Novo estudo aponta: após agressões, apenas 8,5% das mulheres procuram as delegacias; 14%, as especializadas. Elas temem represálias ou que nada se resolva. 38% acreditam que podem “resolver sozinhas”. Maioria das vítimas são negras
Publicado 02/03/2023 às 19:52 - Outras Palavras
Ilustração: Antonio Junião / Ponte Jornalismo
Por Carolina Maingué Pires, na Ponte Jornalismo
Quando Barbara Ribeiro tinha 16 anos, saiu de casa descalça, chorando e com a cachorrinha no colo, sem saber muito bem para onde ir. Sabia apenas que não conseguiria tolerar mais um surto de violência provocado pelo pai, que já havia tentado agredi-la diversas vezes. Recebeu ajuda de um homem que trabalhava em um restaurante na sua rua e foi levada à delegacia. Não estava decidida a falar nada. Mas, quando chegou lá, desatou a chorar ainda mais e acabou contando sobre as violências repetidas. Uma mulher, que ela não lembra qual função ocupava, acolheu-a. Mas o delegado do 91º Distrito Policial (Vila Leopoldina) desencorajou que a adolescente prestasse denúncia. “Você tem certeza que você quer fazer um boletim de ocorrência contra seu pai? Vai ficar marcado pra sempre”, Barbara lembra ter escutado.
Ela diz que teve medo do “pra sempre” e decidiu não registrar a agressão. No fim, seu pai foi embora de casa, deixando ela, sua mãe e sua irmã. O ciclo da violência doméstica, contudo, não terminaria com sua partida. Quando Barbara fez 21, em 2014, mudou-se para São Carlos, no interior paulista, para cursar engenharia. Conheceu um estudante mais velho e começaram a namorar.
Na relação, a primeira violência que apareceu foi a psicológica, com traições e mentiras. Depois, ele passou a impedi-la de acessar suas próprias contas bancárias. Como o namorado estava com problemas financeiros, emprestou para ele algumas vezes seu cartão. Pouco tempo depois, percebeu que era ele quem havia passado a decidir o que ela podia ou não comprar. “Um dia eu fui pedir o cartão para comprar um cachorro quente e ele disse que não me daria pois eu estava muito gorda e não era pra comer aquilo. Eu comecei a chorar”, conta a jovem, hoje com 30 anos.
Barbara se afastou de todos os amigos e mudou sete vezes de casa, porque os vizinhos e companheiros de quarto não toleravam as brigas do casal, que beiravam a violência física. Até que, durante uma discussão após voltarem de uma festa onde tinham usado entorpecentes, o homem afundou a cabeça da namorada em um balde de água. “Ele disse que era para passar o efeito, porque eu estava louca. Mas, pra mim, foi a primeira das três vezes que ele tentou me matar.” Na segunda, ele deu partida em um carro com a porta aberta e jogou Barbara para fora. Na terceira, a estudante não queria ter relações sexuais e ele a dopou com um comprimido.
A engenheira não sabe até hoje se o namorado chegou a estuprá-la durante a madrugada. Foi ele mesmo quem confessou, alguns dias depois, que a havia drogado. Dessa vez — que foi a última — Barbara estava decidida a prestar queixa, mas ficou com receio de não ter como provar. “No momento em que você sair daqui eu vou na delegacia fazer corpo de delito, eu falei, e ele respondeu: ‘por isso que eu esperei quatro dias pra contar.’”
Quase metade das mulheres vítimas de violência não procura qualquer ajuda
Ainda que não tenha procurado a polícia, Barbara pediu ajuda para sua mãe no final do relacionamento. Mas 45% das mulheres vítimas de violência não fazem nada, aponta o estudo Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil, publicado nesta quinta (2/3) pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). A busca por atendimento policial é ainda menor. As delegacias, que deveriam funcionar como locais de acolhimento e capazes de orientar sobre os procedimentos legais, não são vistas como espaços seguros e nem eficazes.
Quando perguntadas sobre qual atitude tomaram após terem vivido o episódio mais grave de agressão nos últimos doze meses, apenas 8.5% das mulheres disseram ter procurado uma delegacia comum e 14% uma delegacia especializada. 4.8% relataram ter acionado a Polícia Militar (PM) pelo telefone (190) e 1.7% prestaram denúncia por meio eletrônico. A busca por parentes e amigos foi de 17.3% e 15.6% respectivamente.
Questionadas sobre o motivo pelo qual não procuraram a polícia, 10.9% das entrevistadas disseram apenas que “não queria envolver a polícia”. 12.8% relataram ter medo de represálias, 14.4% disseram que não procuraram as autoridades por falta de provas e 21.3% não acreditaram que a polícia poderia resolver o problema. Há ainda as que disseram não se tratar de nada importante (13.2%). A maioria, no entanto, contou que não procurou a polícia porque “resolveu sozinha” (38%).
Atendimento especializado e descrédito em relação ao Estado
A primeira Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) no Brasil foi criada em 1985 em São Paulo, após a redemocratização, durante o governo de Franco Montoro (MDB). Segundo o estudo Mapeamento das Delegacias da Mulher no Brasil, elaborado pelo Núcleo de Estudos de Gênero Pagu da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), foi a primeira vez que a especialização do trabalho policial teve como critério a identidade da vítima e não o tipo criminal.
Para Isabela Sobral, coordenadora do núcleo de dados do FBSP, a existência de atendimento especializado é importante, mas não dá conta do problema tanto pela questão geográfica quanto pela necessidade de os demais profissionais também estarem preparados para lidar com a violência de gênero.
“As delegacias da mulher estão muito concentradas nas capitais e nas regiões metropolitanas, então mulheres têm dificuldade de acesso, sendo que a distribuição entre casos que acontecem no interior e na capital é quase meio a meio. Se essas delegacias não chegam no interior, a delegacia que existe lá tem que ter policiais capacitados para atender essas mulheres, de forma humana, sem retimivizar”, afirma.
Ainda que a maior parte das mulheres não se sinta à vontade para procurar as delegacias especializadas, as atitudes consideradas mais importantes pelas entrevistadas, diante de um episódio de violência de gênero, foram justamente punir de forma mais severa os agressores (76.5%) e ter alguém para conversar, como um psicólogo ou outro especialista em saúde mental (72.4%). “Isso mostra o descrédito que existe em relação a como o Estado age”, avalia Sobral.
“O espaço menos seguro para as mulheres continua sendo dentro de casa”
Ainda que a engenheira Barbara Ribeiro não tenha registrado BO contra seu agressor por falta de provas, das primeiras vezes em que vivenciou situações graves de violência ela não prestou denúncia porque “não queria terminar” o relacionamento. 73.7% das agressões contra mulheres vêm de conhecidos — com quem, muitas vezes, mantêm uma relação de proximidade e até mesmo afeto, em meio a manipulações e dependência emocional e financeira.
Segundo a pesquisa do FBSP, 53.8% das mulheres que sofreram violência afirmaram que o episódio mais grave dos últimos 12 meses ocorreu em casa. “O espaço menos seguro para as mulheres continua sendo dentro de casa”, informa o estudo. Por isso, Isabela Sobral acredita que, além do fortalecimento das instituições, é preciso olhar para a cultura.
“É através da cultura que isso [a violência de gênero] se propaga. Uma questão sempre falada é o empoderamento econômico como forma de combatê-la, mas também é muito importante a questão cultural, a conscientização dos papeis de gênero, do machismo que existe na sociedade. Porque várias soluções que aparecem não têm o efeito que a gente espera.”
Entre essas soluções, ela cita o fato de a mulher conseguir emprego. A autonomia financeira deve ser algo buscado, defende a especialista, mas pondera que em diversas situações o homem se sente ameaçado pela independência e reage com agressões. “Ou se separar, por exemplo. Os maiores agressores que apareceram nessa pesquisa foram os ex companheiros. Ou seja, terminar o relacionamento não necessariamente significa que a violência vai acabar.”
As agressões físicas também são mais comuns contra mulheres negras. A proporção de mulheres brancas e negras que foram vítimas de violência sexual ao longo da vida é similar, mas tapas, batidas, empurrões ou chutes prevalecem entre pretas e pardas (18,6% entre as mulheres brancas contra 27,1% entre as mulheres negras).