A rotina de três adolescentes egressas da Fundação Casa. Sem políticas públicas para serem realocadas na sociedade, enfrentam doenças psicossomáticas e vivem a fobia social. Mas tentam reconstruir suas vidas apesar do trauma
Publicado 01/12/2023 às 17:44 - Atualizado 01/12/2023 às 17:45
Por Flávia Prado, na Pública
O ano era 2021, auge da pandemia. No pátio da unidade Ruth Pistori da Fundação Casa, no centro de São Paulo, uma adolescente negra, magra e alta se recusava terminantemente a usar uma máscara de proteção. “Eu cheguei tão revoltada que não queria colocar. Pra mim, do jeito que eu vivia, o coronavírus nem existia”, conta Letícia Ferreira, hoje com 20 anos.
Dias antes, ela havia sido surpreendida por policiais enquanto “fazia um corre”, nas palavras dela. A garota recebia dinheiro para quadrilhas que aplicavam golpes via celular e, num dia de novembro, deu tudo errado. Naquele momento, recém-internada na fundação e sem prazo para sair, se irritava por qualquer coisa.
Com o passar dos dias, cedeu. Começou a trabalhar na copa da unidade e entendeu como o lugar funcionava: seu bom comportamento trazia o privilégio de vestir as melhores roupas e assistir à televisão no quarto. Só a saudade do “mundão” é que não dava trégua. Extrovertida que é, sentia falta de estar com as amigas e de andar pelas ruas de Itaquera, bairro no extremo leste da capital paulista, onde nasceu e cresceu. “Passei meu aniversário de 17 anos lá e foi horrível.”
Ela não recebia visitas. Com as normas para evitar a propagação da covid-19, encontros presenciais foram suspensos. A garota, que aos 12 anos viu a família ser esfacelada após um divórcio conturbado dos pais e passou a morar de favor na casa de diversas pessoas, se sentiu ainda mais solitária.
A convivência nem sempre era fácil. Letícia não se esquece das internas mais novas que faziam bagunça, o que resultava em castigo para todas da unidade. “Lá, uma faz e todas pagam, né? Daí, a gente tinha que ficar “formada um tempão”, ela explica, se referindo à postura sentada no chão com as pernas cruzadas, comum nas cadeias de todo o Brasil, com o objetivo de disciplinar os presos.
Passou a lidar com um sentimento que define como “aflição” e “uma vontade súbita de chorar”, sobretudo aos finais de semana, quando não tinha aulas ou cursos. Essa sensação nunca mais a abandonou.
Com o passar dos meses, começou a sentir mais fome. A comida servida no almoço, que de início era muita, agora não saciava. Tinha vontade de repetir as refeições, o que não era permitido. A comida era distribuída em porções individuais para cada menina.
O corpo começou a dar outros sinais de desespero. Manchas escuras surgiram em seus braços e pernas. “Tá vendo isso daqui, ó? Isso tudo começou lá. Passei no médico e ele disse que ou era psicológico ou era sarna humana [escabiose, uma doença contagiosa transmitida pelo uso de roupas contaminadas]. Tratamos como sarna, mas não adiantou”, conta, apontando para as cicatrizes que cobrem seus dois braços. Ela diz ter sido levada ao pronto socorro cerca de 15 vezes durante o ano de internação. “Acho que eu guardo meus sentimentos muito pra mim, né? Foi uma forma da minha mente se liberar.”
“Medo de tudo”
Marcas como as de Letícia ficaram em Ana Beatriz, uma garota de olhos levemente puxados e cabelos escuros. Dois anos após ter cumprido a medida socioeducativa na Fundação Casa, ela ficou com “medo de tudo” e apresenta grandes variações de humor. “Tenho crises que nunca tive antes e o meu corpo demonstra isso”, conta, apontando as manchas que pipocam pelos seus braços e colo. “Isso são crises nervosas que eu não consigo controlar. A psicóloga fala que é uma maneira de colocar pra fora.”
A paraibana de 19 anos vive hoje em Carapicuíba, na Grande São Paulo. Depois da internação, passou a sentir ansiedade e medo da convivência social e, por isso, ainda não retomou os estudos. “Eu não conseguia ir para a escola, eu não conseguia ficar em ambientes fechados.” Ela diz também que não suporta lugares cheios. “Eu fui ao shopping e passei mal. Estava lotado, comecei a tremer e a chorar. Muito barulho, muito barulho, tive que ir embora.”
Depois de nove meses dentro da unidade Chiquinha Gonzaga, na Mooca, zona leste de São Paulo, Ana Beatriz já estava exausta e contava os dias para sua saída. Cumprindo medida socioeducativa por tráfico de drogas, crime de menor potencial e pelo qual 40% dos adolescentes internados na capital paulista respondem, de acordo com dados do governo do estado, ela acreditava que seu dia de voltar para casa estava próximo. Mas não teve sorte. A Vara da Infância paulista avaliou os relatórios da jovem e recomendou que ela continuasse internada.
Foi a gota d’água. A garota teve uma crise nervosa e rabiscou todas as paredes de uma sala de aula com frases exaltando facções criminosas.
O psiquiatra Thiago Fernando da Silva, do Núcleo de Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), explica que o adolescente vê tudo de maneira mais catastrófica. “Sabemos hoje que, do ponto de vista científico, é uma fase muito crítica do desenvolvimento cerebral. Áreas relacionadas com processo de decisão ainda estão imaturas ao mesmo tempo em que as áreas emocionais, relacionadas com uma questão de impulsividade, estão muito ativas.”
Ana Beatriz foi punida e rebaixada para a “fase zero”, uma classificação que não consta no manual interno da Fundação Casa, mas é um sistema de privilégios e punições por meio do qual as ex-internas contam terem sido organizadas nas unidades.
“Nessa fase você não tem direito a nada. Você usa a pior roupa da unidade e não faz nenhuma atividade ou trabalho. Fica sentada o dia inteiro no chão do corredor e à noite dorme sozinha”, ela explica. Ou seja, os adolescentes, já apartados do convívio em sociedade, sentem que podem ser ainda mais excluídos.
Karine Vieira, egressa do sistema prisional e fundadora do Projeto Responsa – que ajuda pessoas a se recolocar na sociedade pós-cárcere –, explica que essa lógica é típica de penitenciárias. “São instituições que visam padronizar as pessoas, tratá-las de uma única maneira. É óbvio que numa sociedade existem regras, mas devemos notar que é um sistema de punição. Como pensar num sistema educativo que prende pessoas?”, questiona.
Depois do episódio, Ana Beatriz recebeu atendimento psicológico, mas não se sentiu acolhida o suficiente. “Lá eu tinha que obedecer os outros, eu não podia me expressar. Muitas vezes eu não gostava de ouvir o que me falavam, porém eu tinha que fingir que adorava, senão os funcionários anotavam e mandavam para o juiz. Muita gente que eu nem conhecia mandava em mim.”
A jovem está em tratamento psicológico há sete meses, custeado pela sogra. Ela recebeu indicação para consultar um psiquiatra, mas tem receio de ter de ingerir medicamentos. “Quando estava na Fundação Casa, passei no médico e ele me receitou um antidepressivo que me deixava dopada. Eu parei de tomar sozinha, por conta própria, e não tentaram outro”, explica com a voz embargada.
“O cuidado ofertado a essa população é muito ruim”, pontua Thiago Fernando da Silva. “Já há estudos que mostram que é muito comum os adolescentes estarem polimedicados, ou seja, recebendo diversas medicações. Muitos não têm essa indicação, mas as drogas são aplicadas para deixá-los mais tranquilos, mais sedados realmente. O impacto que isso pode ter no desenvolvimento mental é muito ruim. O que era pra ser uma medida socioeducativa, integrada a uma rede de cuidados, acaba tendo um tom moralista e punitivista”, explica o psiquiatra.
“Até hoje eu lembro do barulho daquela cela batendo”
“Ela é meu braço-direito”, diz a babá Jorgiane de Oliveira, de 42 anos, apertando os ombros da filha, Gabriella de Oliveira, que hoje tem 20 anos. Ela é a primeira menina de sete irmãos e, com tantas bocas para comer, a parceria entre mãe e filha era uma questão de sobrevivência. “Desde pequena, trabalho com a minha mãe. Se ela pegasse uma faxina, eu ia ajudar a olhar as crianças da casa, por exemplo”, explica a jovem tímida, que já é mãe e madrasta.
Mas dar orgulho a Jorgiane não ameniza em nada o peso das feridas que Gabriella, embora tão pequena fisicamente, carrega, depois de passar um ano internada. “Até hoje eu lembro do barulho daquela cela batendo”, conta, referindo-se ao som do momento em que foi detida em uma delegacia de Suzano, na Grande São Paulo.
Há mais ou menos três anos, Gabriella foi tomada por uma paixão avassaladora. “A gente que é mãe, percebe, né? Ela começou a se arrumar mais, coisa de adolescente”, conta Jorgiane. Com apenas quatro meses de relacionamento, decidiu se arriscar junto com o ficante e topou receber pessoalmente um dinheiro vindo da venda de armas e drogas. Gabriella diz nunca ter chegado perto de nada ilegal até aquele momento. Fato é que a polícia paulista já monitorava as conversas dos namorados e os prendeu em flagrante.
Para uma menina que começou a trabalhar tão jovem, saber que estava sendo encaminhada para internação caiu como uma bomba. Transferida para uma das unidades femininas da capital, perdeu oito quilos já no primeiro mês. Chorava por tudo. Não conseguia nem comer nem dormir direito. “Passava as noites em claro, lendo livros. Eu lia um atrás do outro.”
Perder espaço no coração dos familiares é o que atormentava Gabriella. Ela sempre foi referência para os irmãos mais novos, além de ser o porto seguro da própria mãe. O medo de que o afilhado não a reconhecesse mais pela perda de convivência assaltava sua mente. Ela foi internada quando ele ainda era bebê e temia que ele perdesse as memórias do que viveram juntos. Além disso, também não pôde acompanhar o nascimento do irmão caçula. Jorgiane estava no final de gravidez quando a jovem foi apreendida, destruindo os planos do chá de bebê em família.
Outra inquietação de Gabriella era sobre sua reputação fora daqueles muros. O que as pessoas pensavam dela? Ao reencontrar a mãe em uma visita, depois de pouco mais de nove meses de internação por conta das restrições da pandemia na época, implorou por perdão. Além disso, pediu à mãe que desativasse seus perfis nas redes sociais. As duas combinaram que, se alguém perguntasse, Jorgiane diria que a filha tinha ido passar uma temporada no Rio de Janeiro.
O sentimento de culpa cresceu a ponto de as técnicas da Fundação Casa sugerirem o encaminhamento dela ao Centro de Atendimento Psicossocial (Caps), o que Gabriella não topou. “Eu não aceito ter ansiedade até hoje. Na época, até pensei em ir nas consultas, mas não queria me render. Na minha cabeça, se eu fosse, assumiria a doença.”
A família já tem histórico de doenças mentais. A mãe dela chegou a ficar dois anos afastada do trabalho por depressão após um divórcio conturbado. “Desde criança, ela viu que eu sofri muito. Então, não sei… Toda vez que ela tem algo, ela guarda só pra ela”, reflete Jorgiane.
Essa aversão a tratamentos psicológicos é explicada por Thiago Fernando Silva como um comportamento refratário. “Elas enxergam os tratamentos como punição, pois acontecem dentro do ambiente em que elas estão presas, sendo punidas.”
A professora e consultora especializada em diversidade e inclusão Viviana Santiago explica que a sociedade não enxerga meninas em situação de vulnerabilidade como sujeitos, mas sim como pequenas mulheres. “A cobrança e as expectativas que depositam nessas meninas é equivalente às de mulheres. Elas não podem ser crianças, jovens, viver com essa liberdade.”
Com o tempo, Gabriella ficou mais resignada. Adaptou-se à rotina cronometrada do centro de internação e passou a trabalhar na lavanderia. Começou a ter sono durante as noites. “Eu sempre dormia imaginando como iria ser quando saísse de lá.”
Quando esse dia chegou, Gabriella era outra pessoa, muito mais envergonhada. Logo, casou e engravidou. Ser mãe não era um plano para agora, mas o marido, que tem 33 anos, queria ser pai. Hoje em dia, ela passa os dias cuidando do filho, do irmão caçula e do enteado, que tem pouca diferença de idade para o seu bebê. “Antes eu saía à noite, curtia a vida. Agora minha realidade é dentro de casa.”
“Hoje eu não tenho mais sonhos”
Gabriella desistiu dos sonhos adolescentes que alimentava, que ela diz terem sido muitos. “O meu sonho hoje é trabalhar com algo que não me deixe longe do meu filho”, objetivo compartilhado com Ana Beatriz. “Hoje eu não tenho mais sonhos. Considero que já tenho tudo: meu marido, minha filha, minha família.”
A rotina das duas jovens é semelhante: de manhã até à noite, cuidam das crianças e do lar. Os maridos proveem o sustento das famílias. Apesar de terem personalidades muito distintas, elas têm os mesmos hábitos: são caseiras e se dizem preenchidas pela maternidade. Ambas não têm planos de cursar uma faculdade a curto prazo, mas Gabriella quer montar uma loja de roupas infantis online.
Para Viviana Santiago, garotas como Gabriella e Ana Beatriz não têm acesso a diferentes possibilidades de futuro e o casamento surge como único destino possível e inescapável. “A sociedade não enxerga essas meninas com todas as suas complexidades. Não olham para elas como se fossem capazes. Essas meninas são tratadas como se elas tivessem menos valor. Vê-las deixando os sonhos de lado é lamentável porque esses sonhos nunca foram sequer considerados pela sociedade”, explica a especialista.
Já Letícia trilha um caminho diferente. Ainda não teve filhos, está solteira e alugou sozinha uma casa no interior de São Paulo, “longe das más companhias”. A jovem se especializou em alongamento e extensão de cílios e trabalha num estúdio de beleza renomado na região.
A dona do espaço, a professora e extensionista de cílios Alice Zanon, conta que ouviu duas clientes conversando na sala de espera sobre a história de Letícia e o desejo dela de recomeçar. Decidiu chamar a garota para uma entrevista de emprego. “Ela chegou totalmente diferente. Uma menina abalada emocionalmente, fechada e com a pele muito mais manchada. Mas nos demos bem de cara”, afirma a profissional.
O que sensibilizou Alice foi, sobretudo, saber que Letícia estava havia meses tentando sobreviver trançando cabelos – ofício que aprendeu durante a internação –, mas sem sucesso. “Pensei: eu preciso ajudar essa menina, ela não pode recair.”
No início, sem dinheiro para transporte público, a nova funcionária ia e voltava a pé do estúdio, mesmo morando do outro lado da cidade. Evoluiu rápido, hoje tem clientes fiéis e é o braço-direito da dona. “Ganhamos o prêmio de melhor espaço da cidade muito pelo trabalho da Letícia”, orgulha-se Alice. Outros sonhos agora a acompanham: matriculou-se na autoescola para aprender a dirigir e quer se formar em direito.
“Quando falamos de pessoas que passaram pelo processo de encarceramento, seja na menoridade ou na maioridade, é importante afirmar a necessidade da existência de políticas públicas voltadas para inclusão social e inserção no mundo do trabalho. Estamos falando de um público que, em sua maioria, sempre viveu à margem”, pontua Karine Vieira, questionando o fato de o Estado não fornecer nenhum programa de reinserção às ex-internas. “Não podemos depender da boa vontade da sociedade.”
Nenhuma das três garotas entrevistadas pela reportagem saiu da Fundação Casa com encaminhamento para tratar questões psicológicas ou psiquiátricas. Elas também não recebem nenhum suporte terapêutico do Estado.
“Se você repete as mesmas medidas punitivistas que vemos em cadeias para adultos, para cérebros adolescentes, o efeito será muito pior e numa população que já é marginalizada. Até a produção científica voltada para estudar esses adolescentes é pouquíssima”, afirma Thiago Fernando da Silva.
Atualmente, 214 meninas cumprem medida socioeducativa no estado de São Paulo, segundo dados do governo do estado. A superintendente de Saúde da Fundação Casa, Maria Angélica da Silva, assume que há lacunas na rede. De acordo com ela, as internas são inseridas no SUS, o Sistema Único de Saúde, ao ingressarem nas unidades. “O que está como competência da Fundação Casa é o acompanhamento durante a medida socioeducativa. Nós somos os executores do Estado”, explica. Entretanto, não há nenhum programa de reinserção governamental para tratar da saúde mental dessas adolescentes quando elas deixam as unidades e voltam à sociedade.