Quase lá: Luta e resistência indígena: a história dos Ofaié durante a ditadura

No Dia dos Povos Indígenas, conheça a história da aldeia do Mato Grosso do Sul que trava imenso esforço para manter a tradição viva, após ser considerada extinta

 

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Mayara Souto 
postado em 19/04/2024 - Correio Braziliense
 
Centro da aldeia Ofaié conta com escola indígena, posto de saúde, igreja e centro comunitário com ateliê para as artesãs -  (crédito: Mayara Souto/C.B/Diários Associados)
Centro da aldeia Ofaié conta com escola indígena, posto de saúde, igreja e centro comunitário com ateliê para as artesãs - (crédito: Mayara Souto/C.B/Diários Associados)
 

Brasilândia (MS) – A 370 Km de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, em meio a um território preservado, repleto de folhagens e plantações, vive uma pequena comunidade indígena, a tribo Ofaié. Localizado na área rural de Brasilândia, o grupo de pouco mais de cem pessoas têm personalidade muito pacífica, discreta e com senso de coletividade. Por trás do jeito pacato, mora uma comunidade que luta para manter a sua cultura viva, após grande extermínio na ditadura militar.

“Eles botaram [o povo] em cima de um caminhão como se fosse animal e levaram para outra terra”, conta Neuza Souza, anciã da aldeia, sobre deslocamento forçado, que a sua comunidade sofreu em 1978. Segundo os Ofaié a ação foi realizada pela própria Fundação Nacional do Índio (Funai). Neuza lembra que ficou completamente sozinha, pois estava “caçando o que comer” para ela e a avó em outra região. “Quando eu cheguei de volta, não tinha mais ninguém, fiquei chorando, não sei quantos anos sozinha. Aí tive que casar nova para poder sobreviver. A minha avó foi para lá e morreu, nunca mais vi ela”, lamenta a anciã, que foi a única indígena de seu povo que “ficou para trás” na transferência dos Ofaié à Porto Murtinho (MS).

O município sul mato-grossense fica a cerca de 700 km de distância de Brasilândia. Lá encontra-se a reserva da etnia Kadiwéu, que vivia em meio a muitos conflitos por terra com fazendeiros e garimpeiros da região.

De acordo com historiadores, no período do ocorrido, existia uma ideia de reunir todas as tribos do MS em um só lugar – o estado possui a terceira maior população indígena do Brasil, segundo o IBGE, com 116 mil pessoas. Isso fazia parte das estratégias da ditadura militar para ocupar a Amazônia Legal e expandir o agronegócio. Um relatório da Comissão Nacional da Verdade, de 2014, estima que 8 mil indígenas foram mortos, por conta do regime militar, em conflitos por terras.

José Koi, também ansião Ofaié, lembra que o governo, através da Funai, os convenceu a ir para a outra região afirmando que havia melhores terras e mais assistência. A vida melhor, no entanto, não foi encontrada como o prometido. “Eles estavam passando por muita necessidade, com falta de saúde, de agricultura. Eles já estavam passando por uma grande privação de alimentação”, conta o indígena sobre os Kadiwéu. 

Correio entrou em contato com a Funai para saber o posicionamento acerca do momento histórico, mas até esta publicação, não obteve resposta. A vice-cacique da tribo, Ramona Coimbra Pereira, diz que a entidade “até hoje se retrata, fala que a culpa foi deles, e que eles fizeram isso”.

Sem atenção do Estado, que só voltou à democracia seis anos depois, os Ofaié contam que precisaram trabalhar para “os brancos” para conseguir sobreviver, já que ficaram desassistidos. Grande parte deles morreram de fome e em embates por disputa de terra – a tribo estima que entre as décadas de 40 e 60, a etnia tinha 2.200 pessoas e que, atualmente, são apenas 128 Ofaié vivos. 

Apenas em 1987, os indígenas conseguiram retornar a Brasilândia. José lembra que uma figura foi essencial para o retorno e todo enfrentamento neste período, o missionário do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Carlos Alberto Dutra.

“Meu povo fala que apareceu um Deus”, conta Ramona Coimbra Pereira, vice-cacique da tribo. Ainda criança à época, ela sabe da história contada pela mãe. “Carlito”, como os Ofaié o apelidaram, foi estudar a etnia e acabou conhecendo a realidade difícil junto aos Kadiwéu. Assim, resolveu os ajudar a viajar de volta para suas terras originais, em uma longa jornada.

  • Dona Neuza contou como foi ficar nas terras indígenas depois que todo seu povo foi levado a outra região
    Dona Neuza contou como foi ficar nas terras indígenas depois que todo seu povo foi levado a outra regiãoDivulgação/Sebrae
     
  • Artesãs fazem produtos de tecido com tintas e desenhos que elas produzem
    Artesãs fazem produtos de tecido com tintas e desenhos que elas produzemMayara Souto/CB/D.A.Press
     
  • Artesãs da tribo Ofaié, no Mato Grosso do Sul, passaram seis dias aprimorando as vendas de seus trabalhos
    Artesãs da tribo Ofaié, no Mato Grosso do Sul, passaram seis dias aprimorando as vendas de seus trabalhosDivulgação/Sebrae MS
  • Ramona Coimbra Pereira, de 40 anos, liderança das artesãs da tribo Ofaié, no Mato Grosso do Sul
    Ramona Coimbra Pereira, de 40 anos, liderança das artesãs da tribo Ofaié, no Mato Grosso do SulDivulgação/Sebrae MS

Luta por reconhecimento

“Ficamos perambulando pelas estradas, fazendas, mendigando. Sofremos muita discriminação, preconceito, na cidade, e a gente resistiu a isso, mas foi muito difícil”, relembra José, sobre dias de trem e caminhada até o retorno a Brasilândia. Sem terras por um tempo, eles entraram em acordo com a Funai para viver em uma área da região de maneira provisória.

O Ministério Público Federal (MPF) reconhece desde 1992 os 1.937 hectares de terra nativa da etnia Ofayé e pede para que a Funai realize a demarcação – o que ainda não aconteceu. As contestações dos fazendeiros à decisão do órgão público, nos últimos 22 anos, impediram em diversos momentos que os indígenas morassem em suas terras. Por isso, em 1997, uma companhia de energia comprou 432 hectares de terra para os indígenas, pois iria utilizar o território que eles estavam ocupando temporariamente para construir uma Usina Hidrelétrica. Desde então, eles possuem, na área adquirida, uma estrutura central na aldeia, com escola, posto de saúde, igreja e centro de convivência, em que realizam momentos de comunhão.

“Com todo esse massacre que nós vivemos, durante várias décadas, nós lutamos, resistimos e hoje estamos renascendo das cinzas. Fomos considerados quase extintos pelo antropólogo Darcy Ribeiro, mas provamos que nós resistimos”, afirma o cacique da tribo, Marcelo Silva. 

A ameaça de “extinção” persegue os Ofaié antes mesmo do conflito que fez os indígenas perderem suas terras. Na década de 50, Darcy Ribeiro passou algum tempo à margem do Rio Paraná, de onde a comunidade era originária. Porém, em certo ponto, ele encontrou apenas um grupo pequeno, de menos de dez pessoas. Darcy publicou artigo em uma revista de São Paulo dizendo que era “um grupo em processo rápido de completa extinção”. A conclusão foi corroborada pela Funai, que duas décadas depois redescobriu a etnia e os transferiu para a outra comunidade.

Os Ofaié guardam mágoa do diagnóstico decretado pelo antropólogo. Consideram um “erro” decretar que a etnia estava praticamente extinta. Mas Darcy fez um registro que, posteriormente, foi importantíssimo para comprovar a existência dos Ofaié. “Falam a língua Ofaié, usando o português somente nas relações com estranhos”, escreveu o pesquisador.

“O único povo Ofaié que existe, no mundo inteiro, somos nós. Para a gente provar que existia e ainda tinha o povo Ofaié teve muita luta, foi um estudo muito grande. Conseguimos provar através da língua materna, que é a única coisa que os mais antigos não perderam”, relembra a vice-cacique da tribo.

Devido ao tempo em que passaram distante da própria cultura, que está diretamente ligada com suas terras para os indígenas, o dialeto foi perdendo-se. Atualmente, somente seis pessoas sabem o idioma Ofaié. No entanto, há um projeto em curso na escola da aldeia, que ensina para as crianças a língua materna.

 

Arte

Outro ponto que foi revitalizado, segundo Ramona, foi o artesanato, que além de promover ganho financeiro, também fortalece a união entre as mulheres, que são maioria na aldeia.

A população feminina no local chama a atenção, elas formam uma rede de apoio muito grande, em que uma auxilia a outra no artesanato, compartilha saberes e cultiva o respeito a autoridade de dona Neuza e da vice-cacique Ramona. Assim, elas reúnem-se em uma pequena sala com vários tecidos e tintas para confeccionar toalhas de mesa, bolsas, e outros produtos artesanais.

Como já tinham essa organização e predominância pela venda de artesanato, as mulheres da aldeia foram escolhidas para um curso de empreendedorismo, com metodologia internacional, ofertado pelo Sebrae. Através dele, elas pretendem formar uma associação para oficializar a união que toma conta das Ofaié e as impulsiona a alcançar objetivos maiores.

Demarcação de terra

“A demarcação ainda não saiu, mas a gente já mora lá, trabalha, cria gado, tem roça, conseguimos a terra de volta. A dona Neuza mora lá e é o local onde ela gosta de ficar. Eu acho que é porque quando ela saiu de lá foi a última vez que ela viu a vó dela, quando a vó dela foi para lá [outras terras], ela faleceu”, comenta Ramona. 

Apesar do MPF reconhecer há 22 anos que a área em que os Ofaié vivem é uma terra indígena, a Funai, até o momento, ainda não oficializou a demarcação da área. A reportagem também perguntou ao órgão o motivo da demora, mas não obteve resposta até essa publicação.

Ao longo dos anos, vários processos tentaram impedir a destinação das terras aos povos originários. O último recurso contestando a decisão do MPF foi rejeitado pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), em 2009, quando foi reiterado que a propriedade é indígena.

Em 2014, o MPF recomendou, novamente, que a Funai finalizasse o procedimento demarcatório dos Ofaié. Após pedir duas vezes para que o prazo fosse estendido, a entidade afirmou que a demarcação ocorreria no biênio 2014-2015, mas nunca apresentou documento comprovando a afirmação.

A falta de demarcação, no entanto, provoca insegurança jurídica. No início deste ano, alguns Ofaié vieram a Brasília conversar com a diretora de Proteção Territorial (DPT) da Funai, Janete Carvalho, para pedir o andamento da ação. “Estamos retomando todos os processos para que eles sejam finalizados”, garantiu a autoridade.

Atualmente, de acordo com dados do Instituto Socioambiental deste ano, o Brasil possui cerca de 255 terras indígenas com o processo de demarcação iniciado e não finalizado.

No último ano, um entrave somou-se à demora histórica já registrada nas demarcações, o Marco Temporal Indígena. O texto que considera terras indígenas apenas aquelas já demarcadas na publicação da Constituição, em 1988, foi considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF), porém, o entendimento foi diferente no legislativo. Semanas depois, o Senado Federal aprovou a mesma legislação, que teve partes aprovadas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Desde então, os movimentos indígenas aguardam novo julgamento do STF para ação que protocolaram questionando a decisão do Congresso Nacional. Com isso, as demarcações podem ficar paradas por mais tempo ainda. No caso dos Ofaié, como só foram consideradas terras indígenas em 1992, eles não teriam direito ao território que atualmente ocupam.

*A jornalista viajou a convite do Sebrae.

 
 

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