Promulgação da Proposta de Emenda Constitucional n.º 72 em abril de 2013 garantiu aos trabalhadores domésticos direitos trabalhistas. Informalidade, no entanto, predomina entre a categoria
Limpar a casa, cozinhar, lavar e passar. Esses são serviços comuns atribuídos ao dia a dia de trabalhadores domésticos. Depois de uma luta igualmente árdua empenhada por esses profissionais, a categoria conquistou direitos trabalhistas garantidos por lei somente em abril de 2013, por meio da PEC 72. Uma década depois da promulgação da PEC das Domésticas, como viria a ser conhecida, o cenário é ainda de desafio, apesar dos avanços.
Promulgada em 2 de abril de 2013, a Proposta de Emenda Constitucional nº 72 à Constituição de 1988, resultado de inúmeras mobilizações da categoria, garantiu aos trabalhadores domésticos direitos trabalhistas que antes eram restritos a outras categorias, como descanso semanal remunerado, férias, salário mínimo, Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), entre outros. Em 2015, foi aprovada a Lei Complementar nº 150, que regulamentou as alterações previstas pela PEC das domésticas.
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), o trabalho doméstico é exercido, em sua maioria, por mulheres. Elas representam 92% de um total de 5,9 milhões de trabalhadores, 67% mulheres negras. Os dados apontam, ainda, que a informalidade é predominante entre as domésticas e tem sido uma tendência observada nos últimos 10 anos. Até janeiro de 2023, 4,4 milhões de trabalhadores, ou seja, 74,8% do total, atuavam sem carteira assinada. Em 2013, eram 4,1 milhões, equivalentes a 68,4% do total. Os dados são referentes ao trimestre encerrado em janeiro de 2023.
No último dia 17 de abril, a Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal promoveu audiência pública em comemoração aos 10 anos da PEC das Domésticas. Presidida pelo senador Paulo Paim (PT-RS), a sessão reuniu auditores, deputados e sindicatos de trabalhadores domésticos, com objetivo de discutir e cobrar melhorias da PEC. Paim ressaltou que a luta pelos direitos das domésticas deve ser permanente.
"Vem de longe [a luta], vem de outros tempos, da época da escravidão, da casa grande. Temos muito por fazer e estamos no caminho do avanço. Oxalá um dia possamos dizer que no Brasil não há mais trabalho escravo ou análogo à escravidão", disse o senador.
A deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ), ex-empregada doméstica, política ativista do movimento negro, feminista, ex-governadora e primeira mulher negra a ser senadora no Brasil, também participou da audiência. Para ela, mesmo transcorridos 10 anos da promulgação da PEC das Domésticas, ainda há uma falta de conscientização social dos empregadores. "É preciso que a sociedade e o governo divulguem esses direitos, que digam que o empregador não tem prejuízos em dar os direitos do trabalhador. São necessárias campanhas e propagandas para que eles se conscientizem de seus direitos e possam reivindicar. O momento, agora, é de dialogar com a sociedade", afirma.
A parlamentar destaca, ainda, que o suporte para garantir o cumprimento da PEC e da fiscalização é, atualmente, reduzido. E que é necessário que o governo faça a sua parte. "Toda conquista já ajuda que a trabalhadora doméstica esteja mais inserida no mercado formal. As domésticas têm que estar em uma posição de poder usufruir dos benefícios do governo. Ainda hoje, no Brasil, encontramos trabalhos similares ao [regime] escravo", pondera.
Benedita lembra que, durante o período da Constituinte, dizia-se não caber na Constituição essa previsão de direitos, mas declarou sempre ter defendido a regulação das relações de trabalho. Benedita ressalta que brigou muito pela aprovação da então PEC das Domésticas no Congresso e assinalou que, atualmente, as mulheres, por exemplo, continuam buscando a manutenção de suas conquistas. "Enquanto estivermos precisando desses serviços, precisamos tratar [os profissionais domésticos] com os mesmos direitos dos demais trabalhadores. Somos seres humanos e temos o direito a um bem-viver", disse a deputada na audiência.
Os obstáculos para fiscalização da legislação
O sucateamento do Ministério do Trabalho é apontado como um dos principais obstáculos que prejudica as fiscalizações do trabalho das domésticas. Com baixo efetivo no quadro de auditores fiscais do Trabalho, de servidores administrativos, poucos veículos e falta de verba para equipamentos, o Ministério se vê em apuros para arcar com toda a demanda de fiscalização. A auditora fiscal do Trabalho Terezinha de Lisieux Rodrigues lembra que quando começou a trabalhar como auditora, a pasta dispunha de um quadro com pouco mais de 3.200 auditores. Hoje, o número é inferior a 2 mil servidores, conta.
"Nosso trabalho é eficiente dentro do que podemos fazer, e o mérito disso é o esforço pessoal de cada um pela causa. Mas esse trabalho poderia ser melhor e, para isso, necessitamos de um novo concurso público urgente e de melhor aparelhamento da auditoria", defende. Além da defasagem do Ministério do Trabalho, que está há 10 anos sem concurso público, a falta de verba para campanhas de conscientização também tem contribuído para a perpetuação de práticas abusivas no mercado de trabalho.
A presidente da Associação Brasiliense das Empregadas Domésticas Samara Regina da Silva Nunes, 53, destaca que as principais reivindicações da categoria hoje são o direito de recebimento do Programa de Integração Social (PIS); aumento de três para cinco parcelas de seguro-desemprego, conforme piso salarial e a volta do Programa de Recuperação dos Empregadores Domésticos (Redom), com dedução no imposto de renda para os trabalhadores domésticos. "Mesmo com a PEC, o que se observa ainda é muita informalidade, muitos empregadores que não assinam a carteira da empregada com aquela velha justificativa de que elas são da família", argumenta.
Escravidão contemporânea
Por desconhecer seus direitos, muitas domésticas são convencidas por seus patrões a trabalhar sem carteira assinada, o que as coloca em uma posição de vulnerabilidade e insegurança, afirma Samara Regina da Silva Nunes, 53. "Em pleno século XXI, ainda há muito assédio moral, sexual, condições degradantes. Os próprios empregadores estimulam a informalidade, utilizando de má-fé. Falam que assinar a carteira pode fazer com ela perca benefícios, como o Bolsa Família, o que é totalmente falso, e alegam justa causa na demissão para negar o FGTS aos trabalhadores", explica.
De acordo com o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, foram resgatados, nos primeiros 100 dias do governo Lula, 1.127 trabalhadores em situação análoga à escravidão. O procurador do Trabalho do Ministério Público do Trabalho (MPT) da região de Patos de Minas (MG), Thiago Lopes de Castro, 38 ressalta que, diferente dos trabalhadores rurais, as empregadas são exploradas por décadas, perdem completamente o vínculo com seus familiares e se encontram em estado mais vulnerável. "As denúncias são feitas geralmente por vizinhos ou pela assistência social. São pessoas que trabalham de domingo a domingo, com ausência total de remuneração e uma carga horária exaustiva. Então, esses trabalhadores ficam refém dos empregadores", detalha.
A exploração das domésticas se inicia antes mesmo do fim da terceira infância, quando são levadas a acreditar em uma promessa de uma vida melhor na cidade. Logo, a escravidão contemporânea se faz presente por meio da chamada dívida de gratidão, em que a trabalhadora é tratada como membro da família. Os patrões agem para isolar a doméstica da sociedade, fazendo com que ela não pertença a lugar algum para assim não despertar a consciência de sua escravidão.
"Elas normalmente são tiradas das famílias cedo e não tem pra quem voltar, então a única sensação de pertencimento é aquilo que ela conhece, que é a patroa. Se ela conseguir eventualmente sair dessa patroa, ela vai para outra, é um ciclo vicioso" explica Gislene Alexandre, 28, escritora e ex-empregada doméstica.
Thiago e Gislene argumentam que a falta de legislação específica para proteger as trabalhadoras domésticas e a falta de políticas públicas para amparar aquelas que foram resgatadas de situações de exploração são questões preocupantes, e que este é um grande desafio do governo. "É necessário criar políticas públicas de assistência social integral às vítimas pós-resgate, como assistência de moradia, de alimentação, psicológica, médica, odontológica, assessoria jurídica, assessoramento financeiro, para inclusão digital e educacional", aponta Thiago.
Volta por cima
Natural de Três Pontas, município da região sul de Minas Gerais, e filha de trabalhadores rurais, a escritora Gislene Alexandre, 38 anos, trabalhou durante 15 anos como empregada doméstica. Desde pequena ela entendia as circunstâncias sociais que a cercavam. "Na minha casa tinha banheiro, era um privilégio comprado à realidade dos meus colegas de classe", lembra.
Pouco depois, a família se mudou para um casebre nos fundos de uma outra fazenda, onde não tinha água encanada. "A gente tinha que buscar água no fundo de uma cisterna", recorda. O pai saía para trabalhar durante o dia e a mãe cuidava da casa dos patrões. Foi vivendo essa rotina que Gislene, ainda criança, sentiu a necessidade de trabalhar para ajudar a família.
Já atuando como doméstica na cidade, ainda menina, Gislene dividia seu tempo entre o trabalho e os estudos. Porém, aos 12 anos, a patroa a impediu de continuar frequentando a escola para dar conta do trabalho. Mas as frequentes mudanças de emprego não impediram que os abusos prosseguissem. Ela conta que aos 17 anos uma patroa a manteve em casa durante três meses a fio. "Foi difícil sair, parte por causa da patroa, parte por causa da dívida de gratidão", diz.
Com determinação, Gislene retomou os estudos aos 22 anos, concluindo o ensino médio aos 28. Aos 30, ficou entre os primeiros colocados no vestibular da Universidade Federal de Alfenas (Unifal), cursando bacharelado interdisciplinar em ciência e economia. Giza, como é tratada pela família e os amigos, sempre gostou de ler e escrever e viu na universidade uma oportunidade de dar voz às mulheres de contextos semelhantes aos seus. Lançou, então, o livro Vozes do Campo: Emancipação da Trabalhadora Rural Contra a Violência Doméstica.
Seu livro ultrapassou barreiras e foi aclamado ela crítica. Foi convidada a ocupar o cargo de diretora executiva da Confederação Latino-americana de Escritores, Poetas e Artistas do Mundo. Hoje faz sua segunda graduação e afirma que "todo e qualquer direito só é conquistado pela luta dos trabalhadores e trabalhadoras".
Escravizada por 38 anos
Submetida ao trabalho doméstico desde os 8 anos de idade, Madalena Gordiano Costa foi resgatada aos 46 depois de prestar serviço à duas gerações de uma família abastada de Maria das Graças Milagres Rigueira, de Patos de Minas (MG). Trabalhava de domingo a domingo em uma jornada exaustiva, sem descanso, férias ou qualquer outro direito trabalhista, ganhando entre R$ 100 a R$ 200. “Fazia de tudo, trabalhava o dia inteiro sem receber hora extra”, diz.
Ela lembra que as acomodações reservadas a ela eram degradantes. “Dormia em um quarto pequeno sem janela, onde ficava o material de limpeza. As únicas coisas que eu tinha eram três camisetas”, conta. Madalena foi resgatada em novembro de 2020, após denúncias de vizinhos. “Aproveitava a noite, enquanto meus patrões estavam dormindo, para mandar bilhetes pros vizinhos por debaixo da porta, pedindo 10 reais e sabonete”, lembra.
Vida nova
Madalena foi indenizada na justiça e recebeu um apartamento no valor estimado de R$ 600 mil, um carro em R$ 70 mil e mais R$ 20 mil em dinheiro. Agora com liberdade e aos 49 anos, ela quer levar a vida com tranquilidade. “É outra vida, né? Comprei meu apartamento e voltei a estudar pelo EJA. Gosto muito de passear”, afirma.
A história de Madalena não é única no país. Apesar da abolição da escravatura ter sido assinada em 1888, casos de resgate de trabalhadores em condições análogas à escravidão têm sido cada vez mais frequentes. De acordo com o Ministério do Trabalho e Previdência, 2.575 trabalhadores foram resgatados nessa situação em 2022, em um total de 462 fiscalizações realizadas no ano em todo o país.
De acordo com o artigo 149 do Código Penal Brasileiro, o empregador que submeter alguém a trabalho escravo, ou a condição semelhante, independentemente de consentimento, mediante fraude, violência, ameaça ou coação, pode ser condenado de 2 a 8 anos de prisão, além de pagamento de multa. O artigo prevê, ainda, aumento da pena quando o crime for cometido contra a criança ou o adolescente e incluir preconceito de raça, etnia, religião ou origem.