Filhas de militares que cometeram torturas e mortes, segundo a Comissão Nacional da Verdade, até hoje são agraciadas com gordas pensões
atualizado 14/04/2023 21:00
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Epaminondas Gomes de Oliveira era um camponês maranhense interessado por política. No final da década de 1950, ele se tornou militante do Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT). Por sua atuação, acabou virando alvo da Operação Mesopotâmia, ação secreta realizada pelo Comando Militar do Planalto com apoio do Centro de Informações do Exército (CIE).
De acordo com o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), após torturas sofridas no Pelotão de Investigações Criminais (PIC), o homem faleceu em Brasília, em 1971. A família, entretanto, só conseguiu se despedir de Epaminondas em 31 de agosto de 2014, quando os restos mortais foram devolvidos.
Dias depois do sepultamento do camponês maranhese, a filha do marechal Antônio Bandeira recebia dos cofres públicos o seu direito à pensão militar. Atualmente, a mulher embolsa uma remuneração bruta de R$ 35.524,40 por conta da morte do pai. Bandeira foi comandante da 3ª Brigada de Infantaria, no Comando Militar do Planalto, e apontado pela CNV como um dos responsáveis pela morte e tortura de Epaminondas.
Para a comissão, Bandeira é um dos autores na “cadeia de comando do órgão envolvido no desaparecimento e na morte” do militante. Apesar disso, o general, como outros membros das Forças Armadas, nunca foi condenado formalmente por qualquer crime relacionado à ditadura militar.
Fora dos quartéis, Antônio Bandeira desempenhou um papel fundamental no Departamento da Polícia Federal (DPF). No comando da instituição, o militar ordenou a abertura de inquérito contra o advogado criminalista Henrique Cintra Ferreira de Ornellas por “ligação à subversão”.
O advogado acabou morrendo na prisão do Comando Militar do 8ª Grupo de Artilharia Anti-Aérea, Brasília, em 1973. Na época, a causa da morte divulgada foi suicídio. Entretanto, laudo pericial da CNV, realizado em abril de 2014, nega a tese dos militares e concluiu o caso como homicídio.
Além de Bandeira, outros envolvidos são indicados como autores da morte, como o general Olavo Vianna, comandante da 11ª Região Militar do Comando Militar do Planalto. Sua herdeira recebe uma pensão militar desde janeiro de 1997. Fora a remuneração bruta mensal de R$ 33.952, a mulher ganhou uma bonificação natalina de R$ 17.818 em novembro de 2022.
Comando militar do CIE
Na época em que o camponês maranhense Epaminondas Gomes de Oliveira estava preso em Brasília, o Centro de Inteligência do Exército (CIE) era comandado pelo general de brigada Milton Tavares, que é citado, no relatório final da CNV, 97 vezes como autor responsável por crimes como desaparecimento, tortura e morte.
Outro militar responsabilizado por crimes da ditadura foi o general Hugo Abreu, que gera uma pensão de R$ 36 mil para as filhas. Para a CNV, ele foi autor de 42 crimes entre 1964 e 1985.
A agência do Distrito Federal do CIE era comandada pelo major Lício Augusto. Em 2005, segundo o Memorial da Repressão do governo de São Paulo, ele discursou na Câmara dos Deputados sobre sua atuação contra a guerrilha do Araguaia e afirmou ter sido o autor direto dos disparos que mataram o militante André Grabois.
O militar foi ao plenário a convite do ex-presidente Jair Bolsonaro, na época deputado federal. Na ocasião, o político chegou a falar que o exemplo do major arrastará “os verdadeiros patriotas de hoje para, mais uma vez, impedir que se implante no Brasil, pelo golpismo, uma ditadura sangrenta”. No mesmo nome de Augusto, há uma pensão de R$ 27.133, disponibilizada desde 2020 para um dependente.
Comissão Nacional da Verdade
A Comissão Nacional da Verdade foi criada por meio da Lei Nº 12.528, de 18 de novembro de 2011. O órgão tinha como objetivo “examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas” a fim de “efetivar o direito à memória e a verdade histórica, além de promover a reconciliação nacional”. Ao final, mais de 370 militares foram responsabilizados pela CNV.
Até 2014, através da CNV, foram instauradas quase duas centenas de procedimentos criminais e ações penais que para a responsabilização criminal de agentes militares e civis por “desaparecimentos forçados”. Apesar do avanço, a comissão não alterou os dispositivos da Lei de Anistia, de 1979, que inocentou autores e responsáveis de crimes cometidos.
Lei de Anistia e acusações
Mateus Gamba Torres, professor da Faculdade de História na Universidade de Brasília (UnB), explica que a Lei de Anistia, de 1979, não responsabilizou os “crimes conexos” aos delitos cometidos. “Estavam anistiados as pessoas que participaram dos movimentos de oposição ao regime e crimes conexos. Nesses crimes conexos, eles colocaram os militares que participaram dos assassinatos. Eles nunca nem foram culpados, nem foram responsabilizados formalmente por nada”, conta Torres.
Para o docente, o grande absurdo é que houve crimes contra a humanidade, como tortura e desaparecimento, não foram punidos. “São crimes contra os direitos humanos, ou seja, sem prescrição e não passível de anistia”, diz o especialista. Em 2010, o Supremo Tribunal Federal (STF) validou a lei. Entretanto, a Corte Interamericana de Direitos Humanos indicou, posteriormente, que ela viola as obrigações do Brasil perante o direito internacional.
“Toda jurisprudência internacional diz que a autoanistia, como foi feito pelos militares brasileiros, não é uma coisa aceitável juridicamente, principalmente contra crimes contra a humanidade. Então, o Brasil tem uma dívida justamente com essas pessoas que lutaram contra a ditadura e que foram torturados e assassinados por seus algozes”, considera o historiador.
Apesar das acusações e de denúncias formais feitas pelo Ministério Público Federal (MPF), incluindo o major Lício Augusto, só há uma única condenação contra um delegado aposentado. A sentença foi expedida em 2021, 50 anos depois da morte de Epaminondas Gomes de Oliveira, na Justiça de São Paulo.