O jornal Correio Braziliense conta a história de duas meninas do Distrito Federal que, em 2006 e 2007, saíram de casa, nunca mais voltaram e não foram encontradas. Desaparecimentos de Leuzenilda Marques e Michele de Jesus são exemplos de casos que desafiam a polícia
Leuzenilda Marques da Rocha, 17 anos, saiu de casa, no Paranoá, para ir à festa junina de uma igreja católica da região. Quase 16 anos depois, os familiares e amigos da garota não sabem se ela realmente chegou ao evento. Eles buscam, até hoje, por qualquer notícia que leve ao paradeiro da jovem. Esse sumiço sem explicação revela uma realidade espantosa de casos de desaparecimento não solucionados na capital da República. Para retratar esse cenário, o Correio conta a história de duas meninas que sumiram no DF nos anos de 2006 e 2007. Ao longo de três semanas, a reportagem saiu em busca e entrevistou familiares, amigos e pessoas próximas das garotas.
Leuzenilda nasceu em 26 de abril de 1990 em Pilão Arcado (BA). De uma família de nove irmãos, cresceu em uma fazenda do interior do município baiano. Treze anos depois, a vida da adolescente tomou um rumo misterioso. Em 1º de dezembro de 2003, quando ela tinha 13 anos, o pai dela, Antônio Marques da Rocha, procurou a 9ª Delegacia de Polícia (Lago Norte) para denunciar um suposto crime de rapto violento. O Correio obteve acesso ao registro policial e, em depoimento, Antônio contou que a filha havia sido induzida por um rapaz, de 19 anos à época, a mudar-se da cidade natal para Brasília. De acordo com o pai, o rapaz começou a morar com Leuzenilda em uma casa no Varjão e a manter relações sexuais com a vítima sem o consentimento dela.
SAIBA MAIS
Alessandra Marques da Rocha, 34, tinha 12 anos quando a irmã veio para o DF. Ela ficou com os pais na Bahia na época em que a irmã partiu, mas, atualmente, mora com o marido e os dois filhos em uma casa no Varjão. A diarista lembra que, em Brasília, Leuzenilda começou a trabalhar como empregada doméstica em uma mansão no Lago Sul. De segunda a sexta, ela dormia na residência da patroa e retornava para a casa no final de semana. "Lembro que ela gostava de morar no DF. Estava feliz. A última vez que nos vimos, demos um abraço", relembra.
Mas a relação entre Leuzenilda e o jovem até então suspeito de rapto passou a ser aceita pelos familiares dela residentes do DF. Claudelina Ribeiro Rocha, 51, tia de Leuzenilda, era quem acompanhava a menina de perto na capital federal. As duas tinham uma relação próxima e amigável. Quando o namoro entre Leuzenilda e o homem se rompeu, cerca de um ano depois dela vir da Bahia, a jovem se mudou para a casa de uma das irmãs, no Arapoanga, em Planaltina.
Meses depois, Leuzenilda conheceu Domingos Ribeiro Borges, hoje com 37 anos. Os dois viviam uma relação de marido e mulher e em pouco tempo de namoro decidiram morar juntos no Paranoá e, depois, em São Sebastião. Atualmente, Domingos mora em Pilão Arcado (BA), é casado, tem quatro filhos e trabalha como agricultor em uma fazenda do município. O Correio localizou e conversou com o homem, que diz buscar por notícias da ex até hoje. "Ela sempre foi uma menina muito boa, não bebia, não fumava, não tinha inimigos", conta.
Festa Junina
Fim de tarde de 10 de junho de 2007. Era um domingo e Leuzenilda se preparou para ir com uma amiga até uma festa junina em uma igreja católica do Paranoá. Ninguém sabe se a jovem chegou ao local. À época, ela já havia rompido o namoro com Domingos. A tia da jovem relata que o relacionamento entre os dois era conturbado, mas nunca soube de possíveis agressões cometidas por parte do homem contra a sobrinha. Domingos nega, mas confirma que a melhor saída foi a separação.
O agricultor dá uma outra versão quanto ao desaparecimento da ex. Embora separados, ele lembra que Leuzenilda saiu de casa para ir até à residência de uma amiga, mas não tinha a intenção de ir à festa junina. Essa foi a última informação que circulou sobre a jovem. Nenhuma câmera de segurança registrou o que antecedeu o sumiço de Leuzenilda ou, sequer, uma possível testemunha.
Os familiares da garota só tomaram conhecimento do desaparecimento três dias depois, após a patroa dela notar a ausência da jovem na segunda-feira, dia em que Leuzenilda deveria estar no trabalho. A própria patroa deu queixa na delegacia e alertou os parentes. "Ela não tinha motivos para fugir. A mãe dela, que mora na Bahia, chegou a vir para Brasília e ficou por um bom tempo aqui. Fez um teste de DNA na época em que encontraram uma ossada, mas não era da filha. Vivemos com essa angústia", desabafa Claudelina.
Claudelina relata que, logo após o desaparecimento da sobrinha, Domingos se apressou para se mudar para Bahia e se desfez de todos os móveis do casal. Ele rebate e diz que permaneceu no DF por quase um ano em busca de pistas para localizar a ex. À época, Domingos prestou depoimento à polícia. "Até hoje, depois desse tempo todo, eu penso nisso. Hoje, tenho uma família formada, mas essa angústia nunca saiu de mim", finaliza. Na casa da tia de Leuzenilda resta o retrato antigo da jovem, documentos pessoais e a saudade. "A gente sente falta demais. Quando você sabe o que aconteceu, tudo bem. Mas e quando você não tem ideia de nada?", pontua a tia.
Brincar na casa da amiguinha
O desaparecimento da menina Michele de Jesus da Conceição, 10 anos, talvez seja um dos mais enigmáticos do DF. Na manhã de 7 de setembro de 2006, Michele saiu de casa, na Expansão do Setor O, para brincar na casa de uma amiga, na rua ao lado, e nunca mais foi vista. Em um envelope, o pai de Michele, Gercino Bernardes da Conceição, 70, guarda todas as fotos, cartazes e registros que possam auxiliar em qualquer informação sobre a menina. No ano em que a filha sumiu, Gercino trabalhava como vigilante em uma empresa de depósitos. O serviço era durante a madrugada e ele só retornava para a casa na tarde do dia seguinte.
Como um dia comum, em 6 de setembro de 2006 — véspera do Dia da Independência do Brasil —, Gercino saiu para o serviço. No dia seguinte, antes de finalizar o expediente, o homem recebeu uma ligação do filho mais velho. O telefonema marcava o começo de um pesadelo. "O Fernando (filho) me disse que a Michele tinha saído de casa e não tinha voltado."
A casa da amiga para onde Michele disse que iria fica uma rua depois da dela. Mas Gercino descobriu que a filha sequer havia chegado na residência da colega. "Ali, começou um inferno e acabou o resto do meu dia", desabafou. À noite, o pai procurou a delegacia e registrou um boletim de ocorrência por desaparecimento.
Na manhã em que sumiu, estavam na casa a madrasta de Michele e dois irmãos. Michele perdeu a mãe aos 6 anos vítima de uma parada cardiorrespiratória. Meses depois, o pai dela começou um relacionamento com outra mulher. O casamento, no entanto, terminou em 2019. Segundo Gercino, a ex-mulher contou que havia trancado o portão, como de costume, mas Michele teria dito que o pai a autorizou brincar na amiga e, por isso, o portão deveria ficar aberto.
Às 8h, a menina saiu de casa e nunca mais voltou. O Correio localizou e conversou com uma das amigas e vizinhas de Michele, que tinha 13 anos à época. Ela relembra que, naquele mês em específico, circulava na comunidade uma lenda urbana sobre um suposto casal de sequestradores de crianças que passava nas ruas em um carro preto. A suspeita nunca foi confirmada pela polícia. "Brincávamos muito naquela região. Me recordo que, após essa falácia, minha mãe até proibiu eu e minha irmã de brincar na rua e ficamos um tempo sem ir", conta.
O desespero por qualquer notícia sobre o paradeiro da filha fez Gercino integrar um grupo destinado a pais que tinham filhos desaparecidos. Pela ONG, o aposentado chegou a viajar para Cocos (BA) atrás de Michele. "Lá, moram os familiares da mãe dela. Lembro que, antes da Michele desaparecer, o meu cunhado me ligou e disse que, se a Michele não estivesse se dando bem com a madrasta, ele poderia vir buscá-la para morar com eles. De repente, a hipótese de terem levado ela sem me avisar passou pela minha cabeça. Então, cheguei lá (Bahia) de surpresa, mas constatei que jamais eles fariam isso", disse.
O fato da Michele não ter uma relação muito amigável com a ex-mulher dele também o fez desconfiar. "Eu não aponto o dedo. Tento não desconfiar de nada, mas como descartar? Não tenho nenhuma informação, não tenho nada sobre a Michele. Vivo com essa mágoa de nunca tê-la encontrado. Essa dor só vai sair quando eu morrer", desabafou.
Gercino não perde a esperança de encontrar a filha, mas é realista ao reconhecer que possa ter acontecido o pior. "Se fizeram algo com ela, fizeram bem feito, para ninguém descobrir. Não duvido que tenha raptado ela, mas não posso perder a confiança", finaliza.
Investigação
Os desaparecimentos de Leuzenilda e Michele foram investigados pela 6ª DP (Paranoá) e pela 24ª DP (Setor O). Em algumas ocorrências, quando não se consegue colher provas e elementos suficientes para elucidar o caso, ou em algum acordo entre os delegados, o inquérito policial é enviado à Coordenação de Repressão a Homicídios e de Proteção à Pessoa (CHPP). No caso dessas meninas, não há conclusão até o momento.
A Polícia Civil (PCDF) disponibiliza uma aba no site do órgão, destinado a pessoas desaparecidas. No portal, são colocadas fotos de crianças, adolescentes, jovens e adultos junto a uma imagem de progressão de idade — uma técnica feita pelo Laboratório de Representação Facial Humana do Instituto de Identificação (II), em que o resultado visa demonstrar como seria a aparência atual de uma pessoa após um grande período de seu desaparecimento.
Outros casos
No banco de dados do Laboratório de Representação Facial Humana da internet, há seis pessoas do sexo feminino que sumiram, entre crianças e adolescentes, há, pelo menos, 15 anos. São elas: Ranara Lorrane, 10, Dandara Gonçalves, 15, Elizane da Silva, 8, Sara da Silva, 14, Leuzenilda Marques, 17, Michele de Jesus, 10. Caso alguém tenha informações sobre um desaparecido, entre em contato com a polícia pelo 197 ou pelo site: www.pcdf.df.gov.br/servicos/197.
Frase
"Se fizeram algo com ela, fizeram bem feito, para ninguém descobrir. Não duvido que tenha raptado ela, mas não posso perder a confiança", Gercino Bernardes, pai de Michele.
Frase
"A gente sente falta demais. Quando você sabe o que aconteceu, tudo bem. Mas e quando você não tem ideia de nada", Claudelina Ribeiro, tia de Leuzenilda.