Estudo desenvolvido na USP busca compreender a dinâmica de relacionamentos afetivos que envolvem pessoas trans, analisando aspectos conjugais como estratégias para minimizar o preconceito
Texto: Camilly Rosaboni
Arte: Carolina Borin Garcia
Casais que se formam com base na diversidade de gênero costumam enfrentar uma realidade muito mais hostil para manter sua união, desde a aceitação familiar até a exposição pública com seus parceiros. “Isso pressiona os casais para uma zona de marginalidade social, uma vez que seus relacionamentos são classificados como ilegítimos e seu direito de amar e vivenciar a conjugalidade* não é reconhecido”, afirma Vinícius Alexandre, autor de uma dissertação de mestrado que analisa as narrativas de casais pertencentes à comunidade trans.
Vinicius Alexandre - Foto: Arquivo Pessoal
Após a análise do material, Vinícius pôde perceber inúmeras adversidades em suas trajetórias. A transfobia vivenciada pelos parceiros trans e travestis afeta diretamente aqueles com quem eles se relacionam. “Considerando os muitos fatores contra essas pessoas, além da conjuntura social que, muitas vezes, enxerga como algo pecaminoso o simples fato de estarem juntas, mostra que realmente existe amor entre elas”, aponta o pesquisador em seu mestrado.
Ainda no estudo, Vinícius reforça a necessidade de profissionais da saúde estarem atentos às dimensões multifacetadas do gênero e da sexualidade. “Espera-se que sejam capazes de perceber que aquilo que é propagado como conjugalidade normal é uma construção circunstancial. A normalidade é uma construção exclusivamente contextual, que é reescrita continuamente nos moldes que melhor se adaptem às existências humanas individuais”, afirma o pesquisador.
É essencial que os profissionais da saúde estejam preparados e atentos a questões de gênero na sua multiplicidade - Fotomontagem por Rebeca Alencar com imagens de Freepik
Por outro lado, esses casais encontram suporte com familiares e amigos que respeitam a diversidade de gênero, além de se fortalecerem na fé, na luta militante e principalmente na conjugalidade com seus parceiros.
O interesse de Vinícius em realizar o estudo partiu de um projeto desenvolvido no Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica (Inserm), na França, com a participação de seu orientador de mestrado. O projeto internacional busca coletar dados sobre saúde sexual da população trans, a partir de um questionário. Em meados de 2016, Vinícius começou a aplicá-lo no Hospital das Clínicas (HC) de Ribeirão Preto, que, nessa época, abrigava o Ambulatório de Estudos da Sexualidade Humana (AESH), atendendo a população trans. Em seguida, o pesquisador passou a convidar os mesmos casais para contribuir com o seu estudo na FFCLRP.
A pesquisa
Categorias Temáticas - Infografia: Jornal da USP - Fonte: Vinícius Alexandre
A partir do esquema anterior, Vinícius elenca a organização de seu estudo, por meio de cinco categorias, sendo Causas, Contexto, Condições Intervenientes, Estratégias e Consequência.
Segundo o autor, os elementos se relacionam com o título Vivendo uma conjugalidade insubordinada como forma de discutir a coerção vinda de dispositivos de poder que ditam socialmente o que é certo ou errado. “Nós podemos viver de uma forma subordinada a esses ideais, conscientemente ou não, na busca por uma adequação ao que é imposto”, afirma Vinícius. “Quando nos deparamos com vivências de gênero e de conjugalidades como as que estão no estudo, temos uma insubordinação diante de tantos dispositivos de poder”, complementa.
As Causas são as condições antecedentes à formação da conjugalidade, desde o enfrentamento da transfobia até a vulnerabilidade social, ocasionada pelo abandono dos estudos, a expulsão de casa por familiares que não aceitam a condição trans, entre outras. O Contexto é um receio intrínseco da exposição pública e de uma possível rejeição ao casal.
As Condições Intervenientes são fatores que facilitam ou dificultam a adoção de Estratégias para que os casais superem as dificuldades do relacionamento. Vinícius traz como exemplo de fortalecimento o suporte vindo de amigos próximos, da militância e de centros religiosos e, como obstáculo, o medo do preconceito e de experiências de transfobia.
“A Consequência dessas estratégias é o desenvolvimento de uma relação singular, na qual se pode criar um futuro em conjunto e encarar o relacionamento como uma nova normalidade”, conta Vinícius.
No Dia Nacional da Visibilidade Trans, mulheres e homens trans e travestis se reuniram no gramado do Congresso Nacional para realizar um ato simbólico em defesa das vidas da população LGBT em 2018 - Foto: Reprodução/Mídia Ninja via Flickr
Conhecimentos deficitários
O pesquisador da FFCLRP explica que a pauta trans demorou para entrar nas agendas e pesquisas acadêmicas. “Principalmente entre as décadas de 1970 e 1980, o movimento feminista estava muito presente na academia, mas sem o questionamento do conceito de gênero em si, ou seja, o que de fato se entende pelos termos homem e mulher. Então, as discussões sobre transexualidade ainda eram um tabu muito grande”, explica Vinícius. “Apenas com o ingresso de acadêmicos trans nas universidades, a partir dos anos de 1990, é que se começa a produzir mais conteúdo sobre o tema”, complementa.
Além disso, até a 10ª versão da Classificação Internacional de Doenças (CID), em vigor até janeiro de 2022, havia a categoria denominada Transtorno da Identidade Sexual, classificando a transgeneridade como uma doença. “O documento apresenta a pessoa trans como ‘transtornada’, tomando como base simplesmente a sua ‘condição’ de ser trans; ou seja, alguém que desafia a convenção cultural do ajustamento idealizado entre gênero e anatomia”, explica Vinícius em seu mestrado.
A partir da CID-11, passou-se a utilizar a denominação Incongruência de Gênero, transferida para a categoria Condições Relacionadas à Saúde Sexual, mas ainda reforçando a patologização. “É um avanço em relação ao código anterior, mas, por outro lado, ainda mantém as identidades trans em uma condição patológica”, lamenta Vinícius. “Muitas pessoas trans deixam de ir ao médico pelos constrangimentos que elas passam, por exemplo, por não serem chamadas pelo seu nome social”, complementa.
Durante as entrevistas, Vinícius observou certa desconfiança por parte dos casais. “Quando as pessoas trans vão ao médico, é muito comum haver um questionário um tanto quanto invasivo, com perguntas inconvenientes sobre sua vida sexual e sua intimidade”, lamenta ele.
Além disso, repetidamente, os casais diziam ter relacionamentos “normais”. “Em outras palavras, tinham relacionamentos como quaisquer outros, e não eram ‘aberrações’ como muitas vezes os escutam chamar”, explica Vinícius. “Mas, ao mesmo tempo, os relacionamentos desses casais extrapolam os conceitos do que a sociedade normaliza”, complementa.
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