Quase lá: Ato reivindica direito de pessoas trans existirem em todos lugares

Dia da Visibilidade Trans foi comemorado na Praia do Leme (RJ)

No Dia da Visibilidade Trans, pessoas transexuais e travestis vão à praia do Leme pelo direito de existir nos espaços com liberdade e segurança para todos os corpos.
© Fernando Frazão/Agência Brasil

Publicado em 29/01/2023 - 17:16 Por Akemi Nitahara – Repórter da Agência Brasil - Rio de Janeiro

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Em um dia de muito sol e calor no verão carioca, um grupo de amigos e amigas resolveu comemorar o seu dia de uma forma muito comum e natural para temperaturas acima dos 30 º Celsius (ºC): indo à praia. Mas, para esse grupo, o ato corriqueiro para a maioria das pessoas de ir à praia é um ato político. Eles e elas são ativistas, homens e mulheres transexuais e travestis.

O coordenador da Marcha Trans e Travesti do Rio de Janeiro, Gab Van, destaca que o ato Ocupa Leme, praia na zona sul da cidade, foi pensado para expor os corpos considerados “fora do padrão”, na comemoração do Dia da Visibilidade Trans, que é celebrado em 29 de janeiro.

“Hoje, ocupar esse espaço, ocupar o Leme, para a gente é um ato de militância. Porque muitas pessoas nunca vieram depois da sua transição [de gênero]. Não voltaram às praias. Então, voltar com uma outra perspectiva, com um outro olhar, com uma outra presença, e se sentindo acolhido e pertencente a esse lugar, traz não só uma qualidade de vida, para além do sentimento de pertencimento. O sentimento de existir. Eu posso existir em todos os lugares”, disse Gab.

No Dia da Visibilidade Trans, pessoas transexuais e travestis vão à praia do Leme pelo direito de existir nos espaços com liberdade e segurança para todos os corpos.
Ir à praia para pessoas transexuais e travestis pode representar perigo e agressão - Fernando Frazão/Agência Brasil

Atuante na ONG Capacitrans, Ágata Tariga, disse que o Dia da Visibilidade Trans remete à 2004, quando foi lançada em ato em Brasília a campanha Travesti e Respeito. Para ela, ir à praia cotidianamente pode representar perigo e agressão.

“Nós não somos corpos muito passáveis, somos corpos diversos. E por ser mulheres e homens trans, muitos não mastectomizados, e outras trans com corpos fora do padrão, então a gente fica meio receoso de vir à praia, porque só o fato de vir à praia a gente já é olhado com outros olhares, xingamentos ou o assédio sexual. Então se a gente ocupar a praia, todo mundo junto, vai se sentir mais à vontade. A gente nota que até os olhares mudam, porque muitos estão aqui. Se é uma só, um só, realmente são diferente os olhares”, disse.

Ágata lembra que, nas últimas décadas, alguns direitos foram alcançados pela população trans, como fazer a terapia hormonal pelo SUS, o nome social nos documentos e o direito à retificação de nome e gênero na certidão de nascimento.

Bancada trans

No Dia da Visibilidade Trans, a deputada estadual eleita Dani Balbi vai com transexuais e travestis à praia do Leme pelo direito de existir nos espaços com liberdade e segurança para todos os corpos.
A deputada estadual eleita Dani Balbi comemorou a eleição de um parlamentares trans - Fernando Frazão/Agência Brasil
 

Deputada estadual eleita, Dani Balbi comemora este histórico 29 de janeiro, às vésperas da posse da primeira bancada trans na Câmara Federal. Os parlamentares eleitos em outubro serão empossados na quarta-feira (1º).

“Nós temos ali a Duda Salabert, a Érica Hilton, ocupando aquele espaço com toda a qualidade política, com toda a história e densidade. Para dizer que mulheres trans, travestis, pessoas LGBTQIA+ precisam estar ali para falar de si, mas para falar também de pautas urgentes que interseccionam a existência de pessoas transsexuais e travestis. E aqui no estado do Rio de Janeiro, eu, em outros lugares, em Natal a minha companheira Linda Brasil. Então são muitas experiências, é um avanço tímido e a gente espera que cada vez mais a gente continue avançando”, disse a deputada estadual eleita.

De acordo com Dani Balbi, a estimativa é que no Rio de Janeiro cerca de 15 mil pessoas se declarem transexuais. Essas pessoas têm demandas específicas a serem atendidas pelas políticas públicas.

“A gente espera fazer um mapeamento qualitativamente denso, não só quantitativamente, para que a partir daí a gente possa balizar as políticas públicas. São fundamentais, principalmente aquelas que garantem acesso à educação formal, porque a maioria das pessoas transexuais e travestis acaba sendo evadida da escola. E também saúde pública. Porque a saúde das pessoas transexuais e travestis é peculiar, exige algum grau de peculiaridade, de especificidade e de formação”.

Outros eventos marcam o Dia da Visibilidade Trans no Rio de Janeiro, como a feira de empreendedorismo 1º Mercado Mundo Trans, no Museu de Arte do Rio na Praça Mauá e intervenções artísticas da cena Ballroom no evento Transcentralidades, na Lapa.
 

Edição: Fábio Massalli

fonte: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2023-01/ato-reivindica-direito-de-pessoas-trans-existirem-em-todos-lugares

 

Conheça Gahbi, brasiliense que conquistou na Justiça mudança de gênero para não binário

No Dia da Visibilidade Trans, conheça a história de Gahbi, 1º não binário a conseguir a retificação de gênero em uma ação individual no DF

 atualizado 29/01/2023 14:51 - Metrópoles

Pessoa com cabelo vermelho e barba mostrando a mão com unhas pretas em frente ao rosto. Atrás dele há uma bandeira com as cores vermelha e laranjaIgo Estrela/Metrópoles

Em dezembro do ano passado, Gahbi Borges (foto em destaque), de 34 anos, pôde comemorar o tão esperado reconhecimento por ser quem é. Com identidade que não é nem masculina nem feminina, Gahbi foi a primeira pessoa a conseguir, em uma ação individual na Justiça do Distrito Federal, a retificação de gênero em seus documentos para “não binário”.

Gabhi se sente confortável com o tratamento tanto pelos pronomes ele/dele como ela/dela. A reportagem usará ele/dele sem razão específica.

Morando atualmente na Asa Norte, ele é ator, drag queen, humorista e comunicador. “Até os 33 anos eu me entendia como um homem gay. Mas sempre tive uma sensação de ser um estrangeiro nesse mundo, no contexto familiar, escolar, religioso”, conta.

O artista faz apresentações como drag queen há mais de 10 anos. Para ele, “esse processo da arte transformista foi muito positivo para a construção do meu orgulho enquanto pessoa LGBTQIAP+”.

Apoio da mãe

Durante a pandemia, Gahbi fez uma oficina on-line na qual começou a ter contato com outras pessoas da comunidade e conheceu não binários. “Aí, comecei a perceber que minhas questões são mais parecidas com a transgeneridade. Encontrar esse termo ‘não binário’ foi como encontrar meu lugar no mundo”, diz.

Após se descobrir, Gahbi resolveu comentar com sua mãe, Vera Adelaide, 67, sobre sua identidade de gênero. “Parece que isso nunca foi uma questão muito relevante para ela. O afeto dela é independente de quem eu sou. Ela é minha melhor amiga e incentivadora”, conta, com alegria.

Desde que começou a se montar como drag, Gahbi já contava com o apoio da mãe. “Uma vez, uma amiga minha perguntou se eu sabia o que ele estava aprontando no Rio e eu falei: ‘Sei, eu que monto, eu que arrumo figurino'”, relata Vera, com risos.

 

“Sempre tive a ajuda da minha mãe. Mesmo sem entender direito, ela dizia: ‘Se for para ser o que você é, eu apoio'”, afirma Gahbi.

 

Ação na Justiça

No meio do ano passado, ele entrou com uma ação na Justiça para incluir o sobrenome de sua mãe em seu nome, uma vez que só tinha o do pai. Na época, Gahbi acabou descobrindo um caso de retificação de gênero para “não binário” ocorrido no Rio de Janeiro, e resolveu aproveitar e buscar também essa alteração.

“Comecei a pesquisar e achei a minha advogada, Cíntia, no Instagram. Entrei em contato com ela e ela topou entrar com essa ação”, conta.

Cíntia Cecilio é presidente da Comissão de Diversidade Sexual da OAB-DF. Ela explica que, no Distrito Federal, ainda é preciso procurar a Justiça nestes casos como o de Gahbi, uma vez que não é possível resolver diretamente no cartório.

 

No Brasil, em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) definiu que transsexuais e transgêneros têm direito à mudança de nome e gênero no registro civil direto em cartórios, mesmo sem se submeter à cirurgia de readequação genital. No entanto, no caso de pessoas não binárias que buscam a correção de documentos pessoais, ainda é preciso entrar na Justiça em algumas situações. É o caso de quem mora no DF.

“O STF e o CNJ falam só de pessoas trans, alterando o gênero de masculino para feminino e vice versa. A decisão não fala de não binário”, comenta Cíntia. “Em alguns estados isso já é feito diretamente no cartório, mas por cooperação do TJ daquele estado com a defensoria e os cartórios locais. Em Brasília, não temos isso ainda”, informa.

Quando Gahbi deu início ao processo, não havia decisões precedentes que autorizassem tal mudança nos documentos.

“O Ministério Público pediu um relatório psiquiátrico antes de dar o parecer. Minha psicóloga e minha psiquiatra escreveram o documento, dizendo que não há patologia em como uma pessoa se identifica”, relata o artista. Cíntia também fez uma petição reclamando do pedido do MP.

Em 7 de dezembro, a decisão judicial foi publicada, deferindo o pedido de Gahbi. “Na hora que minha mãe me falou, não acreditei”, relata o ator. “Fiquei muito feliz, porque a gente estava esperando isso”, completa Vera.

 
 

Um mês antes de sair a decisão da Justiça favorável a Gahbi, a Defensoria Pública do DF (DPDF) conseguiu a requalificação de gênero e nome de 24 pessoas não binárias em uma ação judicial conjunta. Assim, o artista é o primeiro a conseguir a retificação dos documentos em uma ação individual no DF.

“A nossa vontade é que as pessoas saibam que existe essa possibilidade. Depois que vi a felicidade de Gahbi, quero que mais pessoas saibam que têm esse direito de serem reconhecidas pelo o que são”, afirma Cíntia Cecilio.

“Especialmente agora, no Mês da Visibilidade Trans, quero que as pessoas saibam que elas também têm esse direito”, acrescenta o comunicador.

Nos próximos dias, Gahbi deve receber sua certidão de nascimento e a identidade atualizadas. A luta contra o preconceito não acabou, mas ele sente que dá um grande passo não só individual, como coletivo também.

“Mudar meus documentos é importante porque a sociedade que sempre me oprimiu agora vai me ver fazendo parte, sendo incluído nesse mundo”, conclui.

 

Mais sobre o assunto

fonte: https://www.metropoles.com/distrito-federal/conheca-gahbi-brasiliense-que-conquistou-na-justica-mudanca-de-genero

 

Mês da Visibilidade Trans: a dor e a delícia de ser o que é

Nesta edição, a Revista do Correio conta histórias de felicidade e de lutas das pessoas trans, que realizam seus sonhos apesar das dificuldades
Ailim Cabral e Letícia Mouhamad*
postado em 29/01/2023 06:00 / atualizado em 29/01/2023 15:44 - Correio Braziliense
 (crédito:  Marcelo Ferreira/CB/D.A. Press)
(crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A. Press)

Quando pensamos em nossas histórias de vida, quais são os acontecimentos que nos definem? Quando estamos em um encontro romântico ou iniciando uma amizade, o que gostamos de contar aos outros sobre nós mesmos?

Muitas vezes falamos sobre nossas carreiras, se estamos em um relacionamento ou não, se temos ou queremos ter filhos, se gostamos de sair para jantar e ir ao cinema ou se preferimos pedir um delivery e assistir um filme no streaming. Revelamos nossos sonhos e aspirações.

Quando homens e mulheres trans mencionam suas identidades de gênero, a conversa tende a tomar um rumo totalmente diferente. Existem aqueles que perguntam, de maneira incômoda, sobre o nome morto — que foi dado ao indivíduo, quando ele nasceu e retificado durante o processo de transição —, outros, até mesmo tentando demonstrar empatia, se condoem e perguntam sobre o preconceito, o sofrimento e a discriminação. Há ainda os que se deixam levar pela curiosidade e chegam a fazer questionamentos invasivos que jamais fariam a um indivíduo cis.

E, embora a transgeneridade seja, sim, um aspecto importante e muitas vezes motivo de orgulho e símbolo de resistência para essas pessoas, elas são — muito — mais do que sua identidade de gênero.

A dor da discriminação, os efeitos traumáticos da transfobia e a absurda quantidade de obstáculos extras que as pessoas trans enfrentam no mercado de trabalho, no sistema de saúde, na vida acadêmica, na hora de formar uma família e em todas as outras esferas sociais, são temas de profunda seriedade e importância.

Mas neste 29 de janeiro, Dia Nacional da Visibilidade Trans, queremos tratar de um outro tema tão importante e relevante quanto: a felicidade e realização de homens e mulheres trans que se recusam a virar estatísticas tristes e alcançam seus sonhos.

Dan Kaio e a academia

Dan Kaio Souza Lemos, 43 anos, é antropólogo; mestre em antropologia; professor universitário; escreveu e publicou um livro; teve sua história contada no documentário Transversais, lançado na Netflix, tem um currículo lattes de dar inveja e é um homem trans.

O cearense sempre gostou de ler, escrever e estudar, mas largou os estudos aos 14 anos. Ele se sentia diferente, não se via como homem ou mulher e viveu situações impostas pelo seu gênero designado no nascimento que o feriam profundamente.

Suas características físicas, dentro de uma visão hegemônica do que a sociedade considera ideal, como a pele branca, olhos claros e cabelos lisos, o colocaram em uma posição de "rainha da escola", o que causava um intenso desconforto.

"Aos 10 anos, comecei a questionar roupas e certos comportamentos relacionados a gênero. Não sabia o que é ser trans ou não, mas questionava esses papéis e perfomances impostas dentro da binariedade".

O sofrimento que passava no cenário escolar enquanto era sempre colocado em um papel que não sabia viver ou interpretar e se tornando alvo comentários, deboche e discriminação quando se comportava e se colocava fora desse padrão, fez com que saísse da escola e deixasse de lado uma parte importante de si mesmo, a que gostava de estudar, questionar e entender o mundo.

Há cerca de nove anos, Dan Kaio encontrou uma pessoa que o incentivou a voltar para os estudos. Nesse período, terminou o ensino médio por meio da Educação de Jovens e Adultos (EJA), começou a primeira graduação e conquistou uma série de diplomas, cursos e especializações. Hoje, dá aulas na Universidade de Brasília (UnB), onde está cursando seu doutorado.

Dan Kaio ressalta que as dores fazem parte da sua vivência, mas a felicidade também. A resistência é exercitada todos os dias. Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A. Press Brasília- DF
Dan Kaio ressalta que as dores fazem parte da sua vivência, mas a felicidade também. A resistência é exercitada todos os dias. Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A. Press Brasília- DF(foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A. Press)

"Sofri várias situações de violência dentro da educação, mas resisti a tudo isso. Eu poderia ter deixado de estudar, senti a vontade de abandonar tudo em alguns desses momentos. Poderia ter virado uma estatística de suicídio, como acontece com tantos outros", lamenta.

Dan ressalta que seu potencial, tudo que ele aprende, ensina e traz como contribuição para a comunidade, poderia ter se perdido ou nunca existido em função da transfobia, da discriminação que o afastou da academia por tantos anos.

"Sei a minha potência e a de tantas outras pessoas trans que merecem e precisam ocupar esses espaços. O que nos prende e nos impossibilita são essas violências que vivemos diariamente".

Hoje, realizando o sonho de se tornar doutor, Dan Kaio se enxerga como uma pessoa feliz. Trilhando o caminho para um doutorado sanduíche no Canadá, sente-se honrado por poder ser uma referência para jovens trans e para outras pessoas que têm seus sonhos afastados em função da discriminação.

O antropólogo ressalta que as dores fazem parte da sua vivência, mas a felicidade também. Resistir não é fácil, mas ele garante que o faz todos os dias, em nome não só da própria felicidade, mas da de outras pessoas também.

"Não podemos esquecer que existe a dor de ser trans, mas mais forte ainda, existe o prazer de ser quem somos. De pertencer, de desconstruir para construir, de ser. E esse prazer em ser é uma forma de felicidade", completa.

Daymon e a paternidade

Muitas crianças e jovens, quando sofrem com a violência e o abandono por parte dos pais, ou de um deles, costumam ter um sentimento de dicotomia sobre família, quando chegam à vida adulta. Ao mesmo tempo em que desejam ter os próprios filhos e fazer tudo diferente, há o medo de não conseguir escapar dos padrões tóxicos de comportamento e repetir comportamento dos próprios pais.

Daymon, Xandú e o orgulho de ser ele mesmo
Daymon, Xandú e o orgulho de ser ele mesmo(foto: Arquivo pessoal)

 

Vivendo com essa dúvida, quando refletia sobre ter ou não filhos, o então estudante e gerente Daymon Luiz Cruz Gomes, 23, foi pego de surpresa quando se descobriu gestante. “Ser pai era um sonho, sempre foi, mas tinha aquele medo de não conseguir ser o que gostaria para minha família, então eu ainda não planejava nada”, conta.

Apesar do medo, inclusive pelo fato de ele e a mãe da bebê, uma mulher trans, não estarem mais juntos, Daymon revela que seu “pedacinho de gente”, a recém-nascida Xandú Nayá Cruz Gomes, é a realização de seu maior sonho, o motivo que o faz acordar de manhã. Embora não estejam mais em um relacionamento romântico, os dois pretendem criar Xandú cercada de todo o amor e suporte familiar.

Ela nasceu em 11 de janeiro, e Daymon conta que, apesar de toda a felicidade, passou por momentos complicados sendo um homem trans gestante. No início, a ansiedade antes das consultas era grande e ele chegou a perder alguns exames por receio de sofrer transfobia.

Ele começou a procurar uma estratégia que o fizesse se sentir mais confortável e dentro do posto de saúde onde fez o pré-natal, percebeu que o diálogo seria sua melhor opção. Considerando as pessoas que não o trataram de uma maneira ideal por falta de conhecimento e costume, não por puro preconceito e intolerância, ele escolheu ter mais paciência.

“É muito pessoal, mas eu decidi ensinar como eu queria ser tratado. Pensei também no próximo homem trans que chegasse ali buscando atendimento, os profissionais estariam melhor preparados para ele”, comenta.

Daymon e a filha, Xandú: a realização do sonho da paternidade e da família
Daymon e a filha, Xandú: a realização do sonho da paternidade e da família(foto: Fotos: Arquivo pessoal)

“Depois da transição, comecei a me amar”

Com uma infância turbulenta em diversos aspectos, Daymon era um jovem tímido e que demorou um pouco para se concentrar em si mesmo e enfim entender e aceitar quem ele era. Aos 13 anos, ganhou um livro e se encantou com a filosofia. Ali, começou a se dedicar aos estudos e a arte, escrevia poesias, lia bastante e começou a participar de batalhas de rima. Decidiu que seria professor.

Mesmo muito desencorajado pelo meio em que vivia, Daymon passou na Universidade de Brasília (UnB) e começou a cursar filosofia. A transfobia e a solidão o levaram a deixar o curso. “Eu ainda vivia um processo de me entender, me conhecer e aquilo tudo me atingiu demais”, lembra.

Trabalhando e estudando por conta própria, ele continuou buscando compreender sua identidade. Daymon conta que viveu dois momentos diferentes no que se refere ao seu reconhecimento como um homem. O primeiro foi ainda bem jovem, quando se via como um garoto, mas vivia o conflito de “não poder ser um garoto”.

“Eu ainda não entendia o conceito do que é um homem trans, só sentia aquele conflito de achar que eu não podia ser quem eu sentia que era. Só mais velho, tendo contato com pessoas trans nos bares em que trabalhava é que me entendi melhor”, lembra.

Daymon demorou a se sentir confortável para se abrir sobre o assunto, mas quando conversou com dois amigos próximos, também homens trans, se sentiu mais seguro. De um deles, o estudante ganhou um binder — tipo de faixa ou colete usado para prender o tecido mamário e dar aparência mais reta e lisa a região peitoral —, que experimentou assim que chegou em casa.

"Superfeliz e empolgado, coloquei o binder, fiquei em frente ao espelho e chorei igual a um bebê. Eu finalmente estava me vendo, me enxergando como eu sou, como eu me sinto. Ali, decidi que estava na hora de ser eu mesmo, sem me esconder”, lembra.

No mesmo momento, Daymon saiu do quarto e perguntou se a irmã achava que ele estava “bonitão” e se notava algo diferente. Mostrando o binder, ela disse que estava retinho, Daymon chorou com o acolhimento da família. A partir daí, o jovem passou a verbalizar e viver sua identidade.

Esse processo e a transição de Daymon começaram em setembro de 2021. A saúde mental do jovem passou por uma enorme mudança na época. “Percebi que tinha deixado o mundo me fazer desistir de mim e depois da transição eu comecei a me amar e ver uma perspectiva de vida nova”.

A gestação foi o empurrãozinho extra que Daymon precisava. Voltou para a faculdade e hoje estuda direito. Seu sonho profissional é ser um agente transformador, no que diz respeito aos direitos das pessoas trans.

Enriquecimento cultural e sucesso na carreira

Para quem é sociável, poder interagir com variadas pessoas, conhecer o mundo e conviver com outras culturas são fontes de grande desejo. Amanda Almeida, 25, não apenas se reconhece em tais características, como também realiza esses sonhos, sua maior conquista. Formada pela Universidade de Brasília, a antropóloga sempre almejou viajar e se conectar com o diferente. Não imaginava, porém, que a oportunidade viria por meio do trabalho.

Residindo em Mumbai, na Índia, é consultora de negócios em uma firma. Antes, planejava atuar com pesquisa acadêmica, até participar de uma palestra da empresa na faculdade e arriscar-se no processo seletivo. Aprovada, está há dois anos na instituição. Quando passou pela transição, inclusive, estava empregada há somente quatro meses. Apesar de receber o suporte esperado no local, decepcionou-se ao perceber o quanto as pessoas ainda não estavam acostumadas a lidar com transexuais no ambiente corporativo.

“Muitas vezes, fui a primeira pessoa trans com quem meus colegas interagiram. Aconteciam situações que me deixavam desconfortável, mas sei que não vinham de um lugar de maldade, mas, sim, da falta de conhecimento e de convivência”, ressalta. Foi preciso, então, ocupar seu espaço e fazê-los habituarem-se à sua existência. Hoje, já se sente bastante confortável, mas alerta que essa falta de convívio em ambientes de trabalho, no geral, se deve especialmente à exclusão da população transgênero de empregos formais.

Desenvolver-se em seu emprego, permitiu à Amanda realizar um sonho antigo: viajar o mundo
Desenvolver-se em seu emprego, permitiu à Amanda realizar um sonho antigo: viajar o mundo(foto: Arquivo pessoal )

 

Por este e outros motivos, que Amanda tem a ambição de um dia ocupar uma posição de poder em algum órgão público ou do Terceiro Setor. Para ela, uma boa gestão é capaz de promover mudanças significativas, não apenas relacionadas à comunidade LGBTQIAPN+, mas com o poder de gerar impacto direto na vida de todas as pessoas. E, mesmo que fisicamente distante, há valores aprendidos em casa dos quais não abre mão e carrega consigo em todas as suas iniciativas, como o da gentileza, considerado por ela essencial em qualquer relação.

Também do lar, está a sua maior inspiração, a mãe, que criou ela e o irmão sozinha. “Se eu tivesse que fazer metade do que ela fez, não daria conta. Ela é minha motivação, pois me lembra, todos os dias, que vim de uma mulher incrível e, portanto, preciso ser incrível também”, conta. Extrovertida, adora fazer amigos e, entre tantos passatempos, elege o jogo de videogame como o seu preferido, principalmente Pokémon e aqueles da Nintendo. Reconhece, entretanto, ser um ambiente, ainda, bastante machista e transfóbico.

Questionada sobre o que as pessoas cisgêneros podem fazer para colaborar com o movimento T, a antropóloga cita tornar o ambiente de trabalho mais confortável para esses indivíduos, de forma que elas possam mostrar suas melhores versões. Marcar um happy hour em um bar seguro e convidativo para estes colegas, por exemplo, já faz a diferença. Um exercício interessante é sempre pensar: será que esse lugar é agradável para essa pessoa ou será que tal fala faz-a sentir bem?

"A psicologia me salvou. É nela onde encontro apoio"

No consultório do psicólogo Ângelo Rafael, 32 anos, há uma bandeira representativa da comunidade transgênero orgulhosamente disposta sobre sua mesa. “Presente de um paciente”, recorda-se, com alegria. A satisfação não é em vão, nem se refere somente ao mimo. É que desde o início da transição, há quase um ano, foi no trabalho onde mais recebeu apoio, especialmente durante os atendimentos.

A reação positiva dos pacientes foi uma surpresa, visto que temeu perder essa conexão, caso houvesse estranhamento por parte deles. Aos poucos que “sumiram” neste meio tempo, o profissional é positivo e encara como uma espécie de “filtro”, além de identificar-se com a ideia, lhe dita certa vez, de que “as energias tendem a nos aproximar dos pacientes que a gente precisa ou daqueles que a gente merece”.

Em muitas sessões, escuta histórias de medo, dúvidas, descobertas e autonomia e, em tamanha relação de confiança, é impossível não reconhecer-se no outro. A troca é engrandecedora, também, para quem ajuda a curar. Hoje, seu maior público é composto por mulheres cisgêneros e por pessoas trans, muitos que conheceram seu trabalho por meio do perfil no Instagram @transnaomono, desenvolvido em formato de diário para explorar temas como sexualidade, gênero e não monogamia.

Nas redes, foi onde sentiu-se mais confortável para se assumir, a primeira vez, como bissexual, e a segunda, como transexual. “Saí do armário duas vezes e de fora para dentro de casa. Foi muito difícil contar, especialmente, para minha mãe. Para as minhas irmãs mais novas, de outra geração, foi até engraçado, pois elas encararam com total naturalidade, mesmo diante do meu nervosismo”, lembra. Na própria psicologia, lamenta que o tema da transexualidade não seja estudado com a devida profundidade, dado que a área ainda apega-se demasiadamente a antigas teorias.

Sair da escola e entrar para a graduação de psicologia foi, para Ângelo, um alívio e, consequentemente, a cura de muitos processos. Ele está há dez anos na profissão
Sair da escola e entrar para a graduação de psicologia foi, para Ângelo, um alívio e, consequentemente, a cura de muitos processos. Ele está há dez anos na profissão(foto: Arquivo pessoal)

 

Episódio digno de comemoração

Apesar de celebrar seu aniversário nos primeiros dias de janeiro, Ângelo teve o prazer de reviver certo sentimento de “renascimento” ao retificar seu nome de registro na semana passada. Antes, já assinava com o nome social, mas, agora, optou pela mudança em cartório. E, diferentemente do que pensam, foi um processo bastante simples e acessível.

Aos interessados, basta ir ao cartório onde houve o registro de nascimento; solicitar a retificação do pré-nome e do sexo; confirmar a lista de documentos necessários para o trâmite (certidão de nascimento, RG, CPF, título de eleitor e comprovante de endereço são indispensáveis, mas outras documentações, como a emissão do Nada Consta, podem ser pedidos); tirar cópia destes registros (não é necessário autenticar); fazer o pedido à mão; pagar uma taxa de R$ 10; e, por fim, aguardar.

Para complementar a lista de realizações, o psicólogo comemora os efeitos positivos da hormonioterapia com testosterona, iniciada há nove meses. Novamente, a realidade tem sido bem mais leve do que imaginava. Sente-se mais confiante, mais forte e já percebe, no corpo, alguns resultados, como a alteração da voz, o aumento dos pelos e o surgimento de barba. “Sendo eu, de fato, me sinto muito feliz”, conta. Ademais, saber que existem profissionais capacitados para atender a suas demandas lhe tranquiliza e traz segurança.

O planejamento de vários projetos pessoais e profissionais é reflexo desse entusiasmo. Atualmente, está escrevendo um livro, em parceria com outra psicóloga, sobre o manejo de pessoas trans em consultórios. Foi convidado, também, para realizar o treinamento de um grupo de funcionários de um restaurante, visando ensiná-los a tratarem corretamente esse público, após sentir-se ofendido no local. E, mais para frente, pretende produzir uma obra autobiográfica. A quem é cisgênero, deixa o recado: “Valide o nosso nome e pronome; nos ajude a conquistar espaços. Seja nosso aliado”.

A importância da saúde mental

“As estatísticas em saúde mental demonstram que a comunidade LGBTQIAPN+ tem níveis mais altos de depressão e ansiedade que a comunidade não LGBTQIAPN+, por exemplo. 40% dos jovens trans tentam o autoextermínio até os 20 anos de idade. E isso se deve à falta de acolhimento, de suporte afetivo e à alta taxa de exclusão da família e da sociedade, à não aceitação por parte dos pais e amigos, professores e figuras de referência. Some-se a isso os discursos religiosos de ódio e rejeição, em espaços que deveriam ser de acolhimento e amorosidade. Isso explica porque as pessoas LGBTQIAPN+ levam tanto tempo para se amarem e validarem os próprios afetos, desejos e identidades. Autoafirmar-se num contexto, ainda, marcado pelo preconceito é uma forma de resistência que interfere diretamente na saúde emocional dessa população. Quem se sente livre para expressar a sua identidade e o seu amor estabelece relações afetivas saudáveis, de crescimento e de respeito ao outro."

Andrei Moreira, médico especializado em homeopatia e terapeuta de constelação familiar formado pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais.

Personalidades do universo T para conhecer e se inspirar

Erika Hilton: deputada federal eleita pelo PSol-SP. Um símbolo de representatividade e esperança. Travesti e vereadora em São Paulo, foi a mulher mais bem votada em todo país no ano de 2020. Além disso, é a primeira mulher trans eleita para a Câmara Municipal Paulistana, com mais de 50 mil votos. É ativista dos Direitos Humanos e luta pela causa LGBTQIAPN+, a favor de menos discriminação e preconceito contra a comunidade.

Valentina Saluz: Sucesso como modelo internacional, é diretora executiva de uma agência de comunicação, em Paris. Apesar do início nas passarelas, migrou para a área das mídias sociais e trabalhou como olheira em Milão, na Itália. Hoje, com apenas 24 anos, exerce o cargo na Nexxt Communications enquanto trabalha em projetos de visibilidade mundial.

Laerte: uma das cartunistas mais conhecidas do país. Também é roteirista e apresentadora, além de ter sido tema do primeiro documentário original da Netflix no Brasil, chamado “Laerte-se.

Laerte (para o box)
Laerte (para o box)(foto: Divulgação)

 

Liniker: Uma das maiores vozes no cenário da música brasileira atualmente, sem sombra de dúvidas, é a atriz e cantora transexual Liniker. Ex-integrante da banda Liniker e os Caramelows, a artista de 27 anos se consolidou nos gêneros soul e black music, sendo considerada uma potência absoluta e promissora da indústria musical. Entre as canções mais conhecidas e de grande sucesso estão Zero e Baby 95.

Jaqueline Gomes de Jesus: psicóloga, professora universitária e ativista, foi a primeira gestora do sistema de cotas para negros da Universidade de Brasília. É presidenta da ABETH — Associação Brasileira de Estudos da Trans-Homocultura.

Tifanny Abreu: primeira atleta transexual a atuar na Superliga de Vôlei brasileiro, defendendo o Bauru. Hoje, joga pelo Osasco, nas posições de oposto e ponteira.

Tifanny Abreu (para o box)
Tifanny Abreu (para o box)(foto: Reprodução: Instagram)

Filmes e séries para acompanhar

Série Pose (box)
Série Pose (box)(foto: Divulgação )

 

Pose: premiada série americana, criada por Ryan Murphy, que retrata uma Nova York do final da década de 1980, marcada pela ascensão da cultura de luxo e o surgimento dos bailes LGBT. Disponível no Star+.

Tomboy: longa independente que conta a história de Laurie, uma menina de 10 anos em crise de identidade após se passar por garoto para fazer amizades. Disponível no Telecine Cult.

Filme Tomboy (box)
Filme Tomboy (box)(foto: Divulgação )

 

Manhãs de Setembro: Liniker interpreta Cassandra, uma mulher trans que decide viver longe de sua cidade natal. No entanto, a busca pela independência esbarra em um filho de um relacionamento do passado. A série conta com duas temporadas e está disponível no Prime Video.

Uma Mulher Fantástica: Marina, uma mulher transgênero, é confrontada pelos parentes do seu falecido marido, que lhe tratam com preconceito e desconfiança. Daniela Vega, responsável por interpretar a protagonista, se tornou a primeira pessoa transgênero na história a apresentar a cerimônia do Oscar, em 2018. Disponível na Netflix.

Uma Mulher Fantástica
Uma Mulher Fantástica(foto: Fotos: Divulgação )

A Morte e a Vida de Marsha P. Johnson: documentário que mostra o legado da política Marsha P. Johnson, estrela da TV Americana, encontrada morta em 1992, com indícios de suicídio. O longa mostra como sua amiga e ativista Victoria Cruz investiga sua morte, dado que, para os mais próximos, ela foi assinada, justamente em uma época na qual a violência contra a comunidade trans crescia. Disponível na Netflix. 

*Estagiária sob a supervisão de Ailim Cabral

 

fonte: https://www.correiobraziliense.com.br/revista-do-correio/2023/01/5068863-mes-da-visibilidade-trans-a-dor-e-a-delicia-de-ser-o-que-e.html


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Lia Zanotta

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Nesses tempos de mares conturbados não há calmaria, não há possibilidade de se esconder dos conflitos, de não cair nos abismos das acusações e divisões sobretudo frente a certos problemas que a vida insiste em nos apresentar. O diálogo, a compreensão mútua, a solidariedade real, o amor ao próximo correm o risco de se tornarem palavras vazias sobretudo na boca dos que se julgam seus representantes.

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