"Promulgada em pleno recesso legislativo, Lei 14.701 rompeu com pacto constitucional. É urgente que os povos indígenas retomem o ritmo das articulações e mobilizações em defesa de seus direitos".
A nota foi publicada por Conselho Indigenista Missionário – Cimi, 09-02-2024.
Eis a nota.
Em março de 1974, cinquenta anos atrás, um grupo de bispos, padres e leigos, reunidos desde 1972 no recém-criado Conselho Indigenista Missionário – Cimi, publicou o documento “Y-Juca Pirama: o índio, aquele que deve morrer”. Naquele documento, o Cimi denunciava o decreto de extermínio que o Estado brasileiro e as elites econômicas da época impuseram, autoritariamente, sobre os povos indígenas, com a intensificação do esbulho e da destruição de seus territórios e com a instalação de um ambiente de violência contra a vida de suas comunidades.
Hoje, cinco décadas depois, o documento “Y-Juca Pirama” assume extrema atualidade mais uma vez. Ao longo deste período, os indígenas conquistaram direitos, sobreviveram à tutela e à Ditadura e mostraram uma força política única. Entretanto, enfrentam um novo decreto de extermínio: a Lei 14.701/2023, promulgada no dia 28 de dezembro pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD/MG).
Apesar de sua flagrante inconstitucionalidade, a medida foi promulgada depois do Congresso derrubar a maioria dos vetos do presidente Lula às partes mais temerárias da lei, também em dezembro.
Com este ato, a Lei 14.701/2023 passa a vigorar em sua integralidade, causando insegurança física e jurídica para todos os povos indígenas do Brasil e instaurando uma situação de conflito constitucional: a ação do Congresso inseriu no ordenamento legal brasileiro uma norma legislativa que é inconstitucional em seu conteúdo e em sua forma.
A aprovação do projeto, a derrubada dos vetos presidenciais e a promulgação da Lei 14.701 foram o mais grave ataque concretizado pelo Poder Legislativo contra os direitos dos povos originários do Brasil desde a Constituição Federal de 1988.
Ainda mais grave é o fato de que a aprovação do projeto ocorreu poucos meses depois da conclusão, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), do julgamento sobre os direitos constitucionais dos povos indígenas, no qual foi declarada inconstitucional, por ampla maioria, a tese do chamado “marco temporal”.
Apesar de incluir novos elementos em seu julgado, a Suprema Corte foi clara em reafirmar o caráter originário e fundamental do direito dos povos indígenas à demarcação de suas terras – fazendo valer assim a vontade dos e das constituintes que promulgaram a Constituição da República em 1988.
Naquele ano, decisivo para a redemocratização de nosso país, a sociedade brasileira reconheceu em seu pacto constitucional o direito destes povos às suas terras, aos seus modos de vida e à diversidade.
Por tudo isso, os atos do Congresso Nacional não apenas afrontam a Constituição e os demais poderes da República, mas resultam numa situação urgente e insustentável, com potencial de gerar consequências graves e irreversíveis para todos os povos indígenas.
Isso porque, entre diversos outros dispositivos que atacam os direitos destes povos, a Lei 14.701 impõe a aplicação do marco temporal e do “renitente esbulho” como critérios para as demarcações de terras indígenas, além de incluir uma série de novas exigências relativas ao procedimento demarcatório.
Consequentemente, o Decreto 1775/1996, que regula o procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas, também foi alterado. O Congresso Nacional ignorou o fato de que a validade e a constitucionalidade deste decreto, quando questionadas, foram confirmadas pela própria Suprema Corte.
Além disso, essa lei define como nulos todos os procedimentos administrativos de demarcação de terras indígenas que não atendam ou que não venham a atender os novos critérios estabelecidos por ela.
As consequências são inúmeras, todas elas de extrema gravidade. Além de inviabilizar a continuidade das demarcações de terras indígenas e fragilizar a atuação dos órgãos do poder Executivo – como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) – que têm entre suas atribuições a proteção, a identificação e a delimitação destes territórios, a Lei 14.701 pode desencadear uma série de decisões judiciais que resultem em despejos de comunidades já estabelecidas e na anulação de demarcações já consolidadas.
O resultado previsível desta cadeia de ações é a manutenção de diversas comunidades em situação de vulnerabilidade extrema e o acirramento dos conflitos no campo, com risco iminente de desalojamentos, ataques contra comunidades indígenas e, inclusive, mortes, como a da liderança Maria Fátima Muniz de Andrade Pataxó Hã-Hã-Hãe, conhecida como Nega, assassinada no sul da Bahia neste mês de janeiro, ou como os recentes ataques aos Avá Guarani do oeste do Paraná.
Desde o início de sua tramitação – primeiro como Projeto de Lei (PL) 490/2007, na Câmara, e depois como PL 2903/2023, já no Senado –, esta lei tem uma intenção evidente: impedir a demarcação de terras indígenas e abrir as terras já demarcadas à exploração de grandes grupos econômicos, especialmente os ligados ao agronegócio e à mineração.
Foram os representantes legislativos destes grupos que se mobilizaram nos últimos anos para garantir a aprovação da proposta, à revelia de qualquer consulta ou diálogo com os povos indígenas.
O fato de que a lei foi promulgada em meio ao recesso legislativo e judiciário denota a agressividade e explicita a má-fé destes setores legislativos contrários aos direitos dos povos originários. Estes grupos hegemonizam o Congresso Nacional, que se deixou capturar pelo ódio e pelos interesses econômicos que cobiçam os territórios indígenas.
Ao longo de toda a tramitação do então projeto, a Câmara e o Senado Federal fizeram um uso deturpado do princípio da presunção da constitucionalidade das normas e atos do poder público, segundo o qual assume-se que os Poderes da República atuam sempre com respeito à Constituição. A serviço de interesses econômicos e políticos contrários aos direitos indígenas, as Comissões de Constituição e Justiça de ambas as Casas Legislativas atestaram a falaciosa constitucionalidade de uma lei flagrantemente inconstitucional.
Foi por essas razões que, imediatamente após sua promulgação, a Lei 14.701 foi questionada junto à Suprema Corte por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em conjunto com o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e a Rede Sustentabilidade.
Enquanto tal ação não é julgada, no entanto, a Lei promulgada pelo Congresso Nacional segue em vigor, subvertendo o artigo 231 da Constituição Federal e colocando o ordenamento jurídico e legal brasileiro de ponta-cabeça: no dia 28 de dezembro de 2023, uma lei menor, sem passar pelo rito de uma emenda constitucional e ignorando cláusulas pétreas, alterou e subjugou a Carta Magna de nosso país.
É urgente que os povos indígenas retomem o ritmo das articulações e mobilizações, com incidências orgânicas e permanentes em defesa de seus direitos constitucionais, elementos fundamentais na vitória contra o marco temporal e frente a tantos outros ataques às suas vidas e territórios.
Da mesma forma, é urgente que a sociedade brasileira se mobilize em defesa dos direitos dos povos originários – e, consequentemente, da Constituição e da democracia de nosso país.
Por fim, é urgente e imprescindível que a Suprema Corte, em seu papel de guardiã da Constituição Federal, reafirme seu recente julgado e declare a inconstitucionalidade da Lei 14.701. Não há espaço, em nossa sociedade, para a convivência com decretos de extermínio. E não há espaço, na democracia, para o desrespeito ostensivo à Constituição.
O Cimi, que testemunhou a força política e espiritual dos povos indígenas ao longo de décadas de luta e resistência – e contribuiu com a defesa e consolidação destes direitos constitucionais fundamentais – reafirma sua determinação e esperança de que a ação organizada e constante dos povos indígenas e de seus aliados, dos movimentos populares e de amplos setores da sociedade brasileira e do campo jurídico, junto com a necessária determinação e lealdade das instituições competentes, conseguirá reverter este difícil momento para a convivência democrática no país e, particularmente, para a vida e o futuro dos povos indígenas.
Diga ao povo que avance!
Avançaremos.
Brasília (DF), 15 de fevereiro de 2024
Conselho Indigenista Missionário – Cimi
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