A democracia oxigenou o país e o império lusitano na África ganhou liberdade e independência
Texto: Luiz Roberto Serrano
Arte sobre capa 25 de abril de 1974, a Revolução dos Cravos, de Lincoln Secco - Companhia Editora Nacional
Há exatos 50 anos, no dia 25 de abril de 1974, a Revolução dos Cravos espantou a paz dos cemitérios que reinava em Portugal desde a ditadura de 1926, enrijecida em 1932 pela longeva batuta repressora de António de Oliveira Salazar, secundado, em 1968, depois de sua morte, por seu seguidor Marcelo Caetano.
Por que dos Cravos? Porque foi com cravos, colocando-os nos canos de suas armas, que a população de Lisboa presenteou os militares do exército português que saíram às ruas para dar um basta ao estado de coisas que sufocava a vida do país desde as décadas iniciais do século XX. Foi um belo nome para uma revolução que tirou o país das trevas de 48 anos de ditadura, redirecionando-o para a democracia, o que lhe permitiu, por intermédio de um longo e ziguezagueante processo, alinhar-se ao que de melhor há no continente europeu. O país estava sufocado pela crise econômica, resultante da visão ortodoxa da ditadura que o comandava e pelo peso do combate às guerras de libertação em suas colônias africanas, travadas em Moçambique, Guiné-Bissau e Angola.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a criação da Organização das Nações Unidas, espaço que passou a dar eco aos sonhos de liberdade dos países até então colonizados, vários movimentos de libertação ganharam corpo na África. No início dos anos 1960, Patrice Lumumba, fundador do Movimento Nacional Congolês, lidera a fundação do Estado Livre do Congo depois de uma luta que durou meio século contra o domínio da Bélgica. A Argélia se liberta do domínio francês em 1962, quando foram firmados os acordos de Evian, que reconheceram a independência do país, onde se travou a famosa batalha de Argel, a capital do país, nos anos 1950, que teve repercussão mundial. Nos anos 1970, foi a vez dos países colonizados por Portugal, Moçambique, Guiné-Bissau e Angola.
Hasteamento da bandeira da Guiné Bissau após o arrear de Portugal em Canjadude. A Guerra do Ultramar, um dos precedentes para a revolução - Foto: João Carvalho/Domínio público/
Um movimento de militares
Rodrigo Pezzonia, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, destaca que a Revolução dos Cravos “portou algumas peculiaridades em relação a outros movimentos revolucionários e, talvez, a mais gritante tenha sido o fato de ser executada pelas mãos de militares, o que não seria grande novidade dado o período em questão, sobretudo no que se refere aos golpes militares latino-americanos, mas diferentemente do que ocorria do outro lado do Atlântico, o MFA (Movimento das Forças Armadas) era formado em sua maioria por capitães ligados à esquerda portuguesa. Muitos deles, inclusive, ligados ao Partido Comunista Português, assim como outras vertentes deste espectro ideológico”.
Pezzonia registra que “para além do descontentamento popular em relação à ditadura em si, a causa mais evidente se deu pelo processo paulatino de descontentamentos destes militares no que se refere às guerras de independência que ocorriam nas colônias portuguesas na África”.
Manifestação do 25 de Abril de 1983 na cidade do Porto - Henrique Matos/CC BY 2.5
É importante também destacar, como lembra Pezzonia, que a Revolução não se deu apenas pelas mãos dos militares. “Personalidades civis da oposição ao regime, muitas, inclusive, no exílio (como o caso de Mário Soares, que mais adiante ocuparia o cargo de primeiro-ministro) tiveram importância para o desenrolar do movimento. Mas, a grosso modo, personalidades ligadas a políticos, artistas, intelectuais e profissionais oriundos do próprio Estado ditatorial foram atuantes no processo que desvelou a Revolução de 25 de Abril”, acrescenta.
A Terceira República Portuguesa, consequência da Revolução dos Cravos, teve, inicialmente, seis governos provisórios, que abrigaram e alternaram em seu comando as várias correntes políticas que participaram do movimento, comunistas, socialistas, liberais, militares e assim por diante, cada uma delas aplicando no país suas convicções doutrinárias, especialmente na área econômica, respeitando sempre a democracia reconquistada após a revolução. Nesse processo, parte significativa de sua economia foi estatizada e posteriormente novamente privatizada. Foi um período com contínuas lutas políticas entre os partidos do novo regime, antes que a democracia seguisse seu rumo normal.
“A 25 de abril de 1975, primeiro aniversário da revolução, tiveram lugar as eleições para a Assembleia Constituinte, com 92% de comparecimento do eleitorado. O Partido Comunista Português e o Partido Socialista, principais partidos da esquerda, obtiveram, conjuntamente (mas se apresentando em separado) 51% dos votos totais. O CDS, Partido do Centro Democrático, que propunha o retorno ao velho regime corporativo, obteve só 7,65%. As eleições traduziam, ainda que de modo indireto e certamente deformado, as relações de força no país. O MFA sentiu seu impacto”, lembram Lincoln Secco, professor do Departamento de História da USP e Osvaldo Coggiola, professor titular do Departamento de História da USP, em artigo originalmente publicado no site A Terra é Redonda (https://aterraeredonda.com.br/50-anos-da-revolucao-dos-cravos/).
Mudanças no governo do país
No começo dos anos 1990, a economia, que vivia com altos e baixos, começou a ser fortalecer, posteriormente à entrada do país na Comunidade Econômica Europeia, o que não havia ocorrido até então, passando a turbinar suas exportações e atrair novos capitais estrangeiros. Em 2002, junto com os demais países membros, Portugal adere ao Euro, a nova moeda do continente europeu, que substitui as anteriores de cada um deles.
Hoje, Portugal é governado por Luís Montenegro, recém eleito pela Aliança Democrática, coligação liderada pelo Partido Social Democrata (PSD), de centro-direita. Por estreita margem de votos, o PSD e sua coligação venceram o Partido Socialista, que estava há quase nove anos no poder com Antônio Costa, que foi atingido por uma falsa acusação de corrupção, depois retirada, mas que em função disso renunciou, antecipando o pleito programado para apenas daqui a quatro anos.
O navio Santa Maria sequestrado em janeiro de 1961 sob o comando do capitão Henrique Galvão
chega no porto do Recife, no Brasil, um mês depois - Foto: Universidade do Porto
Os governos brasileiros sempre mantiveram relações cordiais com Portugal durante o regime autoritário, apesar de abrigar por aqui vários exilados daquele país. Uma mal sucedida rebelião contra o regime salazarista, ocorrida em 1961, veio bater nas costas do Brasil. Tratou-se da Operação Dulcinéia, o sequestro do navio português Santa Maria, comandado pelo capitão Henrique Galvão, associado ao general Humberto Delgado, que já estava no Brasil. O navio deveria ter sido desviado para Luanda, em Angola, mas os planos falharam e o barco veio bater no Recife, no Brasil, onde os tripulantes abandonaram a empreitada.
Vale citar um episódio relatado pelo historiador inglês Kenneth Maxwell, em conferência sobre os 50 anos da Revolução dos Cravos no último dia 4 de abril na USP. Segundo ele, o primeiro presidente português depois da derrocada da ditadura, o conservador general Antônio de Spíndola chegou a pedir, após deixar o poder, ajuda em armamentos ao governo Ernesto Geisel para provocar uma rebelião em Portugal e tentar voltar ao governo, do qual fora defenestrado no andar dos acontecimentos. O Brasil negou, pois, entre outras iniciativas, estava renovando sua postura diplomática e, com a primeira crise do petróleo em andamento, aproximava-se dos países produtores do combustível, como Angola, e não queria dores de cabeça nessa área.
Na verdade, a diplomacia brasileira, comandada pelo então chanceler Azeredo da Silveira, “passou a conferir atenção à cooperação Sul‑Sul e, particularmente, às relações com a América Latina e a África meridional, regiões onde, por razões históricas e geográficas, o Brasil teria condições de maximizar suas ‘vantagens comparativas’”, segundo a publicação O Pragmatismo Responsável na visão da Diplomacia e da Academia, da Fundação Alexandre de Gusmão, vinculada ao Ministério das Relações Exteriores. Foi uma postura sintonizada com os interesses do ainda autoritário governo Geisel, que, no seu decorrer, ainda decretaria o Pacote de Abril, que fechou temporariamente o Congresso Brasileiro.
O Brasil continuaria com um governo militar autoritário até 1985. E a Espanha, vizinha de Portugal na Península Ibérica, só se tornaria democrática depois de Portugal, em 1975, após a morte de seu ditador, Francisco Franco.