Reunidos em Brasília, nos dias 28, 29 e 30 de agosto, familiares reforçaram em diversos atos a importância da volta da comissão para se buscar a verdade sobre mortes e desaparecimentos ocorridos no regime militar
Texto: Antonio Carlos Quinto
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Nesta semana em que se completa 44 anos da Lei de Anistia no Brasil, familiares e vítimas da violência de Estado estiveram reunidos em Brasília onde realizaram atividades em busca de mais apoio ao Manifesto pela Reinstalação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Foram três dias envolvendo seminários, palestras e encontros que aconteceram desde a segunda-feira, dia 28. Na programação, estava prevista para terça-feira, dia 30, a entrega ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva de uma carta cobrando a assinatura e publicação no Diário Oficial de um decreto, encaminhado há mais de cinco meses ao Palácio do Planalto pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, pelo retorno dos trabalhos da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), que teve a sua extinção aprovada no último mês do governo de Jair Bolsonaro.
Entre os principais pontos que integraram a programação antes do ato diante do Palácio do Planalto, está a exigência ao Estado da volta da comissão responsável pela busca e identificação das pessoas mortas e desaparecidas durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985).
Porém, por questões de agenda da Presidência, os familiares não puderam ser recebidos no Palácio do Planalto pelo presidente da República. A professora Vera Paiva, do Instituto de Psicologia (IP) da USP, uma das coordenadoras do CEMDP, conta que o grupo foi recebido pelo representante da Secretaria Geral da Presidência, Cândido Hilário Garcia de Araújo. “Aproveitamos todos os momentos para buscar mais assinaturas ao manifesto, inclusive de entidades internacionais. Também definimos estratégias de acompanhamento desse processo. Um novo encontro com o presidente deverá ser reagendado assim que possível, pela Secretaria Geral da Presidência”, assegura Vera Paiva.
Participação efetiva
A professora Vera Paiva tem uma participação efetiva em todo esse processo. Ela lembra que sua mãe, Eunice Paiva, foi indicada à primeira comissão, criada pela Lei nº 9.140/1995, pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1995. “Em 2015 fui indicada pela presidenta Dilma Rousseff, quando renovaram a comissão. Permaneci até quando o ex-presidente Bolsonaro a extinguiu, sem a assinatura dele, em dezembro de 2022”, conta.
Vera é filha de Rubens Paiva, engenheiro civil e político, dado como desaparecido em 1971, durante a ditadura militar no País. A morte dele só foi confirmada 40 anos após o sumiço, depois de serem prestados depoimentos de ex-militares envolvidos no caso à Comissão Nacional da Verdade. Rubens Paiva foi torturado e assassinado nas dependências de um quartel militar naquele 1971.
Professora Vera Paiva - Foto: Arquivo pessoal
Em agosto de 2014 foi inaugurado um busto de Rubens Paiva em frente ao 1º Batalhão de Polícia do Exército, local onde foi morto. Meses antes, outra homenagem feita ao deputado foi uma escultura de seu busto inaugurada na Câmara dos Deputados, em Brasília. Em plena cerimônia, o então deputado Jair Bolsonaro deu uma cusparada no busto. “Esse ato foi, inclusive, registrado pela imprensa”, lembra Vera Paiva. E entre as programações dos manifestantes, na terça, dia 29, houve um Ato de Desagravo no vão entre a Câmara dos Deputados e o Senado Federal. “Fomos ‘descuspir’ o busto de meu pai”, conta Vera Paiva.
Luta por memória
Ato pela anistia na Praça da Sé, em São Paulo, em 1979 - Foto: Ennco Beanns/Arquivo Público do Estado de São Paulo via Agência Senado
Para Vera Paiva, “a dor maior é dos familiares e diretamente afetados, mas a luta por memória, verdade, justiça e reparação da violência de Estado é de toda a sociedade brasileira.” A professora justifica assim a necessidade de se mostrar apoio à reinstalação e atualidade da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos.
Outra integrante e coordenadora do grupo de familiares, a secretária Diva Soares Santana lembra quando, em janeiro deste ano, o presidente Luiz Inácio da Silva afirmou que iria reconstruir a Comissão da Anistia e reeditar a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Diva, que vive em Salvador, na Bahia, teve a irmã Dinaelza Soares Santana Coqueiro e seu cunhado, Vandick Reidner Pereira Coqueiro, desaparecidos na Guerrilha do Araguaia. “Minha irmã era estudante de geografia aqui em Salvador. No Araguaia, ela fez parte do destacamento B e usava o nome de Maria Dina. Meu cunhado era conhecido como João Goiano”, lembra.
Diva Santana - Foto: Arquivo Pessoal
Além da Comissão, Diva também integra o grupo Tortura Nunca Mais da Bahia. “Faço parte dessa luta desde o Movimento pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita”, conta, lembrando que já participou de operações no Araguaia buscando restos de ossos por informações de camponeses locais.
Ato pela anistia na Praça da Sé, em São Paulo, em 1979 - Foto: Ennco Beanns/Arquivo Público do Estado de São Paulo via Agência Senado
Ato pela anistia na Praça da Sé, em São Paulo, em 1979 - Foto: Ennco Beanns/Arquivo Público do Estado de São Paulo via Agência Senado
Questão crucial
Para o jornalista, escritor e professor aposentado da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, Bernardo Kucinski, a reinstalação da comissão é uma questão crucial. “É uma questão não resolvida que não pode ficar em aberto e todo o esforço deve ser feito para que todos os desaparecidos tenham um sepultamento digno e correto”, diz Kucinski. Em 1974, a irmã dele, Ana Rosa Kucinski, professora do Instituto de Química (IQ) da USP e integrante da Aliança Libertadora Nacional (ALN), foi presa pela ditadura e morta. O professor, que também foi militante estudantil durante o regime militar, foi preso e exilado.
Próximo de completar seus 86 anos, Kucinski não foi a Brasília acompanhar os atos e também não integra a comissão. “Cheguei a participar de algumas lives”, conta. Mesmo assim, ele considera que a reinstalação da Comissão dos familiares é uma obrigação humanitária, política e formal do Estado brasileiro.
Bernardo Kucinski - Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Kucinski lembra que sua irmã, Ana Rosa, era uma das últimas militantes da ALN. “Ela e o marido, Wilson Silva, foram sequestrados e desaparecidos”, recorda-se. Ele conta que Wilson era estudante de Física e tinha uma vida militante, também na ALN. “A informação que se tem até hoje é que os dois foram levados a Petrópolis, no Rio de Janeiro, e que seus corpos foram incinerados em uma usina de cana de açúcar”, conta o escritor. Ele lamenta que a USP, à época, tratou o caso como um abandono de emprego. “Na minha opinião, foi um comportamento ‘discutível’ da Universidade.” Contudo, Kucinski reconhece as dificuldades daquele período, quando ao lado da Reitoria da USP estava instalado um gabinete de segurança e informação do governo militar. Ele também relembra, de triste memória, o expurgo realizado pelo governo militar nas universidades, quando nomes como Isaías Raw, Paul Singer e Fernando Henrique Cardoso, entre outros, foram expurgados das universidades brasileiras.”Foram os primeiros atos daquele governo militar e, talvez sem esses expurgos, as universidades teriam apresentado mais resistência”, cita o professor.
Ana Kucinski - Foto: Arquivo Pessoal/Família Kucinski
“Era o dia 22 de abril de 1974!. Até hoje não consigo explicar como um caso tão notório, que era um sequestro político, foi tratado como um abandono de emprego”, lamenta Kucinski.
De acordo com Vera Paiva, o jornalista escreveu um dos livros mais incríveis sobre a irmã, Ana Kucinski, e os desaparecidos. A obra intitulada K, de 2011, conta a história de um judeu imigrante que, na juventude, foi preso por suas atividades políticas; dono de uma loja no bairro Bom Retiro, em São Paulo, busca por sua filha Ana (seu nome não é citado), desaparecida, e se depara com a muralha de silêncio envolvendo o desaparecimento de presos políticos.
*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado