O indígena se pronunciou no primeiro dia da 23ª edição do Fórum Permanente sobre Assuntos Indígenas das Nações Unidas, que tem como tema central a autodeterminação dos povos
CIMI
“O direito à autodeterminação é fundamental para a preservação da identidade, da cultura e do modo de vida dos povos indígenas”, discursou Ruberval Matos Reis, do povo Maraguá, no primeiro dia do Fórum Permanente sobre Assuntos Indígenas das Nações Unidas (UNPFII, na sigla em inglês), nesta segunda-feira (15) na sede da ONU em Nova York (EUA).
Conforme o pronunciamento de Ruberval Maraguá, cujo povo vive no Amazonas, na região do rio Abacaxis, a autodeterminação dos povos indígenas no Brasil vem sendo violada pela Lei 14.701, a chamada Lei do Marco Temporal, que restringe o reconhecimento dos direitos territoriais, sendo aprovada pelo Congresso Nacional após a tese central da medida ser declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
A fala é uma das dezenas de outras intervenções parte da 23ª edição do Fórum Permanente, que segue até o próximo dia 25. Ao contrário de outros espaços da ONU, voltados às denúncias de violações de direitos humanos, o UNPFII serve à construção de políticas globais relacionadas, por exemplo, à Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, que garante a autodeterminação dos povos indígenas em seu terceiro item.
Para os quase dez dias de encontro, “autodeterminação dos povos” é o tema escolhido para conduzir o diálogo entre lideranças indígenas de todo o mundo. Mesmo não sendo o espaço adequado para denúncias, a realidade objetiva dos povos, com casos exemplares em relevo, é a base para as propostas que terão como fim a construção das políticas globais.
A delegação indigenista brasileira (leia mais abaixo) terá audiência com embaixadas, participará de eventos paralelos com temas variados, relatorias e a formalização de denúncias de acordo com as exigências da ONU.
A Amazônia está associada às principais regiões do mundo em que a falta de autodeterminação permite todo tipo de catástrofe socioambiental
Recomendações
Em seu pronunciamento, Ruberval Maraguá fez três recomendações ao Fórum Permanente: fortalecer o direito à consulta dos povos indígenas e os protocolos de consulta, anular a Lei 14.701/2023 e que os estados da Amazônia reconheçam todos os territórios indígenas, caso do próprio território Maraguá.
Conforme discursou a liderança indígena, a autodeterminação dos povos indígenas “permite que as comunidades tenham controle sobre seus próprios destinos, tomando decisões que afetam suas vidas e territórios”. A Amazônia está associada às principais regiões e biomas do mundo em que a falta de autodeterminação permite todo tipo de catástrofe socioambiental.
“Nossos territórios são frequentemente invadidos por madeireiros e garimpeiros e projetos de desenvolvimento são desenhados sem nos consultar, desrespeitando completamente nossas tradições e modos de vida, causando-nos danos irreparáveis”, afirmou aos integrantes do Fórum Permanente e aos espectadores que acompanharam o discurso transmitido via internet.
“Fundamental que o direito à consulta seja respeitado”
Ocorre que as Nações Unidas e os países signatários, entre eles o Brasil, possuem instrumentos para oferecer aos povos indígenas metodologias de autodeterminação, caso da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Ruberval Maraguá disse ainda que é “fundamental que o direito à consulta seja respeitado e concretizado como instrumento de garantia da plena coercibilidade do direito à autodeterminação, assegurando a possibilidade de os povos indígenas definirem seu próprio futuro”. O instrumento, em contrapartida, não aparta os territórios das dinâmicas políticas e econômicas do país.
“A consulta livre, prévia e informada é essencial para promover o diálogo, o respeito mútuo e a tomada de decisões consensuais entre os povos indígenas e governos ou empresas que buscam intervir em seus territórios”, explicou o indígena do povo Maraguá.
Dezenas de lideranças indígenas e aborígenes se sucederam relatando as situações específicas de suas regiões mundo afora
Autodeterminação no combate às mudanças climáticas
A presidente do Fórum Permanente é Hindou Oumarou, do Chade, África, eleita para o cargo como uma das atividades previstas para esta edição. Hindou centrou a sua mensagem na abertura do fórum na importância da relação entre o ambiente e os medicamentos tradicionais na habilitação da autodeterminação dos territórios.
“Respeitar a ligação entre eles para defender o território significa lutar segundo após segundo juntos”, disse Hindou. Da mesma forma, destacou o papel crucial dos povos indígenas como restauradores dos solos na luta contra as alterações climáticas promovidas pelo atual modo de produção hegemônico.
Na sequência de sua fala, dezenas de lideranças indígenas e aborígenes se sucederam relatando as situações específicas de suas regiões mundo afora, os desafios para a autodeterminação e deixando recomendações para o Fórum Permanente. Neste momento, mais para o final do dia de trabalhos, já noite no horário de Brasília, Ruberval Maraguá se dirigiu aos seus pares na assembleia do encontro.
A situação é grave a ponto dos Karipuna comemorarem que hoje em dia conseguem ocupar um raio de apenas 3 km das comunidades
Povos Maraguá e Karipuna
Conforme Adriano Karipuna, “há muitos anos denunciamos o que se passa em nosso território e alguns outros anos que vamos para a ONU denunciar e reivindicar políticas”. Para esta edição do Fórum Permanente, o Karipuna entende que a persistência dos problemas enfrentados pelo povo revela as dificuldades quanto à autodeterminação.
“Para a política global ser implementada, precisamos enfrentar esses obstáculos”, diz. Na Terra Indígena Karipuna atuam grupos invasores heterogêneos, caso de madeireiros, grileiros, crime organizado e desmatamento, sendo que são constantes as ameaças contra as lideranças.
A situação é grave a ponto dos Karipuna comemorarem que hoje em dia conseguem ocupar um raio de apenas 3 km das comunidades, sem serem importunados pelos invasores. Desse modo, o caso Karipuna já esteve presente em outros espaços das Nações Unidas, tendo o contexto daquilo que passa o povo.
No caso do povo Maraguá, a delegação levou ao Fórum Permanente a necessidade do Estado brasileiro reconhecer o território tradicional, acossado pelo garimpo, poluição de rios e igarapés com mercúrio, turismo ilegal, que já gerou um conflito com invasores, em 2020, sendo revidado pela Polícia Militar do Amazonas gerando o episódio conhecido como Massacre do Abacaxis.
Valexon Lins Oliveira Ambrósio Macuxi levou para Nova York a situação vivida por seu povo, em Roraima, que vive dividido por demarcações feitas em ilhas, dificultando a autodeterminação dos indígenas sobre seu território, infiltrado por propriedades privadas, estradas vicinais e todo tipo de tráfego invasor que acaba corroendo os recursos naturais de uso do povo Macuxi.
A delegação representa toda a região Pan-Amazônica
Delegação brasileira
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) está presente nesta edição do Fórum Permanente ao lado das lideranças indígenas e da Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM), além do Programa Universidade Amazônica (PUAM).
A delegação representa toda a região Pan-Amazônica e além de Ruberval Maraguá, conta também com outra liderança indígena, Valexon Lins Oliveira Ambrósio, do povo Macuxi. Adriano Karipuna, de Rondônia, participou de toda a preparação da delegação, com experiência pregressa representando os povos indígenas nas Nações Unidas, mas um problema envolvendo o visto de entrada nos Estados Unidos o impediu de viajar.
Entre os aliados e aliadas dos povos indígenas, estão Laura Vicuña e Chantelle da Silva Teixeira, ambas do Cimi, Simone Bauce Comboni, Leonardo Narváez Loarte, da Repam Equador, Mauricio López, da Puam, padre Pedro Hughes, da congregação Religiosos Columbanos e coordenador do núcleo Direitos Humanos e Advocacia da Repam.
Presentes no Fórum Permanente estão ainda Lily Calderón Ramos, técnica do referido núcleo, e Sonia Olea Ferreras, responsável pela Advocacia Internacional da Repam e da Cáritas Espanhola.