De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o número de vítimas de feminicídio no Brasil teve um aumento de 6,1% em 2022
Por Maria Thereza de Assis Moura* — Todo ano, a celebração do Dia Internacional da Mulher nos convida a refletir sobre o quanto ainda precisa ser feito no Brasil para alcançarmos uma situação, ao menos, razoável na distribuição de oportunidades de realização pessoal entre homens e mulheres. Nisso se inclui a oportunidade de viver sem medo nem opressão, sem ameaças nem riscos à integridade física, à dignidade sexual ou à própria existência pelo simples fato de ser mulher.
Os dados transbordam das pesquisas sobre o tema, revelando uma sociedade ainda profundamente marcada pelo sexismo. Nada menos do que 30% das brasileiras com 16 anos ou mais já sofreram alguma forma de violência doméstica ou familiar praticada por homens, segundo levantamento realizado em 2023 pelo DataSenado. E não estão computados os casos de agressão e abuso sexual contra crianças e adolescentes menores de 16, que são numerosos e frequentemente ocorrem dentro do próprio lar.
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado no ano passado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de vítimas de feminicídio no Brasil teve um aumento de 6,1% em 2022, em comparação com o ano anterior, e chegou a 1.437, sendo que 70% delas foram mortas no interior de suas casas.
Nesse contexto, assume relevância especial a decisão dos tribunais brasileiros de incluir o julgamento dos casos de violência contra a mulher entre as prioridades do Poder Judiciário - compromisso que vem sendo renovado a cada ano desde 2019. Trata-se de um pacto contra a impunidade, uma sinalização para a sociedade de que a agressão motivada por questões de gênero não ficará sem a adequada resposta penal do Estado.
Assim, nesses últimos anos, as Metas Nacionais do Poder Judiciário têm contemplado um esforço concentrado para acelerar a solução dos processos sobre feminicídio e violência doméstica. No mais recente Encontro Nacional do Poder Judiciário, que definiu as prioridades para 2024, o Superior Tribunal de Justiça, por iniciativa própria, aderiu à Meta 8, até então adotada somente na Justiça estadual, e se comprometeu a zerar o estoque de processos dessa natureza distribuídos até 2022. Restam, no momento, apenas 251 processos pendentes.
Mesmo antes do engajamento institucional do Tribunal da Cidadania na Meta 8, o julgamento de casos de feminicídio e violência doméstica na corte já vinha crescendo muito: de 2.739 em 2020, passamos para 5.599 no ano passado.
Estatísticas à parte, o empenho do STJ para alinhar sua missão de intérprete final das leis federais à luta contra a violência de gênero também se expressa em uma dimensão qualitativa: nesses julgamentos, o tribunal constrói uma jurisprudência que dá efetividade aos dispositivos legais voltados para a prevenção da violência e a devida responsabilização dos agressores.
São inúmeros os exemplos que poderiam ser mencionados neste artigo, mas me limito a um, relativo a fato bastante representativo da cultura de dominação subjacente à violência doméstica e familiar: a jurisprudência do STJ se consolidou no sentido de não apenas rechaçar a utilização do ciúme do homem como justificador de seu comportamento agressivo contra a mulher, mas de considerar tal motivo uma razão suficiente para o aumento da pena, à medida em que expressa o sentimento masculino de posse sobre a esposa, companheira ou namorada.
Ao não mais normalizar, como no passado, essa estrutura social opressiva — tão bem representada pelo surrado argumento da "legítima defesa da honra", em boa hora vetado nos debates do júri pela nossa Suprema Corte -, o Poder Judiciário cumpre a obrigação que lhe impõem a Constituição Federal, as leis do país e os tratados internacionais de direitos humanos, sem jamais perder de vista sua responsabilidade pelo exame cuidadoso das peculiaridades de cada situação concreta.
*Presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ)