Não há como se falar do PL 1.904/2024 sem o recorte racial. Caso seja aprovado, serão as mulheres negras as que mais vão responder com penas que podem chegar a 20 anos
Com uma manobra inesperada e uma votação relâmpago que durou 23 segundos, foi aprovado, na noite do último dia 12, na Câmara dos Deputados, a tramitação em regime de urgência do Projeto de Lei nº 1.904/24. A proposição legislativa equipara o aborto ao crime de homicídio e está sendo conhecido também como PL da Gravidez Infantil. O projeto foi apelidado dessa forma porque, segundo levantamento do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2022, foram registrados 73.024 mil estupros, sendo que as meninas eram as maiores vítimas.
Nesse cenário, 70% dos casos foram cometidos contra crianças de até 13 anos. Assim sendo, por hora, quatro ocorrências de estupro contra menores são registradas. Dessas quatro ocorrências, duas vítimas engravidam. Além disso, em 2019, cerca de 72 gestações foram interrompidas legalmente em crianças até 14 anos. A cada ano, mais de 20 mil meninas se tornam mães no país.
A preocupação com crianças é legítima e urgente, mas é necessário elucidar que não são somente essas as únicas vítimas a serem atingidas caso esse projeto de lei seja aprovado. É preciso evidenciar o recorte racial e explicitar o grande risco que meninas e mulheres negras encaram.
Segundo pesquisa da Vital Strategies, foi revelado que 75% das vítimas de violência física e sexual são mulheres. Mas as negras, mulheres pretas e pardas, são afetadas em dobro. Além disso, a depender da região, há a possibilidade de essas mulheres racializadas correrem mais risco de sofrerem violência. Para chegar a essas informações, foram analisados 1 milhão de dados no Sistema de Informações de Agravos de Notificações (Sinan), do Ministério da Saúde, entre 2015 e 2022, de mulheres que deram entrada no Sistema Único de Saúde (SUS).
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública que coleta os dados por boletins de ocorrência, divulgou, em 2021, que 52% das mulheres que sofreram violência sexual eram negras, já a pesquisa supracitada encontrou o percentual de 60%, o que nos leva a entender que mulheres negras sequer procuram a delegacia para denunciar, dando entrada unicamente no SUS e somente quando precisam de cuidados.
É necessário considerar nesse contexto que, caso haja aprovação dessa lei, serão as mulheres negras as que mais vão responder com penas que podem chegar a 20 anos — maior do que a que o próprio estuprador poderá receber. O Brasil é o terceiro país do mundo que mais prende mulheres, sendo as mulheres negras 64% do total de encarceradas. Entre 2000 e 2016, houve um aumento de 455% no encarceramento feminino; em 2018, havia um deficit de 15.300 vagas para acolhimento dessas mulheres; e, em 2024, com a aprovação desse projeto de lei, arriscamos vivenciar um novo boom prisional de mulheres, sobretudo de mulheres negras.
Em se tratando sobre o estupro infantil, o Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil, organizado pela Unicef, mostrou que, a partir dos 5 anos, são as meninas negras as maiores vítimas de estupros. Já segundo o Observatório do Terceiro Setor, o Brasil ocupa o segundo lugar no ranking mundial de exploração sexual de jovens e crianças, com cerca de 500 mil vítimas anualmente, sendo as meninas negras 75% da totalidade desse número. Esse tipo de crime não somente inclui estupros, mas também agressões físicas, infecção por doenças sexualmente transmissíveis e possíveis gravidezes, que só serão descobertas tardiamente e, em alguns casos, quando descobertas, elas não terão acesso ao serviço de saúde.
Não há como se falar do PL nº 1.904/2024 sem o recorte racial, visto que serão as mulheres e as meninas negras as mais atingidas caso exista um dispositivo legal que limite a possibilidade de aborto pós-estupro e que equipare a pena do procedimento à de homicídio. Aprovar esse projeto de lei é revitimizar corpos que já são vítimas da sociedade desigual, racista e patriarcal, em que homens tentam exercer seu poder sobre nossos corpos, incluindo homens em cargos de poder, de terno e gravata, dentro do Congresso Federal, que deliberam um futuro de horror em que mulheres serão obrigadas a carregarem filhos dos seus estupradores.