Coordenadora da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo diz que o Brasil tem avançado no combate a essa prática, mas afirma que ainda há muitos desafios a serem vencidos
O Ministério do Trabalho e Emprego resgatou 1.443 pessoas em situação de trabalho análogo à escravidão desde o início deste ano até 14 de junho. Os números são os maiores dos últimos 12 anos, ficando atrás apenas do primeiro semestre de 2011, quando 1.465 trabalhadores foram encontrados em situações degradantes. Recentemente, viu-se um aumento dos casos de exploração do trabalho doméstico. Para explicar a alta dos números, a Coordenadora da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), Lys Sobral Cardoso, aponta o aumento da fiscalização, a repercussão dos casos recentes e a mudança de governo. Graduada em direito pela Universidade Federal de Sergipe (2009), com especialização em direito do Estado pela Faculdade Social da Bahia, ela é procuradora do Trabalho do Ministério Público do Trabalho.
Quais medidas o Ministério Público do Trabalho tem tomado para combater o trabalho análogo à escravidão?
O MPT participa das operações de combate ao trabalho escravo dos grupos móveis, seja o grupo nacional sejam grupos móveis regionais. O MPT dispõe de ações cautelares, em casos de maior urgência, de termos de ajustamento de conduta, e essas medidas são aptas tanto para obter a responsabilização dos empregadores que exploram essa prática, via ressarcimento dos danos individuais, junto à a Defensoria Pública da União, e também via ressarcimento dos danos coletivos. No Brasil, as principais políticas públicas de atendimento às vítimas de trabalho escravo são a garantia de três parcelas do seguro desemprego para as pessoas resgatadas, independentemente do tempo de trabalho prestado, e indenizações pelas violações sofridas.
O MPT trabalha com outras instituições?
O MPT participa das discussões na Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, a Conatrae, vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, e no Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas o Conatrap, vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública. Acompanhamos as medidas legislativas e, eventualmente, enviamos ao Congresso Nacional e a parlamentares notas técnicas com o entendimento jurídico do órgão sobre algum dispositivo que esteja tramitando. E temos parcerias com universidades para trabalhos de prevenção e de assistência às vítimas.
Quais são os desafios para combater esse problema no Brasil, já que ainda temos uma mentalidade tão enraizada em relação ao trabalho escravo? Recentemente, tivemos episódio chocante envolvendo um desembargador suspeito de manter uma trabalhadora surda em condições análogas à escravidão.
São muitos os desafios. A estrutura cultural do Brasil e a nossa formação é racista e escravista. Esse pensamento racista e escravista acaba atingindo também o sistema de Justiça. Por isso, a importância de falar sobre o tema. Isso gera um efeito tanto de cobrança quanto de constrangimento social, gera denúncias e maior fiscalização do MPT.
Ainda estamos longe de erradicar o trabalho análogo à escravidão?
A Agenda 2030 da ONU prevê erradicar qualquer forma de trabalho infantil até 2025 e qualquer forma de trabalho análogo à escravidão e trafico de pessoas ate 2030. Por tudo que a gente vê, eu acredito que o Brasil não conseguirá atingir a meta até essa data. Seriam necessários mais agentes públicos em campo para fiscalizar as condições de trabalho.
Por que a maioria dos casos é encontrada no meio rural?
A ausência de reforma agrária efetiva é uma delas. Porque a concentração de riquezas no meio rural é muito grande, na mesma medida das grandes propriedades existem pessoas que não têm nada, ou que até têm um pedaço de terra, mas não conseguem produzir de uma forma estruturada, com apoio de financiamento, de aquisição de produtos básicos. Muitas pessoas não têm condição de continuar a trabalhar e viver de forma digna e acabam se submetendo às condições de trabalho que aparecem, e aí começa o ciclo da exploração.
Desde 2021 houve um aumento das denúncias envolvendo empregadas domésticas. Por que isso acontece?
O Brasil está saindo de uma fase de invisibilização completa dessas situações de exploração do trabalho escravo doméstico para uma consciência e de que algo precisa ser feito urgentemente. A maior parte do trabalho doméstico é exercida por mulheres, por uma distribuição sociocultural e econômica das funções. Nossa estrutura social delega às mulheres o trabalho doméstico e, em uma visão interseccional, a gente compreende melhor o porquê. Fatores como gênero e raça são determinantes para que algumas situações acabem passando despercebidas. As mulheres resgatadas do trabalho análogo à escravidão em sua maioria são negras, e oriundas de famílias pobres que não tinham condições de se manter de forma digna.
O MPT resgatou 1.443 pessoas em condições análogas à escravidão de janeiro a 14 de junho. Podemos dizer que aumentaram os crimes ou as denúncias? A ampla repercussão dos casos recentes também teve impacto nisso?
Esse número a gente não tinha alcançado em 12 anos. A gente não fez uma análise de todos os dados, mas nossa aposta é de que há um maior número de denúncias e uma maior repercussão dos casos. Apesar de que, nesses 12 anos, a média de fiscalizações se manteve, houve maior quantidade de casos confirmados. A pandemia agravou a situação, e a conjuntura política aumentou a vulnerabilidade socioeconômica das pessoas. Isso tudo trouxe esse resultado: mais pessoas sendo resgatadas.
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*Estagiária sob a supervisão de Odail Figueiredo