Artesã narra momentos de terror que viveu com o filho pequeno em Piracaia após vizinhos descobrirem que ela vendia bonecos de orixás e votava em Lula.
O BRASIL ESTÁ se nazificando: no ano passado, foram encontradas ao menos 1.117 células nazistas no país, segundo a pesquisadora Adriana Dias, referência no tema – o número é mais de 270% maior que o de 2019. Os anos Bolsonaro impulsionaram esse crescimento ao aliar discursos de ódio institucionalizados à naturalização de elementos nazifascistas.
A propagação dessa ideologia acontece às sombras, silenciosamente, em especial nos fóruns da internet. Mas casos de intimidação, apologia ao nazismo e de formação de grupos em torno dessas ideias têm sido registrados em escolas, igrejas, espaços públicos e privados, atingindo das metrópoles às pequenas cidades brasileiras.
Em novembro, a artesã Mariana se tornou alvo desse tipo de ameaça. Fazia poucos meses que ela se mudara para Piracaia, interior de São Paulo, na esperança de mais paz para trabalhar e criar o filho de 12 anos. Mas o que encontrou foram experiências perturbadoras. Vítima de racismo e intolerância política e religiosa, Mariana recebeu um recado alarmante na conta de água: as palavras “negra, suja, istrupar, comunista” juntas ao desenho de uma suástica.
Aqui, ela detalha a experiência. Seu relato foi editado para fins de clareza.
SEMPRE FUI CONSCIENTE dos desafios impostos pela vida. Sou uma mulher negra, nordestina e artista. Foram muitas barreiras que encontrei. Vim para São Paulo em 1984, quando minha mãe recém-divorciada decidiu que queria dar a mim e a meus irmãos maiores oportunidades de formação e de crescermos em um ambiente menos racista. Em Natal, capital do Rio Grande do Norte, de onde viemos, foi bem complicado. Vivi muitas situações de racismo crescendo como uma menina preta.
Desde sempre lutei contra essa discriminação. Mesmo quando casei, virei mãe, nunca estive longe da luta. Em 2014, meu caçula começou a sofrer bullying na escola. As crianças tiravam sarro por ele ser filho de uma mulher negra. Eu lembro de ter pensado: “Isso de novo? Não é possível!”.
Eu vim morar em Piracaia, lutando contra o machismo. Tive um companheiro violento e, após o término, ele passou a me perseguir. Buscando segurança e conforto, vim para cá com meu filho. Eu gostei muito da cidade e fui bem recebida. Parecia que não teria problema nenhum. Mas, depois de um tempo, fui percebendo como os vizinhos falavam muito de coisas religiosas. Toda hora falando de Deus, recitando salmos. Até uma bíblia me deram.
As pessoas vinham me perguntar sobre minha religião. Eu nem sou religiosa, mas acabei sofrendo intolerância – e racismo, mais uma vez. Quando a vizinhança descobriu que eu trabalho fazendo bonecas de orixás, passei a ser percebida como “a diferente”. E, na época das eleições, piorou muito. Eu estava sufocada pelos anos do governo Bolsonaro, aquela tirania. Apoiei a candidatura do Lula e, depois de alguns dias escutando as músicas de campanha em casa, meus três gatos foram envenenados. Um, infelizmente, acabou morrendo.
Outras formas de ameaça começaram a aparecer. Um dia, peguei a conta de água na caixinha do correio e estavam lá aquelas palavras: “negra, suja, istrupar, comunista”. E o símbolo da suástica desenhado. Senti o ódio direcionado a mim: à minha raça, à minha ideologia. Depois de alguns dias, jogaram aqui dentro um saco cheio de fezes humanas. Fiquei muito assustada e decidi ir à polícia.
As pessoas que me atenderam na delegacia tiraram sarro da situação, falaram para eu não esquentar a cabeça, que aquilo era brincadeira de criança. Brincadeira? Uma ameaça de estupro, racismo e o desenho de uma suática? Isso não é brincadeira. Foi uma situação tão constrangedora que nem cheguei a registrar a queixa. Percebi que a polícia não iria me ajudar e decidi postar a situação no Instagram. Assim, dando visibilidade ao caso, pensei que alguém pudesse se sensibilizar, ampliando a minha voz.
Decidi tornar essas ameaças públicas para mostrar que isso não é normal. A gente não está vivendo numa sociedade normal. Essa coisa de plantar o ódio dá nisso. E esse ódio todo, isso é uma semente que plantaram e estão plantando. Muitas pessoas que tinham o racismo, a homofobia, enfim, o ódio guardado dentro de si se sentiram à vontade para colocar isso para fora.
Este tipo de pensamento, de “se você não sobrevive, é porque você não merece”, isso tem que ser combatido. Tem que haver uma união popular para lutar contra esse tipo de ideologia. Se não, daqui a pouco vai acontecer o quê? Vão amarrar os negros, colocar fogo na gente? Sabemos que isso aconteceu, isso é história recente. A gente já vê a perseguição, o assassinato de jovens negros todo dia. E a história desses movimentos da direita mostra que eles começam assim e vão se transformando em coisas cada vez piores.
Eu fico preocupada com a minha segurança e, principalmente, com a dos meus filhos. Minha filha mais velha mora em São Paulo, faz faculdade lá. Depois que eu recebi aquela ameaça na conta de luz, falando em estupro, passei a ter medo de recebê-la aqui. Fico incomodada o dia inteiro, com a sensação de que estou sendo observada.
Depois que eu dei a entrevista relatando esses acontecimentos, voltei a receber um recado intimidador pela caixa do correio. O texto, como o que veio na minha conta de luz, tinha erros e uma caligrafia que dificultava a leitura. Era como uma ameaça religiosa, que dizia assim: “Eis que vem o Dia do Senhor, dia cruel, com ira e ardente furor, para converter a terra em assolação e dela destruir os pecadores. Suas crianças são esmagadas e suas mulheres são violadas”. Por último, estava escrita a frase “cala boca, puta”.
Imagino que quem me enviou essa ameaça tenha visto vocês, jornalistas, chegando. Viram a câmera e imaginaram que eu ia dar uma entrevista, fazer uma denúncia. Não sei se escutaram a nossa conversa. Quando fui checar a caixa do correio, depois que vocês foram embora, estava lá este bilhete. Todo dobradinho e, na parte de cima, bem à vista, outro desenho da suástica.
Fiquei assustada. Não consigo parar de pensar nisso. O quarto do meu filho tem a janela virada para a rua, e eu não estou deixando ele dormir lá, com medo de que algo possa acontecer. Decidi que a mudança é a única opção para resolver esse problema. Continuar morando no mesmo lugar, com essa vizinhança, significa me expor a situações que eu nem posso imaginar. É muito violento me sentir ameaçada dentro da minha casa.
Eu me sinto revoltada. Não recebi ajuda, proteção, orientação nenhuma da polícia. Agora, novamente tenho que reorganizar minha vida, e quem me fez essas ameaças continua vivendo como se nada tivesse acontecido, sem incômodo e podendo praticar seu ódio livremente.
O nazismo, a Ku Klux Klan também se espalharam assim: nas cidades do interior, em pequenos grupos de pessoas intolerantes. Mas não podemos deixar o medo paralisar a gente, nem dar espaço para esse tipo de pensamento se multiplicar. Precisamos soltar a voz e ampliar os canais para as pessoas que sofrem as opressões fazerem suas denúncias, para não chegarmos num ponto sem volta.