Parlamentares de três estados falam sobre a importância de ocupar esses espaços para garantir os direitos das populações mais vulnerabilizadas
As Comissões de Direitos Humanos das Assembleias Legislativas têm papel fundamental na defesa de direitos individuais e coletivos e funcionam como interlocutoras entre a sociedade e o poder público. Elas estabelecem uma relação direta com a população, além de contribuírem para a elaboração de políticas públicas que versem sobre a pauta dos direitos humanos. Portanto, ocupar esses espaços com pessoas comprometidas com o Estado Democrático de Direito torna-se uma estratégia para garantir os direitos das populações mais vulnerabilizadas.
Visando essa defesa, duas deputadas estaduais apoiadas pelo projeto Estamos Prontas, parceria entre o Instituto Marielle Franco e o Movimento Mulheres Negras Decidem, tomaram posse nas Assembleias Legislativas do Espírito Santo e do Rio Grande do Sul: Camila Valadão (PSOL-ES) e Laura Sito (PT-RS), respectivamente. Ambas assumiram a presidência da Comissão dos Direitos Humanos. No Ceará, a vereadora Adriana Gerônimo (PSOL), apoiada pelo Estamos Prontas, também assumiu a presidência da CDH através da mandata coletiva “Nossa Cara”.
Em entrevista ao Catarinas, Tainah Pereira, coordenadora política do Movimento Mulheres Negras Decidem e co-coordenadora do Estamos Prontas, celebra a chegada dessas parlamentares a esses espaços e destaca que esse movimento é importante para despolitizar o campo de atuação dos direitos humanos, capitaneado nos últimos seis anos pela extrema direita, que distorceu totalmente seus princípios.
“Ao contrário do que o senso comum nos faz acreditar, não é que as pessoas de direita tenham deixado de tratar desse tema. O que existe é uma reorientação. Sai o foco das populações originárias, população negra, direitos das mulheres, principalmente direitos sexuais reprodutivos, para entrar a família como prioridade, essa unidade monolítica heteronormativa e patriarcal. Então, ter mulheres negras à frente dessas comissões é muito importante para que a gente se recupere dos retrocessos e consigamos avançar nas políticas de Direitos Humanos no Brasil”, explica Pereira.
Também conversamos com as parlamentares para entender como tem sido a atuação em seus respectivos territórios, as funções práticas dessas comissões e as medidas políticas que pretendem pautar para a garantia dos Direitos Humanos em seus estados.
Representação
A vereadora Adriana Gerônimo (PSOL) explica que o trabalho de uma Comissão de Direitos Humanos é pensado para a defesa de crianças e adolescentes, das mulheres, das pessoas negras, das pessoas com deficiência, dos idosos, do público LGBTQIA + e o acompanhamento das demandas de conflitos fundiários, como direito à moradia e direito à cidade. Justamente as principais vítimas de violações de direitos humanos no Brasil, como apontam levantamentos nacionais.
Quando se trata da população trans e travestis, os dados também escancaram mais violência e o abandono do poder público. Segundo o “Dossiê: Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras”, realizado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), 131 pessoas trans e travestis foram assassinadas no país em 2022. Outras 20 tiraram a própria vida diante da discriminação e do preconceito.
Nesse sentido, é imprescindível contar com parlamentares que compreendam as falhas do poder público e que tenham sensibilidade para atender a essas demandas, a fim de elaborar medidas eficazes que consigam delinear novos futuros possíveis.
Gerônimo compõe a mandata coletiva “Nossa Cara”, a primeira do tipo eleita na capital cearense, junto com as vereadoras Lila Salú e Louise Santana. O trabalho é dividido em três eixos centrais, com cada uma sendo responsável por uma área: Santana com direito à educação, Salú com direito à cultura e Gerônimo com direito à cidade.
“Nós somos três mulheres negras, LGBTs, vindas da periferia. Então, a gente sabe exatamente onde a política pública falhou. Onde a violação de direitos humanos aconteceu. Então, a gente traz uma bagagem, uma trajetória importante em coletivo porque há vários movimentos populares, movimentos de moradia, de cultura, de educação que acompanham essa mandata e também buscam trazer seu olhar da cidade”, argumenta a vereadora.
Atuação no território
No Rio Grande do Sul, 2022 foi o primeiro ano em que o estado elegeu mulheres negras para o parlamento. Mais de 35 anos desde a redemocratização, reflexo de muita luta dos movimentos negros e sociais. Também de forma inédita, Laura Sito tornou-se a primeira mulher negra a presidir essa comissão.
A posse aconteceu no dia 1º de março, poucos dias após o resgate de mais de 200 pessoas de um alojamento em Bento Gonçalves, na serra gaúcha, onde eram submetidas a “condições degradantes” e trabalho análogo à escravidão durante a colheita da uva. Somam-se ao caso o resgate de trabalhadores na colheita de arroz e recentemente também na pesca do camarão.
Segundo a parlamentar, o estado gaúcho “tem vivido um dos episódios mais abjetos da sua história” e as situações foram acompanhadas por ela já como presidenta da CCDH. Sito conta que um grupo de trabalho interinstitucional foi estabelecido na comissão para monitorar os casos.
“O combate ao trabalho escravo ganhou centralidade na agenda da comissão, levando em consideração que nos três primeiros meses de 2023 foram resgatados cerca de 600 trabalhadores em situação análoga à escravidão no Brasil e quase metade deles no Rio Grande do Sul”, afirma.
No Espírito Santo, o cenário também se mostra desafiador diante do histórico de conservadorismo do estado capixaba. A deputada Camila Valadão destaca que além da dificuldade de pautar os direitos das maiorias minorizadas, a violência urbana e o bolsonarismo vigente também se impõem como obstáculos. Ela lembra que o Espírito Santo já foi reconhecido internacionalmente pela atuação do crime organizado e de grupos armados vinculados a interesses políticos e econômicos e hoje vive um contexto de incertezas quanto à atuação dessa criminalidade, supostamente superada.
“O cenário atual é de muito confronto com o bolsonarismo, com a extrema direita, com o crescimento do neofascismo, com ameaças a muitas escolas. Então, a gente vem constatando esse que é um fenômeno em todo o país e tem tido muitos impactos aqui no nosso estado”.
O enfrentamento à violência contra as mulheres, a defesa dos povos indígenas, bem como as violações à população LGBTQIA + são outras demandas apontadas pelas parlamentares. Elas também destacam o aumento da fome, a violência nas escolas e a questão da moradia.
Em Fortaleza, Ceará, o legislativo está dedicado à revisão do plano diretor que pauta a médio e longo prazo como se dará o desenvolvimento urbano. Adriana Gerônimo relata que nos últimos dez anos esse desenvolvimento aconteceu de maneira muito desigual, gerando aumento de despejos e remoções por obras públicas, consequentemente desencadeando uma série de outros problemas.
Disputa permanente
Além das denúncias levadas pela população, a composição das casas legislativas também se apresenta como mais um desafio já que as parlamentares fazem oposição aos governos vigentes. Na Câmara de Fortaleza, Adriana Gerônimo relata o cerceamento das articulações políticas que vão contra o grupo de apoio ao prefeito José Sarto (PDT).
Camila Valadão destaca que a disputa de narrativa dos direitos humanos também faz parte da rotina na Assembleia legislativa do Espírito Santo e que sua comissão tem pautado os direitos humanos de forma universal, interdependente e indivisível, a partir da articulação dos direitos sociais, civis, políticos, econômicos, ambientais, culturais.
“O legislativo é um espaço de disputas permanente. Essas disputas ocorrem a partir de diversas concepções que se colocam dentro do parlamento e a gente vai tentando, a partir de muito diálogo, avançar com as políticas públicas, principalmente aquelas políticas vinculadas à área dos direitos humanos”, completa a deputada.
Laura Sito ressalta que ser o elo entre a Assembleia Legislativa e a população nesse momento de retomada da agenda de direitos no Brasil é poder, de fato, contribuir para o fortalecimento da democracia. Ela destaca a possibilidade de poder articular a atuação da comissão que preside com as políticas do Governo Lula, por meio do Ministério da Igualdade Racial, do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, Ministério dos Povos Indígenas e também com outras áreas do governo.
“É um momento em que podemos atuar não só de forma reativa, mas também de forma propositiva, dialogando e promovendo políticas públicas para a construção de uma sociedade mais justa”, afirma Sito.
Já para Tainah Pereira, apesar do atual governo pautar a defesa das maiorias minorizadas, a composição no Congresso Nacional segue muito conservadora. Ela aponta que o Brasil vive um momento de ascensão do nazismo e da cristalização desse ideário nazista na política institucional de maneira muito perigosa, pois conta com o respaldo de uma parcela significativa da população.
“Muitas lideranças têm se manifestado abertamente, inclusive, em discurso nas tribunas. Claro, sem dar nomes a isso, mas evocando ideias de pureza étnica, de pureza da raça humana, desqualificando pessoas trans, pessoas com deficiência, indígenas. É urgente pensar em políticas públicas que pautem essa questão, principalmente na área da educação, e também em termos de criminalização, responsabilização dessas pessoas para que esse discurso volte a ser enquadrado como algo nocivo à sociedade”.
Ocupar e ampliar
Tainah Pereira também compartilha uma reflexão que tem sido feita tanto no Estamos Prontas quanto em outras organizações da sociedade civil, em particular as lideradas por mulheres negras: a atuação dessas mulheres em comissões permanentes no legislativo, seja nas assembleias estaduais, Câmara Federal ou Senado, não pode ficar restrita a temas relacionados aos direitos das mulheres e aos cuidados. É preciso ir além.
“É muito importante que mulheres diversas tenham espaço em comissões permanentes para tratar de orçamento, para tratar de Constituição e Justiça que são, em geral, as comissões mais importantes, mais fundamentais. Comissões que tratam de temas que são caros para essas mulheres, como educação e saúde porque é fundamental que essas mulheres negras apresentem a sua cosmovisão e proponham políticas públicas que sejam, de fato, interseccionais e efetivas em função do seu território, da idade, identidade de gênero, entre outros fatores.”