Recentemente, foi sancionada a Lei n° 14.994, de 9 de outubro de 2024, que trouxe significativa alteração na forma como o feminicídio é tipificado pelo ordenamento brasileiro, no intuito de prevenir e coibir a violência praticada contra a mulher.
Amanda Bessoni Boudoux Salgado
16 de outubro de 2024, Consultor Jurídico
Apesar de promover modificações em diversos diplomas legais (Código Penal, Lei das Contravenções Penais, Lei de Execução Penal, Lei dos Crimes Hediondos, Lei Maria da Penha e Código de Processo Penal), a iniciativa apresenta, em verdade, uma faceta única: a de aumentar o rigor punitivo nos crimes de feminicídio e outras condutas praticadas “contra a mulher por razões da condição do sexo feminino”.
No que se refere à figura típica do feminicídio, introduzida inicialmente no Código Penal pela Lei n° 13.104/2015, quando se tornou qualificadora do homicídio, agora o crime passa a ser autônomo, previsto no artigo 121-A do diploma penal.
Mudanças legislativas, mesmo em normas relativamente recentes como as do feminicídio, podem ser muito bem-vindas. Como antes já tivemos a oportunidade de afirmar, com substrato nos estudos de racionalidade legislativa de Atienza e Díez Ripollés[1], “após a entrada em vigor da norma, persistem as análises de racionalidade, pois os efeitos da decisão devem ser avaliados conforme seu encaixe social, sua adequação ao sistema jurídico existente e suas habilidades comunicativas”.[2] É dizer, na fase pós-legislativa, estudos de impacto das normas elaboradas e a constatação de dificuldades na sua implementação podem perfeitamente levar a novos debates que originarão propostas para o preenchimento de lacunas ou superação de impasses.
A iniciativa de dotar o feminicídio de autonomia, aliás, é condizente com a análise de delitos sui generis, derivados do homicídio, mas que possuem em seu âmago características particulares que devem ser normativamente consideradas, a exemplo do que ocorre com o infanticídio. A autonomia conferida ao crime, ainda, afasta antigas controvérsias relativas à compatibilidade do feminicídio com outras previsões contidas na tipificação do homicídio, a exemplo da sua conjugação com qualificadoras de motivo torpe e fútil.
No entanto, o conteúdo da Lei n° 14.994/2024 não parece revelar uma efetiva preocupação com a especialização de argumentos e aprofundamento do debate sobre a violência de gênero e a sua manifestação fatal, representada pelo feminicídio. Perdeu-se a oportunidade de aperfeiçoar a norma, por exemplo, no seu próprio aspecto conceitual, ou seja, na proposta de um modelo de tipificação mais claro e preciso, que não fosse tão dependente de fórmulas subjetivas e internas como a referência ao “menosprezo ou discriminação à condição de mulher”.
Outra grande oportunidade perdida foi a de adequar a definição legal ao desenvolvimento sociológico da categoria do feminicídio pela substituição da palavra “sexo” por “gênero”, haja vista que o fundamento material da figura está muito mais relacionado a esta última categoria.
De modo geral, a manutenção do apego do feminicídio à repetitiva cláusula das “razões da condição do sexo feminino”, sem uma especificação mais adequada desse conteúdo, é mais um ponto a ser considerado. A expressão se inspira, é claro, no desenvolvimento do conceito sociológico de feminicídio, atribuído a Diana Russell, responsável pela introdução do conceito no debate político ao descrever o assassinato de mulheres simplesmente “por serem mulheres” [3]. O transporte da categoria ao âmbito penal, contudo, não pode se dar sem alguma restrição conceitual, haja vista a incidência dos princípios da legalidade e da taxatividade penal.
Da forma como previsto no novo artigo 121-A do Código Penal, o feminicídio mantém a definição da antiga qualificadora, implicando, no entanto, expressivo aumento de pena em relação à anterior previsão legal: da reprimenda de 12 a 30 anos própria do homicídio qualificado, tem-se agora a pena de 20 a 40 anos exclusivamente para o feminicídio. O preceito secundário, portanto, atinge patamares elevadíssimos, haja vista que 40 anos é o limite de tempo de cumprimento de penas privativas de liberdade, nos termos do artigo 75 do Código Penal. Trata-se da mais alta pena em abstrato cominada pelo diploma penal.
Nas específicas causas de aumento de pena, houve ligeira modificação, com a inclusão do incremento de 1/3 até metade se o crime for praticado nas circunstâncias previstas nos incisos III, IV e VIII do § 2º do artigo 121, ou seja, “com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum”, “à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido” e “com emprego de arma de fogo de uso restrito ou proibido”, todas qualificadoras de natureza objetiva. Estas e outras causas de aumento previstas no §2º do novo artigo 121-A podem elevar a pena, assim, ao impressionante número de 60 anos de reclusão.
As demais alterações legais promovidas têm em comum a restrição de direitos para aqueles condenados por crimes cometidos contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, a exemplo da perda de cargo, função pública ou mandato eletivo e a vedação à nomeação, designação ou diplomação em qualquer cargo, função pública ou mandato eletivo entre o trânsito em julgado da condenação até o efetivo cumprimento da pena.
Houve também aumento das penas de lesão corporal com “violência doméstica” e cometida contra a mulher nos mesmos casos do feminicídio, ou seja, “por razões da condição do sexo feminino”.
Outro ponto de destaque da nova lei são as alterações promovidas no âmbito da execução penal. Inseriu-se previsão segundo a qual o condenado por crime contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, ao usufruir de qualquer benefício em que ocorra saída do estabelecimento penal, deverá ser fiscalizado por meio de monitoração eletrônica. A determinação é de difícil aplicação prática em todos os estados do Brasil, haja vista a conhecida situação de indisponibilidade de dispositivos de monitoração eletrônica para todos que recebem a determinação de vigilância, sendo que a prioridade costuma ser a utilização da medida como alternativa à prisão preventiva.
É certo que a monitoração eletrônica pode ser um mecanismo eficaz de prevenção à reiteração delitiva, principalmente em casos de violência contra a mulher, para fiscalização do cumprimento de medidas protetivas de urgência. Contudo, o que se extrai da Lei n° 14.994/2024 é ainda o predomínio discrepante do paradigma reativo, atrelado ao recrudescimento de penas, que pouco adiciona ao debate sobre o que funciona em termos de prevenção da violência de gênero. Sintomático, aliás, que os números de feminicídios e de outras formas de violência contra as mulheres tenham apresentado crescimento nos últimos anos [4].
Tampouco se avançou na discussão dogmática relativa a como melhor descrever, em sentido penal, a conduta de feminicídio a partir de modelos de tipificação mais claros e precisos, a exemplo de países que, na tipificação destes homicídios, optaram por elencar todas as circunstâncias em que se considera presente um elemento discriminatório de gênero, definidor do feminicídio (como México, Chile, Bolívia, El Salvador, dentre outros) [5].
Cabe aos penalistas, aparentemente, continuar repetindo o óbvio: que a insistência na exasperação do rigor punitivo não é sinônimo de eficácia no combate à violência contra as mulheres.
[1] Cf. ATIENZA, Manuel. Contribución a una teoría de la legislación. Madrid: Civitas, 1997 e DÍEZ RIPOLLÉS, José Luis. A racionalidade das leis penais: teoria e prática. Trad. Luiz Regis Prado. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.
[2] SALGADO, Amanda Bessoni Boudoux. Normas penais gênero-específicas e técnica legislativa: perspectivas de racionalidade. In: Alejandro Luis de Pablo Serrano; Mª Flora Martín Moral; Patricia Tapia Ballesteros. (Org.). Retos pendientes en el camino hacia la igualdad de las mujeres en el siglo XXI: debates en el ámbito del derecho, la criminología, la sociología y los medios de comunicación. 1. ed. Madrid: Reus Editorial, 2021, p. 35.
[3] Cf. RADFORD, Jill; RUSSELL, Diana E. H. Femicide: the politics of woman killing. New York: Twayne Publishers, 1992.
[4] Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, cresceram todas as modalidades de violência contra mulheres em 2023, com o número de 1.467 feminicídios. Ameaças aumentaram em 16,5% em relação ao ano anterior, assim como os registros de stalking (34,5%), agressões decorrentes de violência doméstica (9,8%), tentativas de feminicídio (7,1%), dentre outras condutas. Dados disponíveis em: https://forumseguranca.org.br/publicacoes/anuario-brasileiro-de-seguranca-publica/. Acesso em 14 out. 2024.
[5] Com o desenvolvimento de completo panorama da América Latina: SALGADO, Amanda Bessoni Boudoux. Feminicídio no direito penal. São Paulo: Quartier Latin, 2023. Veja-se, por exemplo, a descrição dada pelo art. 325 do Código Penal Federal do México, com a adoção de um modelo amplamente circunstancial: “Comete el delito de feminicidio quien prive de la vida a una mujer por una razón de género. Se considera que existe una razón de género cuando concurra cualquiera de las siguientes circunstancias: I. La víctima presente signos de violencia sexual de cualquier tipo; II. A la víctima se le hayan infligido lesiones o mutilaciones infamantes o degradantes, previas o posteriores a la privación de la vida o actos de necrofilia; III. Existan antecedentes o datos de cualquier tipo de violencia en el ámbito familiar, laboral, comunitario, político o escolar, del sujeto activo en contra de la víctima; IV. Haya existido entre el sujeto activo y la víctima parentesco por consanguinidad o afinidad o una relación sentimental, afectiva, laboral, docente, de confianza o alguna relación de hecho entre las partes; V. Existan datos que establezcan que hubo amenazas directas o indirectas relacionadas con el hecho delictuoso, acoso o lesiones del sujeto activo en contra de la víctima; VI. La víctima haya sido incomunicada, cualquiera que sea el tiempo previo a la privación de la vida; VII. El cuerpo de la víctima sea expuesto, arrojado, depositado o exhibido en un lugar público, o VIII. El sujeto activo haya obligado a la víctima a realizar una actividad o trabajo o haya ejercido sobre ella cualquier forma de explotación. […].”