização.
“A realidade que ele denunciava era a de uma formação histórica fundamentada na segregação que resistia à mudança com unhas e dentes, o que a cada nova etapa histórica se adaptava com o intuito de autopreservação”, indica o autor.
Para Florestan, classe e raça se aproximam. A segregação racial permeia a vigência do regime de classes no Brasil. Os papéis criados durante o período colonial se desdobraram em uma sociedade de classes racial e socialmente segregada. Se para Freyre a modernização brasileira expressava um desgaste da democracia, que precisava ser restaurada, para Florestan simplesmente nunca houve algo que se assemelhasse à democracia no País. A entrada do Brasil no capitalismo dependente e no regime de classes não teria alterado os fundamentos antissociais de dominação.
“A dimensão escravista do senhor de terras não desapareceu por completo com a emergência do burguês, assim como a mercantilização do trabalhador no regime de classes não rompeu até o fim e até o fundo com o padrão de exploração do trabalho escravo”, escreve Zullo.
Assim, não era a aliança entre proletários e a burguesia “nacional” e “progressista” que deveria estar na pauta dos trabalhadores, conforme propunha a posição nacional-desenvolvimentista em voga na época, mas sim uma revolução em moldes comunistas. E, ao mesmo tempo, era preciso considerar o negro como pedra angular do processo revolucionário. “A revolução brasileira de Florestan necessariamente requeria o aprofundamento da educação popular antirracista, inclusive no intuito de educar o movimento sindical, e a sua integração a uma agenda anti-imperialista, o que fatalmente a levaria a posturas anticapitalistas e democráticas”, pontua o pesquisador.
De volta à revista. Epílogo. Há um Brasil que afirma, enfim, sua complexidade – nas ruas, nas universidades e nos livros. Corações e mentes em disputa, nas diferenças de que somos feitos, como diz o título do Editorial da revista. Diferenças que compõem uma democracia justamente quando são respeitadas de maneira integral, o que significa reconhecer as insuficiências ainda por resolver.
A escritura de uma casa própria na Vila da Vitória segue materialmente a argumentação de Florestan Fernandes, cujas palavras são irmãs dos apontamentos de Amanda e Isabel na defesa de uma formação crítica para os professores. Variações de uma estética pobre, que se detém na importância ruidosa do cotidiano. Estudos brasileiros, sem dúvida.
Revista do IEB, número 85, publicação do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, 207 páginas. Disponível neste link.
fonte: https://jornal.usp.br/cultura/revista-do-ieb-faz-diagnostico-do-brasil-de-ontem-e-de-hoje/