Matemática recém-diplomada na Academia Brasileira de Ciências, Celina Figueiredo fala ao ‘Nexo’ sobre a falta de diversidade nos cursos da sua área e os caminhos para superar esse cenário
MULHER VERIFICA COMPUTADOR PRODUZIDO NO EGITO
Apesar do aumento do ingresso de mulheres no ensino superior, a presença feminina nos cursos de matemática e estatística ainda é minoritária, como mostra um boletim divulgado no dia 12 de maio pela SBM (Sociedade Brasileira de Matemática) e SBMac (Sociedade Brasileira de Matemática Aplicada e Computacional) em parceria com a Associação Brasileira de Estatística.
39%
foi a proporção de ingressantes mulheres em 2019 nos cursos de matemática, matemática aplicada e estatística analisados pelo boletim
Presente também em outros cursos de ciências exatas, a sub-representação de mulheres é um dos temas de interesse da matemática Celina Figueiredo, que também é professora de ciência da computação na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), integrante da Comissão de Gênero e Diversidade da SBM e a SBMac e, desde o dia 10 de maio, integrante da Academia Brasileira de Ciências.
Dedicada há anos à realização de eventos e atividades para atrair mais mulheres para a matemática, Figueiredo disse ao Nexo que é preciso romper com os rótulos que afastam as mulheres desse campo. Apesar disso, reconhece que a situação melhorou em relação a algumas décadas atrás, quando, na graduação, havia apenas três mulheres em sua turma de 50 estudantes.
Figueiredo conta nesta entrevista sobre sua carreira, os esforços para tornar mais diversas as ciências exatas e as expectativas após a diplomação na Academia Brasileira de Ciências. Fala também sobre os motivos que tornam tão persistentes as desigualdades de gênero e raça nesses cursos.
O que a sra. pesquisa hoje? Como a sra. se interessou pela matemática, e como suas áreas de interesse de estudo se desenvolveram ao longo do tempo?
CELINA FIGUEIREDO Minha área de pesquisa fica na fronteira entre computação e matemática. Fiz graduação em matemática na PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), foi assim que tudo começou. Mas acabei fazendo a minha carreira na Coppe (Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro), que é a maior escola de pós-graduação de engenharia da América Latina. Tenho essa ambiguidade, e até gosto. Sou matemática, mas sou engenheira também.
É difícil falar da minha trajetória, porque acho que é uma questão mais de oportunidade do que escolha. Me posicionei de acordo com as oportunidades que apareceram, e que não dependem só da gente. Eu não sabia aos 20 anos que eu teria esta carreira. Cheguei à PUC em 1980, e chamar aquilo [dos anos 1980] de computadores nem seria verdade hoje em dia. Essa evolução dos computadores pessoais, computadores portáteis, celulares, internet — isso tudo foi uma evolução que a gente viveu juntos, e minha carreira também. Aquela matemática com que comecei, na PUC, é minha base, mas é bem distante do que faço hoje em dia.
A sra. contou em uma entrevista para o projeto Mulheres na Matemática, da UFF (Universidade Federal Fluminense), que havia apenas três mulheres na sua turma de 50 alunos na graduação, que reunia engenharia, matemática e física. Como era a experiência de ser mulher nesses cursos nessa época? De que outras formas a desigualdade de gênero se manifestava?
CELINA FIGUEIREDO Esse início foi bem difícil para mim. Vim de um colégio só de meninas, o Colégio de Aplicação da PUC, que não tinha o propósito de ser só para meninas, mas era assim. Quando fui para a graduação, você pode imaginar o choque. Não era meu dia a dia. Vivia intimidada, ficava na última fila. Nós éramos três. Com uma, infelizmente, perdi o contato, mas a outra ainda é muito minha amiga, a Simone Martins, da UFF (Universidade Federal Fluminense), que também fez carreira acadêmica. Tive que contar muito com elas duas, porque, naturalmente, a gente ficava junta. Hoje em dia não é tão forte essa divisão de gênero. Não mudou o fato de os cursos terem poucas mulheres, mas acho que hoje elas não se sentem tão intimidadas.
Apesar do aumento do ingresso das mulheres no ensino superior, os cursos de exatas, como a sra. disse, ainda têm grandes diferenças de participação de homens e mulheres. Por que essa disparidade é tão persistente? O que avançou nas últimas décadas, e o que ainda precisa melhorar?
CELINA FIGUEIREDO Sempre estamos discutindo esse assunto. Se as mulheres são a maioria dos presentes no ensino superior, e se hoje em dia a computação, por exemplo, está em várias carreiras, como não vemos mais mulheres buscando a engenharia, a matemática e a física? Eu acho incompreensível. Mas dá para pensar em alguns motivos. Por exemplo, a falta de professoras. Até recentemente, não tinha nenhuma mulher docente no corpo principal de professores da PUC-Rio. Hoje em dia já tem, eles acabaram de contratar. Fiquei contente, porque acho que a gente concorda que chegar a um departamento e ver apenas homens entre os quatro principais professores não passa uma boa mensagem para as mulheres. É como se essa carreira não fosse para elas.
Essa ausência também está em outros espaços, inclusive fora do Brasil. Por exemplo, comemoramos no dia 12 de maio, na USP (Universidade de São Paulo), uma data importante para as mulheres matemáticas do mundo todo, que marca o nascimento da Maryam Mirzakhani, uma matemática iraniana que foi a primeira a ganhar a medalha Fields [prêmio global conhecido da matemática]. Houve um seminário comemorativo no qual se falou dela e também do trabalho da segunda mulher que ganhou a medalha Fields, a Maryna Viazovska, que é uma matemática ucraniana. Foi uma comemoração, mas veja que essas foram as únicas duas mulheres a ganhar o prêmio. Precisamos de mais símbolos, de mais mulheres nessas posições de atração — professoras, orientadoras, administradoras de projetos de pesquisa. Falamos muito sobre a atração dos jovens para a ciência, mas como a gente vai atrair sem mulheres? Hoje, quando uma menina escolhe o que vai fazer na faculdade, ela não vê outros exemplos para seguir.
Um boletim publicado neste mês pela Associação Brasileira de Estatística, a Sociedade Brasileira de Matemática e a Sociedade Brasileira de Matemática Aplicada e Ciência Computacional, do qual a sra. fez parte, analisa não só as disparidades de gênero, mas de raça nos cursos de ciências exatas. O que os dados revelam?
CELINA FIGUEIREDO Não ficamos surpresos com os dados, embora, de certa forma, a gente fique um pouco desencantado. Mesmo formando essas comissões, refletindo sobre os desafios que a gente tem com relação a gênero e diversidade, não estamos conseguindo mudar esse quadro. O cenário é muito estável em relação às desigualdades de gênero e raça. Também examinamos as desigualdades regionais.
O estudo discute um ponto importante. Quando você faz matemática, você pode ter dois tipos de diploma: o de licenciatura — que tem a ver com a atuação como professor, em sala de aula, antes da universidade — e o bacharelado, que é ligado à atuação nas universidades, principalmente na pesquisa. Vimos que o gênero se manifesta na escolha não só da matemática, mas dessas duas atuações dentro da disciplina. Ainda existe uma ideia de que as mulheres, por serem associadas à tarefa do cuidado — cuidar dos jovens, uma coisa quase maternal —, preferem escolher a carreira de licenciatura ao bacharelado. Não é por aí. Não é possível a gente ainda ter esse rótulo, que justifique essa escolha de carreira. Acredito que essa preferência pela licenciatura passa mais pela falta de referências na pesquisa.
Como derrubar essas barreiras? Quais iniciativas a academia e a sociedade devem tomar para incentivar o ingresso de mulheres e pessoas não brancas na ciência, principalmente nas exatas?
CELINA FIGUEIREDO Se você permitir, vou falar de ações de que participo diretamente. Pode parecer, por causa dos dados, que a gente fica um pouco desencantado com a situação e acaba não fazendo nada, mas, na verdade, temos feito muita coisa. Uma iniciativa que acho que tem tido consequências positivas é uma parceria que a Academia Brasileira de Ciências tem feito com a L’Oréal e a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) para premiar jovens matemáticas. A Diana Sasaki, que é professora da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), recebeu esse prêmio em 2017. Na mesma semana ela teve o primeiro filho. Você pode imaginar tudo isso acontecendo ao mesmo tempo. Ela viveu a maternidade e mesmo assim — ou principalmente por isso — quis continuar a carreira.
Outra iniciativa, do Impa (Instituto de Matemática Pura e Aplicada), que é uma referência nacional para a matemática, é um evento com as meninas olímpicas. As Olimpíadas de Matemática tentam trazer mais jovens [adolescentes] para a matemática. Esse evento, em particular, quer chamar as meninas. Veja, então, que temos feito ações. É que ainda há muito que fazer.
Por que é tão importante que esse meio seja mais diverso?
CELINA FIGUEIREDO Por um lado, fico desencantada com esse tipo de pergunta, porque esse assunto deveria ser claro. Mas agradeço a oportunidade de responder. Por exemplo, uma coisa que a gente tem discutido muito hoje em dia são essas ferramentas de inteligência artificial, e essas decisões que elas estão tomando por nós. Decisões até mesmo em campos inimagináveis, como o da saúde. Se um pesquisador vai desenvolver um medicamento ou estudar uma doença, por exemplo, ele precisa saber que às vezes essa doença se manifesta de formas diferentes nos homens e nas mulheres. Tem que ter dados tanto deles quanto delas. É aí que vejo como é importante ter mulheres presentes no desenvolvimento dessas ferramentas, para trazer esse olhar mais diverso.
Tem também outros benefícios. Quando a gente fez a Comissão de Gênero e Diversidade da SBM e da SBMac, a gente passou a tratar não só de gênero, mas de outras diversidades que não vinham sendo discutidas. Acabamos fazendo uma discussão muito mais ampla do que seria se falássemos só de mulheres, que só aconteceu porque foi puxada pelas mulheres.
Não acho que a gente tem que falar só da matemática ou das ciências exatas. A diversidade é importante para todas as ciências. Tenho várias sobrinhas que fizeram direito, por exemplo, e por isso fui a várias formaturas. A maioria das formandas era mulher. Mas depois, quando você olha as pessoas que estão em posições decisórias, os juízes, você vê que há pouquíssimas mulheres ali. Temos, então, que pensar em tudo. Acho que é uma questão de sobrevivência. Ou a gente faz mais diverso, ou, então, onde a gente vai parar?
A sra. foi diplomada na Academia Brasileira de Ciências no dia 10 de maio. O que esperar de sua atuação na entidade?
CELINA FIGUEIREDO Costumo falar disso um pouco brincando, mas também implicando com meus colegas. Eles dizem: “Celina, você recebeu um prêmio”, que é a posse na Academia Brasileira de Ciências. É verdade, mas acho que esse prêmio é recebido de forma diferente por homens e mulheres. Para as mulheres, ele é um chamado para a gente trabalhar mais, porque é uma responsabilidade enorme. Temos a responsabilidade de ocupar esses e outros espaços para trazer mais mulheres e mais diversidade para a matemática.
Estou com bastante expectativa, tentando saber como posso ser útil, já que estou bem acompanhada lá. Mas tem algumas coisas. A ABC tem seus membros, que são renovados anualmente, e o que a gente chama de membros afiliados, que são os jovens. A chegada desses membros afiliados vai acontecer em junho. Me convidaram para fazer uma palestra quando essa hora chegar, para incentivar os mais jovens, e aceitei o convite para fazer essa acolhida. Outra atuação tem a ver com os documentos. Temos os anais da academia, e fui convidada para trazer mais diversidade para eles. Promover volumes especiais, discutir alguns temas novos. Acho que as oportunidades vão aparecer e eu vou tentando contribuir e somar. Espero que eu consiga.