Competição de julgamento simulado sobre o Sistema Interamericano de Direitos Humanos debaterá caso hipotético de uma mãe negra, praticante de candomblé, que tenta recuperar a guarda da filha
Texto: Silvana Salles
Arte: Carolina Borin Garcia
Uma equipe formada por alunas da Faculdade de Direito (FD) da USP se prepara para viajar para Washington, capital dos Estados Unidos, para participar da 28ª edição do Concurso Interamericano de Direitos Humanos (IAMOOT, da sigla em inglês) organizado pela American University, de Washington. Trata-se de uma competição de julgamento simulado na qual estudantes de diferentes países se reúnem para debater um caso fictício que poderia chegar aos juízes da Corte Interamericana de Direitos Humanos – o órgão de monitoramento da Organização dos Estados Americanos (OEA) que julga violações de direitos humanos na região. A equipe deve chegar a Washington no dia 20 de maio. As atividades presenciais da competição vão de 21 a 26 de maio.
O caso é sempre inspirado em temas atuais e processos reais que passaram pelos tribunais dos Estados-membros da OEA. Nesta edição do evento, o tema é racismo religioso e o caso hipotético ocorre em um país fictício chamado “Mekinês”, que possui muitas características em comum com o Brasil. A competição tem duas etapas. Na primeira, as equipes elaboram memoriais escritos. Na segunda, que ocorre em maio em Washington, dois oradores vão debater o caso no julgamento simulado, que opõe a defesa da vítima e a defesa do Estado denunciado.
Equipe formada por alunas da Faculdade de Direito (FD) da USP que irá viajar para Washington, capital dos Estados Unidos, para participar da 28ª edição do Concurso Interamericano de Direitos Humanos (IAMOOT, da sigla em inglês) - Foto: Arquivo Pessoal/Isadora Valadares
A USP já participou outras vezes do IAMOOT, tendo obtido o primeiro lugar em 2015. Em 2023, a equipe da Universidade é 100% feminina. As duas oradoras são estudantes de graduação e a orientadora (“coach”) do time se formou no bacharelado da FD em 2021. Além disso, duas mestrandas da faculdade têm apoiado a equipe como consultoras e outras três graduandas estarão no IAMOOT como observadoras. Todas elas são envolvidas com projetos relacionados ao direito internacional ou aos direitos humanos.
Maria Carolina Ferreira, orientadora do time neste ano, conta que, tradicionalmente, as equipes de julgamentos simulados buscam doações de escritórios de advocacia para bancar os custos de participação. Porém, quando se trata de competições de direitos humanos, essas doações tendem a ser mais escassas. Por isso, para custear as despesas de viagem e as inscrições no evento, sua equipe está com uma vaquinha aberta para receber contribuições. Além disso, as participantes venderam produtos no dia da matrícula para ajudar a financiar a viagem. É possível ver os produtos que as estudantes criaram e a chave Pix para contribuições no perfil da equipe no Instagram.
Maria Carolina Ferreira é a "coach" da equipe - Foto: Arquivo pessoal
“Busca de financiamento é um problema que as equipes enfrentam todos os anos e leva a gente a refletir. [Para] equipes de países ricos é muito mais fácil participar desses ambientes de debate, mas aí o debate fica menos diverso. No nosso caso hipotético, é uma situação muito semelhante à configuração social, histórica do Brasil. É interessante que a gente tenha uma voz enquanto nacionais, enquanto latino-americanos, dentro desses espaços que têm uma visibilidade muito grande. Então, é realmente importante levar essa palavra da universidade pública¨, diz Maria Carolina.
Milla viajará como observadora - Foto: Arquivo pessoal
Na opinião de Milla Monteiro, aluna do sexto ano da FD e uma das observadoras da equipe, competições de julgamento simulado são excelentes oportunidades de formação, pois permitem se debruçar sobre um caso durante meses, exatamente como ocorre na vida profissional de um advogado.
“A gente dividiu em alguns pontos para cada uma das meninas pesquisar algum tema e o meu é direito das crianças. Para mim, foi muito importante porque na graduação a gente estuda muita teoria e poucas vezes tem o contato de uma forma prática. Só se você realmente estagiar com isso. Então, para mim, o caso foi importante para estudar de uma forma prática. Tem muita coisa que a gente aprendeu na raça mesmo”, diz Milla.
Conheça a equipe que vai representar a USP no IAMOOT 2023
Oradoras
Maria Alexandra Carbajal
22 anos
Recém-formada pela FD. Fez parte da direção do Centro Acadêmico XI de Agosto. Coordenou o projeto de orientação jurídica gratuita Direito e Periferia.
Liliane Castro dos Santos
23 anos - Formanda da FD. Cursou o ensino básico inteiro na escola pública e foi a primeira pessoa de sua família a cursar o ensino superior. Participa da Enactus.
Maria Alexandra e Liliane participaram da 25ª Competência Eduardo Jiménez de Aréchaga (CEJA), outra competição internacional de julgamento simulado. Por causa da pandemia, a 25ª edição da competição foi on-line.
Orientadora
Maria Carolina Ferreira
26 anos - Graduada em 2021. Trabalha na equipe de apoio do juiz brasileiro na Corte Interamericana. Participou do Projeto Promigra, de promoção dos direitos de migrantes.
Observadoras
Isadora Valadares
19 anos
Graduanda. Presidente do Coletivo Autista da USP.
Milla Monteiro
23 anos - Graduanda. Voluntária em programas do Unicef e da CISV International.
Manoela Martins
22 anos - Graduanda. Participou do Grupo de Empoderamento Feminino da FD.
Conselheiras
Bruna Higa
25 anos - Mestranda em Direito Internacional. Participou do IAMOOT 2022 e de outras competições internacionais.
Yhasmin Monteiro
25 anos - Mestranda em Direito Internacional dos Direitos Humanos. Estagiou na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Participou do IAMOOT 2022.
O caso: Julia Mendoza e outros vs. Estado de Mekinês
Situado no sul do continente, Mekinês tem uma sociedade multiétnica, a maior população negra da região e uma pesada herança escravista, além de ser um dos países mais desiguais do mundo. A Constituição do país diz que o Estado é laico e reconhece os direitos humanos de todas as pessoas. Porém, na prática, religião e política não são dois universos tão separados, principalmente em um contexto de crescimento do conservadorismo cristão no congresso e no governo. Paralelamente, são comuns os ataques a praticantes das religiões de matriz africana, que ainda têm de conviver com o silêncio e a demonização promovidos pela mídia nacional. É nesse contexto fictício que as equipes do IAMOOT debaterão o caso de Julia Mendoza e Tatiana Reis contra o Estado de Mekinês. Julia é uma mulher afrodescendente, praticante do candomblé, que recorre ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos para recuperar a guarda de sua filha, Helena.
No caso hipotético, Helena é filha de Julia e seu ex-marido Carlos Herrera. Julia e Carlos foram casados por cinco anos. Após a separação, a criança vivia com a mãe e o pai fazia visitas regulares. Julia procurava educar Helena dentro dos valores de sua religião, com o consentimento de Carlos. Tudo muda quando Julia decide morar com sua namorada, Tatiana. Na mesma época, Helena, então com oito anos, conversa com sua mãe e decide passar pelo ritual de iniciação do candomblé, que implica na prática de escarificação (são feitas diminutas incisões na pele da pessoa que está se iniciando, com o propósito de proteção) e na permanência na comunidade por um período de Recolhimento. Descontente com o relacionamento entre Julia e Tatiana, Carlos as denuncia ao conselho tutelar, alegando maus tratos físicos, manutenção de Helena na comunidade religiosa contra sua vontade e exposição ao relacionamento homoafetivo da mãe, que supostamente prejudicaria seu desenvolvimento.
Reuniu pais e mães de santos e praticantes de umbanda e candomblé - Fotos: Clara Angeleas / MinC via Wikimedia Commons
O conselho tutelar prontamente acata a denúncia e o caso vai parar na justiça. É aí que começa o périplo judicial de Julia para recuperar a guarda de Helena. O caso chega até a Suprema Corte do país. Embora Mekinês tenha ratificado em 2019 a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Conexas de Intolerância (Cirdi), a suprema corte acolhe o argumento de Carlos, concedendo a tutela da criança ao pai.
Esse não é um enredo de todo fictício no Brasil. Em 2021, o Ministério Público de São Paulo denunciou uma mulher de Campinas por “lesão corporal com violência doméstica agravada” após o ritual de iniciação de sua filha de 10 anos no candomblé. Assim como no caso hipotético do IAMOOT, a acusação dizia respeito à prática de escarificação. No caso real de Campinas, o juiz responsável considerou que o promotor cometeu intolerância religiosa e absolveu a mãe da acusação. Outros casos semelhantes podem ser encontrados nos registros dos tribunais brasileiros.
Para Maria Carolina, o caso hipotético traz uma boa oportunidade para levar ao IAMOOT as contribuições do Brasil no debate sobre racismo religioso. “A gente conversou recentemente com o professor Ivanir dos Santos [pesquisador da UFRJ], que é especialista nessa área de combate à intolerância religiosa, e ele trouxe vários aportes para nossa construção de uma visão do fenômeno aqui no Brasil. Algumas discussões acho que nem estão presentes para os organizadores dessa competição e para as equipes de outros países. Por exemplo, a competição usa muito o conceito de racismo religioso. E aí ele falou que é um conceito que deve ser utilizado com cuidado. A intolerância religiosa pode se misturar ao racismo, mas não necessariamente as duas coisas são automáticas”, explica a coach do time da USP no IAMOOT.
Mais informações e contato para doações: @iamoot_usp no Instagram