O fato da obra de Boaventura ter sido reverenciada entre intelectuais de esquerda não desestimula novos relatos de assédio. "Não se pode negar a defesa das mulheres que sofreram violência porque o agressor produziu um pensamento importante para as pautas emancipatórias"
A advogada catarinense Daniela Felix representa um coletivo internacional de pesquisadoras e ex-pesquisadoras do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra que acusam o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, 82, de assédio moral e sexual. Ela afirma que está preparando um dossiê com "farto material probatório" das denúncias contra o ex-diretor emérito do CES — ele foi afastado do cargo no dia 14. Boaventura nega as acusações, afirma que são fruto de "vingança" e se diz vítima de "cancelamento".
Em carta aberta ao CES divulgada no dia 17, Felix afirmou haver um "padrão de discriminação de gênero" nas supostas condutas inadequadas de Boaventura — todas as denunciantes são mulheres. O coletivo criou um e-mail (
Para Daniela Felix, o fato da obra de Boaventura ter sido reverenciada entre intelectuais de esquerda não desestimula novos relatos de assédio. "Não se pode negar a defesa das mulheres que sofreram violência porque o agressor produziu um pensamento importante para as pautas emancipatórias", disse Felix, em entrevista por escrito a Universa, cujos principais trechos estão a seguir:
Universa: Pelos relatos conhecidos até agora, pode-se identificar um padrão na conduta de Boaventura apontada pelas denunciantes?
Daniela Felix: Com o dossiê que estamos montando, vai ser possível indicar um padrão das práticas abusivas. Os relatos dão fortes indicativos disso.
Num contexto em que o assédio sexual faz parte das técnicas de interação do poder do professor em relação à estudante ou pesquisadora jovem, a relação profissional tem por fundamento a depreciação do valor profissional das mulheres -- que são vistas como objeto de desejo sexual.
Isso passa pela apropriação do trabalho intelectual e a naturalização do dever das pesquisadoras em assegurar a carreira do professor, seja escrevendo textos, seja se dedicando sem limites para realizar o que fosse necessário para o sucesso dele.
Não se trata de pesquisadoras remuneradas para executar essas funções, mas de uma relação abusiva que consome a energia e o talento, sobretudo das mulheres, em proveito do professor.
Dentro desse padrão, as mulheres são desproporcionalmente impactadas com a sobrecarga a frequência com que seu trabalho é desvalorizado. Naturaliza-se que tarefas domésticas possam ser entregues às pesquisadoras, como pedir que uma lhe sirva café no meio de uma atividade acadêmica ou assegure que ele tenha bananas e água durante viagens.
O CES informou que, até que os casos viessem à tona, nunca havia recebido denúncias de assédio sexual. Suas clientes, no entanto, dizem que a Universidade de Coimbra tinha "amplo conhecimento" das denúncias. Como isso é possível?
É preciso rebater a retórica que indica a falta de denúncias como um indicador da inexistência de um problema. Se uma instituição acadêmica informa que seus órgãos de proteção não têm denúncias dessa natureza, é porque estão falhando na sua missão e precisam ser revistos.
Os casos apresentados até o momento reportam a situações ocorridas entre 2000 e 2019. As práticas abusivas eram de amplo conhecimento porque estavam sempre sendo comentadas por pesquisadores da instituição e eram naturalizadas, com a ideia de que era assim mesmo, a resposta padrão era aprender a não ligar, relevar e aguentar.
O movimento Me too finalmente chegou à academia?
Esperamos que sim. Mas nosso objetivo não termina com a denúncia do assédio sexual. Somos movidas pela necessidade de uma mudança efetiva nas práticas laborais e queremos fazer nossa parte. Isso implica coragem. Precisamos assumir que aceitamos, no passado, práticas que hoje sabemos serem intoleráveis. Temos que nomear essas práticas: abuso, assédio, violência. Temos que dizer que essas práticas são erradas e não serão mais toleradas.
A obra de Boaventura de Sousa Santos é referência nos estudos pós-coloniais. A partir de seus livros, tornou-se um ícone da esquerda. Há quem aponte instrumentalização das denúncias pela direita. O que pensa sobre isso?
Não se pode negar e abafar o movimento legítimo de defesa dos direitos de mulheres que têm sofrido violências porque o agressor produziu um pensamento importante para as pautas emancipatórias. A discussão que importa é da dignidade e igualdade das mulheres; não utilizar essa discussão para instrumentalizar uma guerra de posições entre direita e esquerda.
É preciso lembrar que as denunciantes, que em algum momento buscaram o CES como centro de formação, são pessoas que se identificam com a defesa de bandeiras emancipatórias. Vê-se que os que se opõem a essas pautas tendem a instrumentalizar episódios como esse para fazer uma crítica perversa e deslocada à esquerda e seus fundamentos.
No outro extremo, as mulheres passam então a serem atacadas por estarem fragmentando as pautas emancipatórias. É preciso que se entenda que não é possível caminharmos em direção à emancipação se as mulheres estão sofrendo silenciosa e sistematicamente e pagando as contas dos projetos ditos "emancipatórios".
Se as mulheres não são tratadas com dignidade, não é possível falar em emancipação. A coragem das mulheres em fazer as denúncias, com todo o custo que isso implica para as suas vidas, reputação e carreiras, é um movimento consistente com o aprofundamento das pautas emancipatórias e deve ser reforçado por qualquer pessoa que esteja comprometida com um mínimo de justiça na nossa sociedade.
O coletivo está elaborando um dossiê em que promete apresentar provas de condutas inadequadas do professor. Que tipos de relatos pode-se esperar ler ali?
Estamos reunindo testemunhos e provas de extrativismo intelectual (apropriação do trabalho intelectual de assistentes de investigação, sem o devido reconhecimento de autoria e remuneração); assédio sexual, com retaliação e assédio moral em decorrência da negativa ao avanço sexual; e reprodução e manutenção de ambiente tóxico nas equipes de trabalho por parte de Boaventura de Sousa Santos.
Além disso, vamos reunir evidências de um padrão de discriminação de gênero, que desgasta emocionalmente e funciona como bloqueio continuado ao avanço na carreira e ao crescimento profissional de mulheres investigadoras.
Há quem aponte o chamado "endeusamento" de intelectuais como vetor para o cometimento de crimes - amparados por ampla popularidade, eles se sentiriam à vontade para agir de maneira abusiva. Na sua opinião, faz sentido?
Os vários tipos de assédio dentro da academia se relacionam à precariedade do emprego científico; à maior vulnerabilidade das mulheres, em especial de algumas, como é o caso das estrangeiras, dependentes de bolsa, sem rede de apoios e contatos no país de acolhimento; e à naturalização das relações hierárquicas e dos papéis de homens e mulheres na produção do conhecimento científico.
As relações hierárquicas têm peso forte na validação acadêmica. Apesar das mudanças ocorridas com a entrada das mulheres em cargos nas universidades, o poder da validação do trabalho científico de estudantes ainda está concentrado nas mãos dos homens. Num contexto de vulnerabilidade e precariedade, isso pode fazer das mulheres com expectativa de construir uma carreira na academia verdadeiras reféns destes homens. Elas se seguram na esperança de que os abusos do presente vão passar caso se esforcem para progredir e avançar na carreira.
Mas, porque as relações de poder estão cristalizadas, esse avanço para as mulheres vai sendo postergado, enquanto o ciclo de abusos pode se intensificar sem interrupção.