A deputada mineira se reuniu, ontem, com os ministros das Relações Institucionais; da Justiça; e dos Direitos Humanos; em busca de apoio, institucionalmente, pela cassação de Nikolas
As declarações consideradas transfóbicas do deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) renderam denúncias de parlamentares de diversos partidos ao Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara (Coetica) e ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Deputados de legendas como PDT, PSB, PSol, Rede e PT entraram com representações no Coetica pedindo a cassação de Nikolas. No âmbito da Justiça, o Gabinete Compartilhado do Congresso Nacional, do qual faz parte a deputada trans Duda Salabert (PDT-MG), protocolou no STF uma notícia crime contra o parlamentar.
A deputada mineira se reuniu, ontem, com os ministros das Relações Institucionais, Alexandre Padilha; da Justiça, Flávio Dino; e dos Direitos Humanos, Silvio Almeida; em busca de apoio da base e do governo federal, institucionalmente, pela cassação de Nikolas.
"Eu, em conjunto com Gabinete Compartilhado, entramos com notícia crime no STF a fim de que o Nikolas seja responsabilizado também na esfera criminal pela sua fala. Provoquei ainda uma conversa com o governo Lula, porque eu entendo que a fala de ontem (quarta-feira) não agrediu somente travestis e transsexuais, mas todos os parlamentares e a política brasileira", disse Duda ao Correio. "Gostaríamos de uma posição com relação a essa fala, pois não existe democracia onde há discurso de ódio, preconceito e transfobia."
Segundo o líder do PT na Câmara, Zeca Dirceu (PR), Nikolas teria planejado os ataques um dia antes, na terça-feira, durante uma partida de futebol recreativa da Casa.
"O deputado transfóbico está tão mal na foto, que até os deputados de oposição vieram me entregar ele. Consta que já na terça-feira, durante jogo de futebol da Câmara, ele já anunciava que faria aquela atitude criminosa e ridícula no plenário. Que venha a cassação no Coetica", frisou.
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) — órgão do Ministério Público Federal (MPF) — também emitiu nota manifestando veemente repúdio à fala transfóbica do deputado e pediu à Câmara para iniciar um processo de investigação contra Ferreira. "É repugnante um congressista usar as vestes da imunidade parlamentar para, premeditadamente, cometer crime passível de imputação a qualquer cidadão ou cidadã", diz o comunicado.
As ações contra Nikolas devem ser recebidas pelo Coetica assim que sua composição for formada. Punições pela comissão são incomuns, mas, no ano passado, o colegiado aprovou a suspensão do mandato de Daniel Silveira por seis meses. À época, a prisão do então deputado havia sido determinada pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF, por atos antidemocráticos e incitar ataques a integrantes da Corte.
Aliados do governo acreditam que, assim como no caso Silveira, uma decisão judicial contra Nikolas pode influenciar na avaliação dos deputados no conselho de ética. Pesa o fato de um entendimento do STF sobre a equiparação de crimes relacionados à homofobia ao racismo, o que tornou a prática criminosa inafiançável.
À reportagem, aliados de Nikolas disseram que ele não se arrepende e que faria "tudo de novo". Nas redes sociais, o deputado classificou a repercussão como "histeria". A reportagem também procurou o partido do deputado, o PL, mas a legenda não se manifestou até o fechamento da edição.
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Entrevista com Duda Salabert
Como avalia os ataques do deputado Nikolas Ferreira? O fato de terem sido no Dia Internacional da Mulher tornou o ato ainda mais grave?
O Congresso tem de ser espaço para debate da grande política e deve ser usado para superar as crises, política, ambiental, econômica. O debate no Dia Internacional da Mulher deveria ser aprofundado para falar da desigualdade de gênero, que afeta diversas mulheres na esfera social. Ele preferiu usar a tribuna para ridicularizar as mulheres trans e travestis. Transfobia é crime inafiançável. Ele fez um discurso criminoso e, além de criminoso, um discurso irresponsável, porque em nada contribui para o avanço e a superação da crise do Brasil.
O presidente da Câmara, Arthur Lira, foi ágil na reprimenda a Nikolas Ferreira...
Mandei uma mensagem para o presidente parabenizando pela postura, que está de acordo com o discurso de posse dele, o qual evidenciou o desejo de superarmos uma polarização e a violência política no Brasil. Foi um compromisso que ele assumiu quando foi eleito, em seu discurso de posse, e o gesto de ontem (quarta-feira) reforça esse compromisso. Pretendo, nos próximos dias, ter uma agenda com o presidente, a fim de discutirmos a violência política no plenário.
A senhora já fez um comentário sobre ser pouco procurada na defesa de outras pautas às quais se dedica na atividade legislativa. Por que isso ocorre?
Há uma transfobia estrutural no Brasil que quer que nós, pessoas trans e travestis, falemos exclusivamente sobre pautas identitárias e tenta apagar e silenciar nossas impressões sobre assuntos estruturantes no país. Fico bastante indignada ao ver que setores do jornalismo até dão muito mais visibilidade às falas minhas sobre questões identitárias do que a outros assuntos que também me são caros e mais importantes na minha atuação, como o debate climático, que faz parte da minha luta política; minha visão econômica; segurança pública, por exemplo. Raramente me chamam para discutir, e faz parte da minha luta. Há uma visão reducionista da nossa prática política. Muitos parlamentares acham que vou discutir apenas pautas trans, mas fui eleita para discutir a revogação da Lei Kandir, vou discutir, por exemplo, um outro modelo de segurança pública, um plano nacional de ação climática, que são as pautas principais do nosso mandato. Não desmerecendo a pauta identitária, mas somos muito mais que uma pauta identitária.
A inclusão de pessoas trans em debates estruturantes pode ajudar no combate ao preconceito?
Sim. O que houve no Brasil e na América Latina, historicamente, foi um apagamento das identidades e reivindicações de travestis e transsexuais. Temos de lembrar que, devido a diversas estruturas de ódio, hoje, 90% das travestis no Brasil estão na prostituição. Em Belo Horizonte, 91% da população trans não concluiu o ensino médio, devido a uma estrutura de violência, também sendo replicada até em ambiente escolar. Ter pessoas trans pautando debate político nacional e discutindo questões estruturantes, como a emenda constitucional 95, a Lei Kandir, uma reforma tributária, uma legislação moderna no ponto de vista socioambiental, isso implica outro contorno para a nossa identidade. Traz uma acepção positiva para a nossa vivência, por consequência, e acaba combatendo o estigma construído negativamente às identidades trans na América Latina. (RF)