Juliana Fontana Moyses, advogada e doutora em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da USP, diz que os números de estupros não notificados são maiores, pois fatores como discriminação, machismo e racismo podem afastar as vítimas da denúncia
No Brasil, o número de casos de estupro é de aproximadamente 822 mil por ano, o que equivale a dois estupros por minuto, segundo uma pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) no ano passado. Mas, de acordo com o mesmo estudo, apenas 8,5% desses casos chegam ao conhecimento da polícia e 4,2% são identificados pelo sistema de saúde.
Ainda, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), de janeiro a junho de 2023, houve um aumento de 15% nos casos de estupro no País, em relação ao mesmo período de 2022. No Estado de São Paulo foram registrados no ano passado mais de 13 mil casos de estupro, sendo mais de 3 mil de mulheres adultas e mais de 10 mil estupros de vulneráveis, menores de 14 anos, de acordo com a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP). Em Ribeirão Preto, o Relatório de Violência da Secretaria da Saúde do município também mostrou um aumento no número de casos de violência sexual, sendo 168 casos em 2021, 199 casos em 2022 e 209 casos em 2023; na soma desses três anos 97 foram do sexo masculino e 479 do sexo feminino.
A advogada e doutora em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito (FD) da USP e membro da Clínica de Direitos Humanos das Mulheres (CDHM) da USP, Juliana Fontana Moyses, diz que o estupro é um crime marcado pela subnotificação, ou seja, é comunicado menos do que o esperado, o que significa que esses números devem ser muito maiores. “O estupro acontece muito mais vezes do que é notificado e do que chega para os sistemas de justiça ou de saúde, por uma série de questões, como na dificuldade de denunciar, no caso de violência doméstica, por exemplo.”
Segundo pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde, o maior número de casos de estupro acontece entre os jovens na faixa etária dos 13 anos. Juliana afirma que esse número é maior entre os jovens, porque adultos não comunicam por conta do sentimento de revitimização, ou seja, o sofrimento que passa a ser continuado e repetitivo, após a denúncia. “Essa cultura de culpabilização da vítima pode acabar afastando as pessoas da denúncia e o estupro é um dos piores tipos de violência, inclusive, é usado como arma de guerra nos conflitos pelo mundo afora. Assim, a vítima não quer passar por uma segunda violência ao pedir ajuda e denunciar, correndo o risco de ser maltratada, julgada e exposta, de uma maneira ainda mais traumática”, avalia Juliana.
Além disso, diz a advogada, outro motivo para o aumento de casos de estupro de jovens é a maior vulnerabilidade de crianças e adolescentes. “As crianças e adolescentes não conseguem se defender ou não reconhecem que estão sofrendo violência. Muitas vezes, a violência sexual acontece no contexto da violência doméstica, acompanhada de violência psicológica e outros tipos de violência física. Todas essas questões tornam as crianças mais vulneráveis a esse tipo de violência”, aponta.
Dificuldades para denunciar
Segundo o Ipea, apenas 8,5% dos casos de estupro chegam ao conhecimento da polícia e 4,2% são identificados pelo sistema de saúde. Para Juliana, fatores como o racismo e o machismo, que as vítimas sofrem ao denunciar, tanto em delegacias quanto em sistemas de saúde, afastam homens e mulheres da denúncia. “As mulheres negras são vitimadas de maneira mais frequente do que as mulheres brancas, então, temos o componente do racismo na ocorrência dessa violência. Tudo isso gera um atendimento muito mais precário por motivo de gênero e raça. Além disso, quando um homem vai denunciar uma violência sofrida, ele é desqualificado com base numa ideologia machista patriarcal”, aponta Juliana.
Já o Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta que, no caso de estupro contra crianças e adolescentes de até 13 anos de idade, 82,7% dos estupradores são conhecidos da vítima, “o que também causa dificuldade para a denúncia”, segundo Juliana. “Essas crianças estão sendo estupradas por pessoas que elas conhecem, que elas têm relação, como o tio, pai, padrasto, um amigo da família. Portanto, muitas vezes, estão em uma relação de violência doméstica, situação mais difícil de ser rompida e levar à denúncia.”
Ainda sobre os dados do fórum, Juliana diz que, em 2022, as mulheres foram 88,7% das vítimas de estupro, e os homens 11,3%. “Essa violência direcionada principalmente para as mulheres é por conta da objetificação dos corpos femininos. Por exemplo, a ideia de que o sexo é uma obrigação das mulheres que estão em relacionamentos, que elas têm a obrigação de ter relação sexual com o seu parceiro, mesmo quando elas não querem, leva ao que a gente chama de estupro marital, que ainda é uma ideia muito recorrente.”
Outro fator apontado por Juliana, em relação à violência direcionada as mulheres, é a justificativa no comportamento da vítima, como, por exemplo, perguntar o que ela estava vestindo, bebendo, o que ela fez ou deixou de fazer. Para a advogada é inaceitável focar no comportamento da vítima e não na ação do estuprador e continuar com a cultura de desconfiança da palavra da vítima, como se as denúncias fossem falsas.
Juliana também lembra que muitas mulheres sofrem o estupro como forma de controle e correção, o chamado estupro corretivo, sofrido, principalmente, por mulheres lésbicas, bissexuais ou pansexuais, que se relacionam sexualmente e afetivamente com outras mulheres.
Políticas públicas
Para a redução desses números, Juliana aponta a necessidade de políticas públicas de educação sexual, para que crianças e adolescentes tenham consciência do próprio corpo e que tenham condições de abrir um diálogo sobre o tema. Também cita a capacitação de profissionais da educação para identificarem a violência contra crianças e adolescentes e, assim, oferecerem acolhimento dentro das escolas, e os da saúde para um atendimento mais humanizado e sem revitimização.
Além disso, cita a necessidade de enfrentar os estereótipos e a discriminação contra as mulheres, como previsto na Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006, criada para proteger as mulheres contra a violência doméstica e familiar). A revogação da Lei de Alienação Parental (Lei nº12.318/2010, busca coibir as situações em que um dos genitores procura afastar o outro da convivência com os filhos), também é vista como importante por Juliana, pois muitas vezes é utilizada como forma de proteger abusadores. “Essas são políticas de caráter estrutural e muito importantes para enfrentar essa situação.”
Juliana diz que o processo de denúncia nem sempre é fácil, por isso, é necessário que a vítima tenha uma rede de apoio ou até mesmo entrar em contato com um advogado. “Muitas cidades têm uma defensoria pública, um advogado voluntário. Existe a rede chamada Tamo Juntas, rede interdisciplinar, que atua com advogadas e psicólogas voluntárias. Nesse caso, a vítima pode pedir ajuda de um profissional para a acompanhar a denúncia e todo o processo de encaminhamento para os serviços necessários.”
Os canais de denúncia de violência são gratuitos, anônimos e funcionam 24 horas por dia: Disque Direitos Humanos – 100; Central de Atendimento à Mulher – 180. “A pessoa pode denunciar a violência sofrida ou a violência que outra pessoa está sofrendo, sem precisar se identificar.” No caso de crianças e adolescentes, a profissional alerta que é bom fazer o contato com o Conselho Tutelar. “Para o estupro cometido dentro de uma situação de violência doméstica é possível fazer a denúncia e pedir uma medida protetiva.”
*Estagiária sob supervisão de Ferraz Junior e Rose Talamone