Associada da Sociedade Floresta Aurora há 48 anos, a advogada Maria Eunice da Silva carrega parte da história do povo negro de Porto Alegre
Uma herança de seus ancestrais. É assim que a advogada Maria Eunice da Silva considera a Sociedade Beneficente Cultural Floresta Aurora, o clube negro mais antigo do Brasil. Fundado em 1872, como diz o seu slogan, “mais antigo que a liberdade”. É a responsabilidade de respeitar e honrar essa herança que a advogada conduziu quando foi a primeira presidente da entidade entre 2010 e 2014 e que ainda carrega como integrante do conselho deliberativo. Uma responsabilidade, que, nos últimos 48 anos, se confunde com a sua própria trajetória, como conta.
Maria Eunice recebeu a reportagem do Sul21 em seu apartamento na Av. Venâncio Aires na última semana, em que se comemora o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. Nas paredes, diversas fotos do período em que carregou o estandarte do clube em carnavais dos anos 1980.
Filha de uma trabalhadora doméstica, Maria Eunice foi a primeira de sua família a cursar o ensino superior quando ingressou na Faculdade de Direito a UFRGS, em 1971. “Na época, não tinha cotas, mas o colégio público tinha uma bela formação e eu passei no vestibular, que eram bem puxado. Ao se formar, trabalhou em diversos setores do serviço público, até se aposentar como auditora fiscal da Receita Federal.
Foi no Direito que conheceu o hoje advogado, escritor e jornalista Antônio Carlos Côrtes. De trocarem palavras nos corredores da faculdade, surgiu o convite de Côrtes para que Maria Eunice se tornasse sócia da Sociedade Floresta Aurora, da qual ela passou a fazer parte em 1975. Em 1977, faria parte da diretoria no biênio 1977-1979, comandada por Côrtes.
No início daquela década, em 1971, o que Maria Eunice só iria descobrir mais tarde, o Floresta Aurora teria um papel importante nas articulações que levariam à criação do Dia da Consciência Negra. Côrtes, colegas do Floresta e figuras como o poeta Oliveira Silveira formaram o Grupo Palmares, que propunha que o 20 de novembro viesse a substituir a celebração do 13 de maio, dia da abolição da escravatura. Abraçada pelo movimento negro posteriormente, a data viraria no governo de Dilma Rousseff o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra.
“Eu não sabia que, naquela época, eles e mais um grupo se reuniam na Esquina Democrática e elegeram o 20 de novembro como Dia da Consciência Negra”.
Ela conta que, na época, o grupo não chegou a ser tratado como subversivo pela Ditadura Militar, mas era observado pela Polícia Federal, o que resultava na obrigação do próprio Floresta Aurora de sempre informar as autoridades sobre o horário e a programação de seus eventos, mesmo bailes sem conotação política.
A luta pela defesa do povo negro faz parte da gênese do Floresta Aurora. Dezesseis anos antes da abolição, negros alforriados começaram a se reunir na sociedade, que, em 1873, estabelecera-se em uma sede na esquina das ruas Floresta e Aurora (hoje Barros Cassal), no bairro Floresta. Uma das primeiras ações da entidade foi auxiliar a dar enterros dignos a negros cujo destino mais provável seriam as valas comuns e prestar assistência a viúvas e filhos.
A instituição, contudo, também teria, desde sua criação, o objetivo de ser um espaço de lazer e diversão para um segmento da população que não era aceito em outros espaços de Porto Alegre. Isso se vê já em 1874, quando realiza o seu primeiro baile de Carnaval. O social e o político, portanto, permeiam os mais de 150 anos, completados em 2022, do Floresta Aurora.
Foi por essa instituição que Maria Eunice aprendeu a se apaixonar e, ao integrar sua direção, a entender. “Eu vejo o Floresta Aurora como uma herança. Os ancestrais fundaram e nós devemos continuar. Eles enfrentaram mil dificuldades, se reuniam escondidos, não podiam fazer reuniões.”
Ela lembra que não era muito conhecida internamente em seus primeiros anos na gestão da instituição, por isso ficava mais quieta nas reuniões. Ainda assim, recorda uma frase de um dirigente que a marcou. “Aqueles negrinhos que fundaram o Floresta Aurora há 100 anos, fizeram muito mais do que nós, porque eles não tinham nada, era só a vontade, a união e a persistência. Nós agora temos casa própria, somos livres, e ficamos discutindo o sexo dos anjos’. Eu nunca esqueci. Aquela frase me deixou tão marcada que eu comecei a ver o Floresta Aurora com outros olhos”.
Uma história rica, mas também de dificuldades e que, de certa forma, se confunde um pouco com a história do povo negro de Porto Alegre. Pois, da origem em uma região central da cidade, viria uma história marcada por mudanças para locais cada vez mais distantes.
Em 1911, por exemplo, foi erguida uma nova sede, na Rua Lima e Silva, bairro Cidade Baixa. Em 1969, ocorre a mudança para a Rua Curupaiti, no bairro Cristal. Em 1999, nova mudança, dessa vez para a Av. Cel. Marcos, na Pedra Redonda. Por fim, em 2013, a mudança para a sede atual, na estrada Afonso Lourenço Mariante, no bairro Belém Velho.
Foi justamente na época da última mudança que o destino do Floresta Aurora foi diretamente impactado por Maria Eunice. Entre períodos mais ou menos difícieis, a instituição conviveu por décadas com problemas financeiros. Nos anos 1980, quando era advogada da sociedade, encontros na sala de seu apartamento foram realizados para discutir soluções para as dificuldades financeiras da sociedade.
No final da primeira década do século, contudo, o risco de falência passaria a ser eminente. A dívida da instituição estava na casa dos R$ 300 mil (em valores da época), dos quais R$ 150 mil deveriam ser pagos a curto prazo, o que ameaçava a sede da Pedra Redonda de ser levada a leilão.
Após passar por diversos cargos em direções anteriores, em 2010 havia chegado a vez de ela ser presidente. “Na situação em que a sociedade estava, não tinha muita escolha, era eu ou eu”.
Era a primeira mulher a assumir a tradicional instituição, mas a situação não era fácil. Foi aí que Maria Eunice decidiu tirar, do próprio bolso, os cerca de R$ 150 mil necessários para pagar as dívidas de curto prazo e evitar o leilão. “Perder o imóvel na minha mão, iam dizer o quê?”
Mas as dívidas continuariam e a própria Maria Eunice precisava receber o ressarcimento de seu investimento pessoal. A saída, portanto, seria vender a sede e comprar outra. Movimento que foi influenciado, também, por uma ação judicial movida pelo condomínio lindeiro contra o que alegava ser o barulho excessivo nas festas promovidas no Floresta Aurora.
Maria Eunice lembra de duas propostas de compra que recebeu. Na primeira, um homem, antes mesmo de se identificar, entrou na sede administrativa da sociedade perguntando, para Maria Eunice, “o que tu é daqui?” Nem sequer tinha se apresentado.
A presidente achou o homem mal-educado. Quando ele anunciou o motivo da visita, o interesse na compra do imóvel, estipulou um preço três vezes maior do que o de mercado. “Eu não queria vender para ele, nem que ele me desse dinheiro à vista. Achei um desaforo ele chegar daquele jeito”.
A segunda proposta recebeu de uma mulher, bem mais educada, que representava uma construtora interessada em transformar o imóvel em um condomínio horizontal de casas, à semelhança de imóveis vizinhos. A proposta, contudo, era de que fosse realizada uma troca por duas casas no novo empreendimento, que poderiam ser vendidas. “Eu não podia fazer isso”. Ao sair, conta Maria Eunice, a mulher reconheceu a posição da presidente e lembrou que, em outras ocasiões, negócios semelhantes foram fechados.
O negócio sairia em 2013, mediado por uma imobiliária, que permitiu a troca pelo terreno da atual sede, recursos para ressarcir Maria Eunice e destinar ao pagamento de outras dívidas.
Na nova sede, diz, conseguiram manter os eventos ativos e mesmo fazer um caixa. O novo espaço conta com uma sede administrativa com restaurante, salão para festas, paiol onde são realizados churrascos e duas piscinas. “Eu já ouvi que essa é a melhor sede que o Floresta já teve”, diz, orgulhosa.
Ao longo dos seus agora mais de 150 anos, a Sociedade Floresta Aurora se configurou num espaço seguro e aberto para negros se reunirem, conversarem e se divertirem. As fotos de antigos carnavais na parede de Maria Eunice comprovam parte dessa história. Hoje, não faz, nem poderia, distinção racial para novos associados.
Contudo, o mundo e a juventude mudaram. Já não existem, ao menos oficialmente, espaços do tipo voltados apenas para brancos. Além disso, se antes, como Maria Eunice conta, os Bailes do Chopp na sede do Cristal eram procurados ao ponto de precisar fechar as portas da sede para evitar superlotação, agora a juventude já não vê mais espaços como esse como destinos de lazer. “O jovem não procura uma sociedade, procura um lugar para se divertir, uma choperia. Como não existe mais a diferenciação, não têm a necessidade que os jovens que fundaram e do meu tempo tinham”.
O Floresta Aurora conta com cerca de 4 mil sócios, dos quais cerca de 150 são pagantes mensais, segundo Maria Eunice. Uma turma formada por pessoas acima de 50 anos. O desafio posto, portanto, é rejuvenescer o perfil dos associados.
Nos meses de verão, o número de sócios cresce, motivado pelo interesse de moradores de bairros próximos em frequentarem suas piscinas. Contudo, encerrada a temporada de piscinas, esse público não permanece e não se envolve no restante das atividades da instituição.
Os carnavais de rua do bloco “Os Intocáveis”, fundado em 1967, ajudam a espalhar a imagem da instituição nos últimos anos, mas também não resultaram na conversão de novos associados.
Maria Eunice olha para as novas gerações de jovens negros que passaram a ocupar espaços nas universidades, movimento que também ajudou no aumento do interesse pela memória do Floresta Aurora, como possíveis novos sócios. Também acredita que atividades esportivas e sociais para mais jovens, ainda em idade escolar, possam ajudar a formar novos sócios no futuro. Em 2022, por exemplo, foi realizado um campeonato de xadrez com jovens de três escolas da cidade.
“Se as pessoas sem liberdade passaram horrores para construir uma sociedade, porque nós agora não podemos seguir e honrar isso?”
fonte: https://sul21.com.br/noticias/geral/2023/07/historias-negras-a-primeira-presidente-do-clube-negro-mais-antigo-do-brasil/