Depoimento de Gaia Giletta sobre os esforços de resgate: “É impossível dizer quem morreu no incêndio e quem morreu no bombardeio. Estamos tentando tratar os feridos, mas os suprimentos estão bloqueados no Egito: dentro de um mês os remédios acabarão”.
A entrevista é de Fabio Tonacci, publicada por Repubblica, 28-05-2024.
Na manhã seguinte, num canto do armazém Tal al Sultan, convertido em centro médico de primeiros socorros, ainda estão os fardos brancos. Menores em sacos mortuários, embrulhados em lençóis e com formato incompreensível. “Eles contêm pedaços de corpos, membros, partes de cadáveres queimados recolhidos na cidade das tendas e trazidos para cá, não sabemos a quem pertencem”, diz Gaia Giletta, enfermeira de 33 anos dos Médicos Sem Fronteiras, com uma voz fraca.
Nascida em Turim, com longa experiência em teatros de conflitos, do Iêmen ao Afeganistão e ao Sudão do Sul, está em Rafah há cinco semanas. E entre domingo e segunda-feira ela viveu a noite mais longa. “De repente, multidões de feridos, familiares dos feridos, corpos atingidos pelo ataque israelense chegaram ao centro”, recorda Giletta ao La Repubblica durante uma difícil conversa por telefone. A fila continua, ela acaba de voltar para casa depois de mais de doze horas de trabalho.
Eis a entrevista.
Quantas pessoas você já ajudou?
Da noite até a madrugada trouxeram-nos 180 feridos e 28 mortos. Nosso centro de estabilização, inaugurado em 15 de maio, está localizado a um quilômetro e meio da cidade de tendas destruída. O valor de uma estrutura como a nossa está precisamente em estar o mais próximo possível das zonas de combate ativas, para receber os feridos, estabilizá-los em 15-20 minutos e depois transferi-los para os hospitais.
O exército israelense diz que a cidade de tendas não está na zona humanitária, não é mesmo?
Sim, mas nem está dentro dos quarteirões que receberam a ordem de evacuação.
Duzentos e oito feridos e mortos.
30 por cento eram crianças com menos de 15 anos, 40 por cento eram mulheres. São os deslocados da Faixa de Gaza que se instalaram em tendas porque já não sabem para onde ir. No centro de estabilização foi um caos, imaginem a angústia, as dificuldades de manejo, os gritos de dor das crianças, o estresse com que trabalhamos para tratar quem perdeu pernas e braços, sangramentos volumosos, traumas e queimaduras.
Queimaduras por explosão ou incêndio? As IDF afirmam que muitas pessoas morreram não diretamente no ataque, mas no incêndio que resultou.
Os corpos estavam tão carbonizados que nenhuma distinção pôde ser feita.
Você tem medicamentos e analgésicos suficientes?
Por enquanto sim, mas o estoque vai acabar dentro de um mês e os suprimentos não chegam. Estão todos presos no Egito, porque Israel não deixa mais nada passar pela passagem de Rafah.
Quantos de vocês estão no centro de estabilização Tal al Sultan?
Quatro médicos e sete enfermeiras, o centro é administrado por MSF em colaboração com o Ministério da Saúde local. Na noite de domingo, após o atentado, funcionários de um hospital próximo chegaram para nos ajudar. Infelizmente, muitas ambulâncias foram paradas porque ficaram sem gasolina, pelo que as operações de resgate foram limitadas e não tão rápidas como seria necessário. Mesmo o combustível não é mais permitido em Gaza e sem ele não podemos fazer funcionar os geradores elétricos ligados à maquinaria médica.
Abastecimento de água?
Tivemos que suspender a distribuição de água potável, porque até a maior usina de dessalinização está parada, ficando sem combustível.
Após a suspensão das operações militares que prejudicam civis ordenada pelo Tribunal Internacional de Justiça, o que aconteceu em Rafah?
Os bombardeamentos israelenses não pararam, pelo contrário tornaram-se mais intensos.
Dentro de dez dias você retornará a Turim. O que traz com você?
A sensação de se sentir minúsculo em relação às necessidades dessas pessoas, a frustração de não poder fazer mais.
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