Com elenco majoritariamente feminino, dramaturgia escrita por aluna da USP nasce com tentativa de romper olhar preconceituoso para o amor; a seguir, confira um dos trechos que compõem uma das cenas do espetáculo
Um olhar! O amor e o preconceito começa pelo olhar. A falta do olhar que uniu duas almas poderia separá-las? É o que apresenta Dentro de um Olhar, peça de teatro que foge à norma heterocisnormativa, lógica social que não permite enxergar os afetos entre pessoas cis e trans. Em cartaz desde o ano passado na cidade de São Paulo, o espetáculo chega dessa vez ao Teatro da USP entre os dias 25 e 28 de julho. Os ingressos são gratuitos e disponibilizados uma hora antes no local.
Não é apenas no amor entre pessoas com identidades de gênero distintas que a história de Liz e Laura se construiu. Há outros temas que circulam a narrativa, como dependência emocional, toxicidade e alcoolismo. O enredo foi pensado para apresentar ao público que essas questões podem estar presentes em qualquer relação humana, entre casais cis, trans ou transcentrados – ou seja, um casal formado por pessoas trans.
A equipe técnica é composta majoritariamente por mulheres, com a presença também de homens trans. A direção artística é de Mayla Fernandes e a trilha sonora ao vivo é de Amanda Ferraresi, egressa do curso de Violoncelo do Departamento de Música da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP. O Jornal da USP conversou com Myra Gomes, dramaturga da peça e recém ingressante da Escola de Artes Dramáticas (EAD), escola técnica de formação de atores e atrizes, da Universidade.
Um dos motivos que levaram a atriz a escrever esse enredo está no seu processo de transição e autoafirmação enquanto travesti. De forma exclusiva, ela conta que a primeira versão do texto, escrita em 2019, se baseou numa história de amor heterocisnormativa, ou seja, entre um homem e uma mulher heterossexuais e cisgêneros, isto é, que se identificam com o gênero que lhes foram atribuídos ao nascer. Isso porque esse sentimento é quase sempre negado socialmente para pessoas trans, travestis, não-binárias e agênero.
“O amor não é dado para pessoas como nós, corpos dissidentes. O amor é dado para pessoas heterocisnormativas. Esse sentimento nasce com o olhar, assim como o desamor. Dentro de um olhar surgiu quando eu comecei a me enxergar da forma como eu sempre fui. Eu descobri uma travesti também pode ser amada à medida que a peça foi transicionando comigo”, Myra Gomes
As apresentações ganham um novo significado a cada apresentação. Para Myra, “o teatro é vivo. O texto está lá, fixo, mas o olhar do público é complementar à peça. Os olhares dos personagem e da plateia se cruzam e as cenas passam a ganhar um novo sentido.” “É como se a gente possibilitasse ao público enxergar aquele relacionamento pela cortina da janela da casa daquele casal”, complementa.
Teatro vivo e ‘trans’formador
Foi a partir do olhar, que a atriz também se reconheceu no teatro. Ela descobriu que ali também era o seu lugar, quando passou a conviver com Wallie Ruy, travesti, professora e inspiração de Myra nas artes. “O olho no olho sempre me fascinou. É muito lindo ver que o palco também é espelho das nossas vivências. Afinal, a vida também imita a arte”, celebra ela, que sonha em ser diretora artística.
A dramaturga também admite que o texto é como se fizesse parte dela. Com uma linguagem poética, as cenas adquirem um tom profundo e reflexivo. Além disso, também há presença de elementos audiovisuais na montagem do enredo, com gravações realizadas na USP.
Confira agora um dos trechos que compõem o espetáculo:
LIZ: Um…dois…três copos. Pra me reconhecer no espelho precisei me afogar em líquidos estranhos com sabores amargos, para amargar a dor que eu sentia no peito eu precisei nadar em águas que não eram habitadas. Eu tinha 13 anos, meu pai me fez escolher entre beber um copo de whisky e provar que eu era…homem, ou contar pra ele porque eu estava de batom e os saltos da minha mãe. Eu bebi. Contra a minha vontade mas sem coragem de enfrentar meu pai, um homem que batia na minha mãe quando bebia, naquele momento, bêbado, não ia ser piedoso comigo […] |
Nessa cena, Liz passa a relembrar traumas vivenciados na infância, antes de sua transição. A cena desperta muitas emoções e gatilhos por envolver inúmeras violências – doméstica, emocional, transfobia. Elementos da natureza também são utilizados para explicar o amor, por meio da dramaturgia.
Para Myra, apresentar essas questões é muito importante para romper com a ideia que pessoas da comunidade LGBTI+ discutem apenas sobre representatividade e diversidade. “A peça nunca foi apenas sobre o amor entre pessoas com identidades de gênero distintas. Há muitas elementos presentes, que reforçam que antes de serem uma personagem cis e trans, elas são humanas”, explica.
Por dentro de um olhar
Dentro de um Olhar foi contemplado com a segunda edição do Edital de Múltiplas Linguagens da Secretaria de Cultura da Prefeitura de São Paulo. Em cartaz desde o ano passado, o espetáculo já percorreu alguns teatros e escolas públicas da cidade.
O papel da peça não é ser educativo ou pedagógico, mas reflexivo. “Para nós, travestis, cansa explicar o que somos e o que sentimos. Nosso objetivo é mostrar para as pessoas que relacionamentos tóxicos existem independente do gênero ou cor da pele”, pontua a dramaturga. “De algum modo, as pessoas acabam se reconhecendo, esse também é o papel do teatro”, completa.
A chegada da peça na USP representa também uma oportunidade de tornar a arte acessível para os estudantes, docentes e funcionários. Ficou curioso para saber mais sobre a peça? Confira agora o calendário das apresentações:
Serviço
Dentro de um Olhar
Classificação: 14 anos
Duração: 60 minutos
Julho
Teatro da USP – R. do Anfiteatro, 109, Anfiteatro Camargo Guarnieri
Quando: 25 a 27 de julho, às 20h (sessão extra dia 27/07, às 18h)
Centro Cultural da Diversidade – R. Lopes Neto, 206 – Itaim Bibi
Quando: 28 a 30 de julho, na sexta e sábado às 20h, e no domingo, às 18h
28 e 29 de julho com interpretação de LIBRAS
Agosto
Centro Cultural Municipal Olido – Av. São João, 473 – Centro Histórico de São Paulo
19 a 27 de agosto, aos sábados, às 19h, e aos domingos, às 16h ( (sessão extra dia 19 de agosto, às 16h)
*Sob supervisão de Antonio Carlos Quinto