Nova edição do Atlas dos Sistemas Alimentares do Cone Sul avalia cenário na Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai
Lógica de produção voltada para exportações prejudica esforços de combate à fome - José Cruz/Agência Brasil
A segunda edição do Atlas dos Sistemas Alimentares do Cone Sul, lançada cerca de dois anos após a primeira avaliação, mostra um reforço nas estruturas que mantêm a insegurança alimentar e a fome como realidades persistentes em países sul-americanos.
Organizada pela Fundação Rosa Luxemburgo, a publicação observou a realidade de cinco nações, Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai. Em comum, esses países têm um modelo de agronegócio que privilegia exportações em detrimento do abastecimento interno e um cenário econômico e social que afasta a população cada vez mais dos alimentos saudáveis e das dietas tradicionais.
O problema se potencializa também frente à crise ambiental e aos altos e baixos políticos e econômicos que tomam conta, inclusive, da realidade internacional. As questões globais fortalecem as desigualdades locais.
“Vivemos atualmente em meio a crises simultâneas, severas, intensas e prolongadas, com uma mudança muito acelerada na correlação de forças e na luta política (...) Dizemos que esta crise é estrutural porque é resultado da forma como se organiza o sistema, e não se pode superá-la sem enfrentar os fundamentos do próprio capitalismo”, alerta o documento.
O Brasil de Fato conversou com Patricia Lizarraga, coordenadora de projetos da Fundação Rosa Luxemburgo na Argentina, e Jorge Pereira Filho, que ocupa o mesmo cargo no Brasil. Na entrevista, a necessidade de envolvimento do estado nas soluções foi um dos principais pontos destacados.
“A necessidade de contar com políticas alimentares e de produção de alimentos, não de commodities, nos 5 países é fundamental para pensar em reduzir os números da fome”, afirmou Lizarraga. “Sem dúvida, sem estado não é possível. Porque não há como competir com o agronegócio”, concluiu.
O Atlas também destaca os “sujeitos coletivos da resistência”, iniciativas populares e comunitárias de combate ao problema da insegurança alimentar e da fome. Jorge Pereira Filho ressalta que esses caminhos também precisam de fortalecimento do poder público.
“Temos embriões de uma proposta nova de fazer uma circulação de alimentos e uma produção de alimentos que rompe com paradigma atual. No entanto, a escala dessas iniciativas apoiadas pelo poder público é muito pequena, é insuficiente e incomparável com o peso que o estado dá para manter o modelo do sistema alimentar baseado nas commodities e nas transnacionais.”
Brasil de Fato: Quais são os principais pontos que esta nova edição do Atlas dos Sistemas Alimentares do Cone Sul traz?
Jorge Pereira Filho: Essa publicação é parte de um esforço que envolveu 5 países, Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai. Foi uma construção bastante participativa, desenvolvida sobretudo a partir da criação de um comitê, de um conselho editorial, em que estiveram presentes integrantes de movimentos populares do campo e da cidade e especialistas, bem como ONGs que trabalham com o tema da soberania alimentar.
Nós partimos de um ponto bastante fundamental nesses países. Eles desfrutam de recursos naturais e de uma condição geográfica propícia para a produção de alimentos de qualidade. Porém, a cada ano, suas populações vêm enfrentando com cada vez mais gravidade o problema da fome.
Retomando o pensamento do Josué de Castro, de que a fome não é uma questão natural e sim uma questão decorrente da ordem econômica e política, vamos discutir, na atualidade, quais são as causas principais que fazem com que esse problema seja estrutural nos países e agravado pelas crises decorrentes do modelo político e social em que vivemos.
Ou seja, tanto a crise sanitária decorrente da pandemia como as crises geradas pelas guerras, a questão da desigualdade social e econômica, enfim, tudo isso monta um pacote em que está estruturado um sistema alimentar cujo modelo principal é a produção de commodities para o exterior e não produzir alimentos saudáveis aqui para a nossa população.
Um ponto a se destacar é que estes 5 países vivem em realidades políticas ora semelhantes, ora muito distintas. Mas superar esse modelo de produção de alimentos de uso do espaço agrário, que prioriza a produção para o exterior, é um problema comum e que se coloca para todos esses distintos governos, seja mais progressista, seja mais afinado com a ótica neoliberal.
É um problema de soberania alimentar que se repete nessas regiões então?
Patricia Lizarraga: Sim e eu gostaria de focar em dois eixos. Os cinco países têm realidades muito diferentes. Se você olhar Uruguai e Chile, você não vê os números de pobreza, de fome que tem no Brasil e na Argentina. Mas vemos que há muitas formas de fome.
Temos países como Uruguai e Chile que têm número de má nutrição muito grandes, principalmente entre crianças mais pobres. O que queríamos refletir é que não tem a ver só com a falta de comida, mas com a qualidade da comida. Isso também tem a ver com soberania alimentar. O Chile importa seus alimentos principais, como os legumes, que deixou de produzir para produzir minérios.
O outro ponto é a presença do estado. Só com o estado presente, regulando preços, com políticas alimentares, é possível pensar em começar a reduzir esses números. Agora, na Argentina, vemos muito claro que com o andamento do estado neste governo de Javier Milei, passamos de 46% para 60% de pessoas na pobreza.
Então, a necessidade de contar com políticas alimentares e de produção de alimentos, não de commodities, nos 5 países é fundamental para pensar em reduzir esses números e começar a reduzir esses números.
Quais são as diferenças observadas entre as duas edições do Atlas?
JPF: Podemos destacar pelo menos 2 elementos. O primeiro é que a ordem global vai se deteriorando cada vez mais do ponto de vista político e econômico. Assistimos a emergência da guerra na Europa, que se alastra sem uma perspectiva de fim, discursos cada vez mais militaristas.
Vemos a União Europeia, cada vez mais, embalando essa loucura, essa aventura militar em seus países. Os Estados Unidos estimulando cada vez mais a escalada militar na Ucrânia. Vemos a emergência da fome e todo o descalabro que está acontecendo na Palestina por conta de um ataque de uma potência, que provoca um verdadeiro genocídio entre a população palestina.
Isso tudo nos afeta, claro. Mesmo que estejamos geograficamente distantes desses conflitos, porque boa parte dos fertilizantes são importados da região da Ucrânia, da Rússia. Além disso, intensifica-se uma tendência histórica de crescimento do preço do alimento. Essa é uma tendência que vinha antes dessa deterioração da ordem global, mas que se intensifica agora com as guerras que estão ocorrendo ao longo do mundo. Conforme o investimento dos estados vai priorizando a ação militar, obviamente isso só se agrava.
Também é bom destacar que, ao mesmo tempo, verifica-se, nesses países que compõem o cone sul, uma intensificação da exploração dos recursos naturais. O Brasil bateu recordes de exportação do agronegócio no ano passado. Isso não se deve ao crescimento da produtividade. Se deve ao crescimento da ampliação da produção, com mais áreas incorporadas para o agronegócio.
Isso tem um impacto social, avançando sobre territórios indígenas, sobre povos tradicionais, sobre áreas da reforma agrária e, obviamente, do ponto de vista ambiental. O adiantamento da crise climática é uma espiral que só aprofunda esse ciclo negativo que estamos vivendo.
Mesmo com a mudança de governo no Brasil, ainda não temos assistido a uma resposta na dimensão da gravidade que o problema se encontra. Basta pegar o orçamento do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que está abaixo das médias históricas do governo petista, mesmo entre os anos 2002 e 2016. Podemos ver a situação dos estoques da Conab, que estão em escalas absolutamente mínimas, insuficientes para exercer uma de suas missões, que é um papel regulador dos preços dos alimentos no mercado nacional.
Claro que isso se deve a toda uma política de destruição do papel do estado como um ente regulador dessa ação do mercado, que vem ocorrendo desde o golpe contra a ex-presidenta Dilma Rousseff (PT) até o último governo de Jair Bolsonaro (PL), quando isso se intensificou.
Sem o enfrentamento desse sistema alimentar, controlado pelas transnacionais e que prioriza as commodities, não vamos enfrentar adequadamente o problema da fome. Não basta só distribuir renda, porque, como estamos vendo, o preço dos alimentos vai aumentando também, de uma forma escalar.
Ou seja, se não há uma ação direcionada do estado para conter esse modelo de produção de commodities e favorecer a produção de alimentos saudáveis, não vamos garantir a soberania alimentar e nem combater o problema que leva a fome a mais de 33 milhões de brasileiros e brasileiras.
Por último, destaco também que esse lucro das commodities e esse ganho de produção que eles vêm verificando nos últimos anos, têm ocorrido à custa da redução da produção de alimentos que fazem parte da dieta do povo brasileiro. Temos uma redução da área de arroz, de feijão, de mandioca plantadas e o Atlas mostra. Isso tudo está conectado com a situação que vivemos hoje.
PL: Temos que começar a dar mais ênfase nas consequências das mudanças climáticas nesta região para os preços dos alimentos e para a disponibilidade de território para a produção. Há um exemplo muito recente aqui na Argentina. Houve muitas inundações há cerca de 1 mês e o preço da alface está em US$ 10 o quilo (cerca de R$ 50). Se perdeu toda a produção de verduras. Os incêndios também tiveram muito a ver com os preços dos alimentos no Chile, por exemplo.
Também há a pressão dos países da Europa, principalmente, pela transição energética. Há aí uma disputa pelo território dos grandes projetos. Eu conheci, no ano passado, no Ceará, os projetos eólicos, que têm muito impacto na disponibilidade de peixe. Em Mar Del Plata também há essa discussão agora. Aqui na Argentina tem muitos projetos de minério, lítio e petróleo. Isso vai avançando em territórios que podiam ser usados para produzir alimentos.
Acho que, nos próximos anos, será um problema muito grande aqui na nossa região. Sobretudo para a terra para produzir alimentos.
Vocês notaram a aplicação de mais soluções para a soberania alimentar entre a produção da primeira e da segunda edições do Atlas?
JPF: A segunda sessão do Atlas, que discute as alternativas, foi realizada com bastante carinho e cuidado. Não bastava para nós apenas fazer um diagnóstico de uma situação que nossa experiência de vida constata diariamente que é recorrente. A fome na região e os problemas causados por esse sistema alimentar são uma temática cotidiana. Mas pouco se discute e se dá visibilidade para as construções que apontam para um outro modelo de sistema alimentar e que garantem, mesmo numa escala pequena, dignidade e comida de verdade na mesa de milhões de pessoas.
Esse foi um dos esforços que realizamos ao longo do Atlas. Para fazer essa construção de um leque de alternativas e apresentar embriões de um possível novo modelo do sistema alimentar, que tenha outro paradigma, o ponto de partida foi a escuta ativa dos movimentos populares, camponeses e urbanos, que realizam na prática essas experiências.
Estamos falando de um leque de ações, que vai desde as ações de solidariedade — que explodiram na pandemia e vincularam a produção camponesa de alimentos e sem agrotóxicos e a ação solidária nas comunidades periféricas das grandes cidades — distribuição de marmitas, cestas básicas, estímulo à disseminação de hortas comunitárias, possibilidade de garantir o acesso a preço justo para essas populações periféricas, na maior parte negras. Que tenham possibilidade de se alimentar dignamente e que não sejam reféns da lógica do mercado, que estabelece para elas que o alimento possível de ser consumido é o alimento ultraprocessado mais barato.
Notamos, por exemplo, que houve, durante a pandemia, uma explosão de consumo de ultraprocessados. O miojo, por exemplo, e uma série de alimentos que são mais acessíveis à população com menor poder aquisitivo. O que procuramos descrever e discutir é que essas experiências alternativas precisam ser potencializadas pelo estado para se realizarem. Uma possibilidade de um sistema alimentar que garanta a soberania para a população. Esse é o ponto de partida.
São experiências muito interessantes, porém, para terem um papel mais relevante do ponto de vista do enfrentamento de um problema histórico, precisam do apoio de políticas públicas. Claro que temos muitas medidas inovadoras e precisamos destacar o PAA e o programa das Cozinhas Solidárias.
É uma promessa de fazer chegar a essas populações um alimento produzido no campo, por comunidades ribeirinhas, pelos povos indígenas, em comunidades camponesas familiares, com participação ativa da comunidade na organização nessas periferias. É um alimento saudável, de qualidade, mas que também estimula a organização comunitária.
Temos embriões de uma proposta nova de fazer uma circulação de alimentos e uma produção de alimentos que rompe com paradigma atual. No entanto, a escala dessas iniciativas apoiadas pelo poder público é muito pequena, é insuficiente e incomparável com o peso que o estado dá para manter o modelo do sistema alimentar baseado nas commodities e nas transnacionais.
Isso é importante destacar, porque mesmo os programas que estão destinados à agricultura familiar, muitas vezes estão concentrados em financiar culturas como soja e milho, ou seja, destinadas à exportação em sua maioria. Sem trabalharmos essa contradição que temos, sobretudo no Brasil, mas que também se espalha nos outros países da região, não vamos conseguir dar a dimensão necessária para esses esforços que a gente descreve na parte 2 do Atlas.
PL: Sem dúvida, sem estado não é possível. Porque não há como competir com o agronegócio. Não tem possibilidade de crescer frente ao poder do agronegócio nesses 5 países. Isso é muito similar nos 5 países.
Eu gostaria aqui de pensar na Argentina, que em 3 meses de desmantelamento do estado e das políticas alimentares, do orçamento para as cozinhas comunitárias, que chamamos de comedores, a fome subiu imensamente, terrivelmente. Os preços dos alimentos também.
Com essa lógica do livre mercado, de que o mercado vai regular e vai equilibrar os preços, tivemos, em 2 meses, 70% de inflação. Sem o estado regulando o preço, subsidiando o pequeno agricultor. As grandes empresas têm muito subsídio, tem muito dinheiro. Então, sempre parece que para o pequeno agricultor é mais um plano social, algo muito pequeno e vista como algo que não é bom.
Na pandemia, começaram a crescer as redes de comercialização, cooperativas e, só em dois meses, tudo desapareceu aqui na Argentina. É um cenário muito grave e só há a possibilidade de começar a construir uma alternativa em um governo pós-Milei. É como foi com Jair Bolsonaro no Brasil.
Sem estado não é possível, não tem chance de pensar em um outro sistema de alimentação, regulação dos ultraprocessados, que alimentos chegam às crianças, que lugar dá aos ultraprocessados na mídia, no marketing. Há muita coisa para fazer e só o estado pode pensar isso.
Edição: Matheus Alves de Almeida