Quase lá: O olhar para saúde mental do brasileiro deve ser integral, afirma especialista

Em entrevista ao CB.Saúde, a psicóloga Fernanda Magano destacou a necessidade de ampliar os serviços no país para atender pacientes, principalmente os idosos. "Existe um debate longo e importante sobre a questão do etarismo", acrescenta a especialista

 

AG
Aline Gouveia
HD
Helena Dornelas
postado em 07/07/2023 06:56 / Correio Braziliense

 

 (crédito:  Ed Alves/CB/DA.Press)
(crédito: Ed Alves/CB/DA.Press)

O Brasil é o país com maior prevalência de depressão na América Latina e é também o mais ansioso do mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Esse quadro alarmante de saúde mental se deve a diversos fatores, entre eles, a desigualdade de acesso aos serviços básicos, ao luto recente em decorrência da pandemia e a sequelas da chamada covid-19 longa.

Em entrevista à jornalista Carmem Souza, no programa CB.Saúde — parceria entre Correio e TV Brasília — a psicóloga Fernanda Magano, conselheira nacional de saúde e integrante da mesa diretora do Conselho Nacional de Saúde (CNS), comentou sobre essa realidade. Falou ainda que os resultados da 17ª Conferência Nacional de Saúde, realizada esta semana, em Brasília, foram positivos. Explicou ainda como será utilizada a verba de R$ 200 milhões anunciada no encontro, destinada aos Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) e aos Serviços Residencias Terapêuticos (SRT).

Um dos objetivos da 17ª Conferência Nacional de Saúde foi definir as políticas públicas voltadas para essa área. Nos últimos anos, o Sistema Único de Saúde (SUS) ficou ainda mais evidenciado. Entre as propostas que surgiram, quais a senhora destaca? 

No decorrer da conferência, as pessoas foram divididas pelos eixos temáticos de debate, que visavam pensar as questões de atenção primária à saúde, as pautas específicas, como também a saúde mental, e apontar os caminhos para a organização das políticas públicas de saúde, mas, também, a preocupação com a garantia do ordenamento financeiro. Então, a construção como um todo aponta para dois caminhos: influenciar na construção dos planos municipais, estaduais e nacional de saúde e, também, na questão do PPA (plano plurianual), para garantir, de fato, um financiamento adequado do SUS.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva confirmou, na conferência, a permanência da ministra Nísia Trindade na Saúde. Como o CNS recebeu essa informação?

Foi maravilhoso. Tivemos a abertura com a presença da ministra (da Saúde) Nísia (Trindade) e de ministérios apoiando e respaldando a questão da pasta da Saúde. Na quarta-feira, na fala do presidente Lula, ele reafirmou que o Ministério da Saúde é um ministério que está sob a responsabilidade dele, que manteria a ministra Nísia pela importância do trabalho que vem acontecendo e, também, por toda a trajetória que ela construiu no trabalho da Fiocruz, no enfrentamento da pandemia, que ela tinha todas as qualificações e que estava fazendo uma ótima gestão para a saúde.

Um outro anúncio que chamou muito a atenção na conferência foi o do investimento na saúde mental de R$ 200 milhões. O que isso representa para a saúde mental do brasileiro?

A proposta é investir na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), dando destaque à abertura de Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) nas suas mais diversas modalidades. Também, a ampliação do número dos Serviços Residencias Terapêuticos (SRTs), que são espaços de acolhimento para as pessoas terem esse atendimento multissetorial. Então, a garantia da política de saúde, mas também de moradia, do cuidado, da assistência. Então, o SRT vem para incentivar de fato a autonomia de quem teve o processo de sofrimento mental, mas que vai recuperar o seu retorno à sociedade. Além disso, também os Centros de Convivência Comunitária (CECCOs), como propostas de inserção na sociedade e a construção dos caminhos de produção de renda, economia solidária. Também se deu destaque no aumento de leitos em hospitais gerais para momentos de crises mais agudas, em que há necessidade de internações por curto período, mas para continuidade com o cuidado em liberdade. Acho que essa é a tônica principal. O investimento vem para a retomada daqueles princípios da reforma psiquiátrica, da Lei 10.216, e valorização da lógica da política antimanicomial.  

Recentemente, houve uma decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que entra na questão dos hospitais de custódia, de tratamentos psiquiátricos, nessa linha da política antimanicomial. Esse investimento inclui a questão dos hospitais de custódia?

Essas questões vão em paralelo, porque a proposta do CNJ tem causado muito clamor social, muita polêmica, porque tem a questão relacionada às medidas de segurança, absolvição de pena, mais o cuidado na perspectiva da saúde mental; mas de alguma forma influencia, porque ao aumentar a rede CAPs você vai dar a estrutura necessária para cumprir a premissa que o CNJ aponta, que é o fechamento dos hospitais de custódia e tratamento penitenciário, a medida em que essas pessoas não têm pena a cumprirem, que necessitam de cuidado e avaliação. Cuidado em liberdade é a melhor forma de reinserção, de aceitar as diferenças, de fazer medidas para a profilaxia da saúde mental dessas pessoas.

Qual a situação, hoje, dos Serviços Residencias Terapêuticos e dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPs)?

Por conta de todo um desinvestimento que ocorreu na gestão passada do governo federal, foi ocorrendo um efeito cascata em todo o território nacional. Tinha uma estrutura dentro do Ministério da Saúde, que era uma área técnica, que tinha representantes que não acreditavam no cuidado em liberdade e foram distorcendo toda a política, a ponto de ter nas propostas orçamentárias a compra de equipamentos de eletroconvulsoterapia, coisa que a gente execra no princípio das novas políticas de saúde mental. Além disso, houve uma mudança da estrutura política, indo para as comunidades terapêuticas, que não são espaços de saúde, não têm profissionais de saúde, e não devem receber dinheiro público. Houve também a retirada de uma rubrica financeira que incentivava os municípios a abrir CAPs.

Há uma queixa de que os CAPs só dão conta de crises muito agudas, e que deixam uma parcela da população desassistida. Podemos pensar em um cenário diferente para o enfrentamento dos sofrimentos psíquicos?

A intenção e a construção é para esse caminho. Outro elemento que foi acontecendo nesse período foi o esvaziamento do corpo funcional. A gente precisa ter a diversidade de, além de psiquiatria, ter os psicólogos, enfermeiros, terapeutas ocupacionais. É necessário ampliar essa questão da capacidade de recursos humanos para dar vazão a todo esse atendimento.

 

 

 

O Brasil é o país com o maior número de ansiosos. O que está acontecendo com os brasileiros?

Normalmente se trata as questões de saúde mental como fórum íntimo do indivíduo. Temos que desmistificar isso. Saúde mental perpassa por qualidade de vida, por uma relação que seja menos exploratória, por igualdade de acesso. Temos esses sofrimentos também pautados por essa lógica capitalista que nos permeia. A dificuldade de emprego foi acontecendo, a rede de saúde é diminuta. Há também as vivências do luto, daqueles que perderam familiares na pandemia e estão sem o devido atendimento.

As crianças também estão adoecendo. Como a senhora avalia isso?

Para isso, existem outros elementos. Primeiro, a dificuldade da interação social e a questão do uso excessivo das tecnologias, além das situações de violência que têm acontecido nos ambientes escolares. Além de tudo, o afastamento dos familiares é um fator. As crianças têm se desenvolvido com o cuidado externo, e o afeto das relações familiares é fundamental.

O último Censo aponta envelhecimento da população brasileira. Entramos em um cenário com novas preocupações em relação à saúde mental de uma população que está envelhecendo, certo?

Existe um debate longo e importante sobre a questão do etarismo, os preconceitos que perpassam a questão da terceira idade, toda uma mistificação social do não desejo do idoso, do não desejo de acesso a coisas, o não desejo sexual. É necessário a gente tratar com a devida consideração essa fase da vida.

Na pandemia, a população idosa era mais vulnerável. Houve um acirramento do preconceito com a crise sanitária?

Isso fica evidente para essa população, e todo o descaso de não ter vacinação, de começar a ter a "seleção" de quem vacina ou não. E foi aquele horror de começar a fazer uma política discriminatória de desprezo. Essa lógica de preconceito vai se perpetuando nas relações com a saúde.

Como as relações de trabalho impactam o adoecimento dos brasileiros?

Esse é um ponto bastante pendente de discussões. Do ponto de vista do serviço público ainda se discute um pouco mais, mas empresas privadas seguem essa relação, no nexo causal com o processo de adoecimento em função das relações de trabalho, tanto é que do ponto de vista do Ministério do Trabalho, que lida mais com as empresas privadas, tem um grupo do qual as centrais sindicais fazem parte que vai fazendo a relação de pensar as normas regulamentadoras do trabalho.

 

Assista o CB.Saúde na íntegra:

 

fonte: https://www.correiobraziliense.com.br/cidades-df/2023/07/5107164-o-olhar-para-saude-mental-do-brasileiro-deve-ser-integral-afirma-especialista.html

 


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