Quase lá: Teatro Preto: sobre nós, por nós, para nós, perto de nós

Espetáculo 'A Empregada da Sufragista' foi apresentado no dia 13 de setembro na Ceilândia

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Brasil de Fato
 
Espetáculo 'A Empregada da Sufragista' foi apresentado no dia 13 de setembro na Ceilândia. - Foto: Reprodução/Humberto Araújo
Pega o que você tem e vá ajudar seu formigueiro, ele vai te recompensar.

Na última temporada do seriado 'Vikings' uma cena me chamou bastante a atenção: um lugar inóspito com pessoas passando fome quando uma enorme baleia encalha na praia. Agora aquela pequena comunidade terá comida, combustível e meios de sobreviver por mais algum tempo. 

No entanto, a terra havia sido dividida entre os moradores e a baleia encalhou dentro da propriedade de um dos personagens que declara que aquele animal, com capacidade para abastecer a vila inteira, seguirá apodrecendo na praia enquanto ele e sua família decidem como lucrar com “o presente dos deuses”.

Como não poderia ser diferente, brigas e mortes se sucedem culminando no embarque desesperado de uma parte das pessoas em pequenas embarcações. Depois de passar fome e lidar com mais mortes, aquele grupo de vikings encontra uma terra de fartura onde são bem recebidos e cuidados pelos nativos. Mesmo assim, a ganância do homem branco saqueou e vitimou um nativo logo nos primeiros dias.

Hoje inicio minha coluna com essas imagens por ilustrarem uma história que conhecemos bem: propriedade privada, acúmulo de bens em detrimento da sobrevivência de iguais e ganância acima da vida. Com a ajuda do psiquiatra e filósofo político Frantz Fanon, publicado no livro 'Pele Negras, Máscaras Brancas', me explico: 

“Quando se trata de compreender porque o europeu, o estrangeiro, foi chamado de vazaha, isto é, ‘honorável estrangeiro’, quando se trata de compreender porque os europeus naufragados foram acolhidos de braços abertos, porque o europeu, o estrangeiro, não foi jamais considerado como um inimigo – em vez de partir da bondade, da benevolência, da polidez, traços fundamentais daquilo que Césaire chama de ‘antigas civilizações corteses’, nos dizem que assim é, simplesmente, porque estava inscrito nos ‘hieróglifos fatídicos’ – no caso, o inconsciente – algo que fazia do branco o senhor esperado”.

Em outras palavras, a partir de um complexo de superioridade, um entendimento da branquitude como “divina”, os povos europeus em contato com povos amistosos, encontrando abundância nos continentes vizinhos, recorreram repetidas vezes ao genocídio e escravidão das populações nativas tal qual o modelo Viking, aclamada cultura ancestral nórdica, famosa por seus guerreiros sanguinários que invadiam terras, roubavam e matavam nativos. Seu ideal de paraíso, sendo um campo eterno de batalha. 

Você, caro leitore, poderia alegar que as construções do passado em nada refletem os dias de hoje e eu, certamente contra argumentaria nomeando um porção de filmes e séries que foram e ainda são feitas para enaltecer a violência, a força bruta das culturas europeias, enquanto a exaltação aos povos negros e indígenas segue extremamente escassa nos meios de comunicação em massa. 

Por quê?

Simplesmente porque o objetivo do homem branco, fosse o europeu ou o viking, segue sendo o de subir nas costas da baleia rodeada por corpos humanos e gritar “a riqueza é minha, vocês que morram de fome” e nós, cercadas pela ilusão da meritocracia, que supostamente premia quem trabalha duro; cercadas pela igreja, que chama “invejoso” e ameaça com o inferno quem questiona a má distribuição; pelo capitalismo, que nos ensina na escola sobre a “ordem e progresso” mas se nega a contextualizar seu modelo desumano, colonizador, e em nada superior às sociedades não brancas, nativas de dois continentes devastados pela ganância. 


Cena do seriado 'Vikings' / Foto: Reprodução internet

Hoje a gente sabe disso, mesmo que com frequência decidamos ignorar devido a aceleração da rotina imposta pela sociedade adoecida em que vivemos.

E qual a solução?

Eu vou sempre insistir em um projeto de Revolução do Amor. A revolução pela violência vai vir, não se engane, já estamos por um fio.

Mas nós, que temos sangue africano e indígena correndo abundantemente em nossas veias, temos a memória genética de “antigas civilizações corteses” e precisamos urgentemente nos reeducar nessa direção visando amenizar as dores de hoje e de amanhã porque, mais cedo ou mais tarde, o sistema vai ruir.

As queimadas criminosas, os altos índices de doenças psiquiátricas e a própria pandemia da Covid-19 expôs e expõe nossa fragilidade frente ao capitalismo tardio. 

Assim, gostaria de contar sobre um dos projetos da minha produtora, a Lira Produções Socioculturais, executado durante o mês de setembro de 2024 no Sol Nascente, região administrativa do Distrito Federal, que, segundo dados do censo de 2022 do IBGE, ultrapassou a Rocinha (RJ) e se tornou a maior favela do Brasil. 

Em 2021, após ter contato com a organização não-governamental Vida Sol Nascente, uma instituição de distribuição de doações dirigida pela aposentada Celma Andreza, decidi buscar patrocínio da Secretaria de Cultura e Economia Criativa (Secec-DF) por meio do Fundo de Apoio à Cultura (FAC) para levar o espetáculo 'A Empregada da Sufragista', dramaturgia minha e de Gabriela Porfírio, para o local. 

O espetáculo, de autoria de duas mulheres negras, fala das dores de três mulheres negras que vivem em lugares e momentos históricos diferentes: Akotirene vive no oeste africano no século XVI, Olga nos Estados Unidos do século XIX e Olívia no Brasil de hoje. O texto traz falas e referências de grandes pensadoras negras da atualidade como Audre Lorde, Sojourner Truth, Érica Malunguinho e Angela Davis, entre outras.

Um patrocínio para o público

No entanto, com a chegada do patrocínio e o início dos ensaios, comecei a refletir sobre as ideias que trouxe acima e em quanto temos falado muito e feito pouco por nossos pares.

Aproveitando o crescente destaque do meu conteúdo nas redes sociais, decidi abrir uma vaquinha para patrocinar o público: cada pessoa presente receberia uma cesta básica para assistir ao espetáculo, assim como aprendi quando fui missionária cristã: não adianta falar de Jesus em casa sem comida.

Da mesma forma, entendi que, sem alimento para o corpo, a alma e o intelecto não têm como ser alimentadas com ideias antirracistas, e nisso meu público concordou quando em menos de 24h ultrapassou a primeira meta estabelecida de R$ 5 mil. Aumentei a vaquinha para R$ 10 mil e prometi comprar kits de material escolar com mochila, caderno, estojo, lápis de cor, etc com o dinheiro restante.

Chegou o dia da apresentação, o Centro de Ensino Fundamental e Médio (CEF 11) da Ceilândia, vizinho ao Sol Nascente, nos cedeu o espaço e, na tarde do dia 13 de setembro de 2024, nos confiou 240 alunos do 9º ano para uma apresentação seguida de roda de conversa com as atrizes, diretora - esta que vos fala - e a líder da 'Vida Sol Nascente'. 

Me posicionei na entrada da escola para receber a comunidade para a segunda sessão e indicar o caminho para o auditório. Apesar de não ser um espetáculo infantil, muitas mães levaram suas crianças, a maioria por falta de apoio, e não demorou até que um menino de, aproximadamente 8 anos de idade, me chamasse de lado: “Tia, tem alguma coisa para comer? Eu não comi nada hoje.”

Eram mais de 18h e não, não tínhamos nada que ele pudesse comer. Nossa produção preparou um voucher que deveria ser trocado por uma cesta básica na ONG, mas só no dia seguinte. Eu, tão orgulhosa das 200 cestas e 21 kits de material escolar patrocinados pelos meus seguidores, não tinha nem uma bala para oferecer para aquela criança ou para a mãe de outra criança que me abordou em seguida. 

A frase atribuída ao sociólogo Betinho nunca fez tanto sentido para mim: “Quem tem fome tem pressa”. Comentei com meu coordenador de produção, Emmanuel Queiroz, que logo saiu apressado. As pessoas continuaram chegando e perguntando sobre comida imediata e eu sem saber o que fazer.

Não demorou até chegar a notícia de que a escola tinha liberado a merenda para a comunidade: arroz, estrogonofe, purê de batata e beterraba ralada. Meu produtor explicou a situação e a escola, ciente das necessidades da comunidade, abriu as panelas. 

Não chorei porque estava corrida demais para tanto, mas no meu coração que promoveu um espetáculo preto feminino e feminista a um público de barriga cheia, ficou a comprovação de que a união entre o poder público - em forma de patrocínio para o espetáculo, uma equipe de produção disposta, centenas de seguidores fiéis - em forma de comida e material escolar, e a direção consciente de uma escola pública de periferia, puderam trazer um momento de troca, aprendizado e respiro para aquelas pessoas. 

Sei que amanhã a cesta básica vai acabar, o estojo vai rasgar e o espetáculo vai dar lugar a outros assuntos nas mentes das pessoas. Mesmo assim, o que fica para mim é a minha capacidade e a sua capacidade de, enquanto formigas se unirem a um formigueiro, ou iniciarem o seu próprio, para promover transformações coletivas.


Público de espetáculo recebeu cesta básica. / Foto: Divulgação

Sobre nós, por nós, para nós, perto de nós

Claro que cada ume está no seu corre, eu também estou. Mas um dia cansei de buscar o aval e os aplausos de um público branco, classe média que consome e paga caro por arte, e comecei a alinhar minhas ideias com a pessoa que quero ser. Dá muito medo sair do óbvio e usar as próprias mãozinhas para fazer uma coisa nova. Dá medo de ficar sozinha e sem dinheiro. Mas hoje eu sei que se o propósito tá alinhado, o universo ajuda. 

Até hoje não acredito que 177 pessoas doaram R$ 10 mil pro meu projeto, mas é verdade e não perdi nada com isso. Se antes eu tinha público, continuei tendo: meu ego de artista foi alimentado. Se antes eu recebia cachê, continuei recebendo: meus boletos estão pagos. Mas se antes recebia um público que frequenta o teatro, dessa vez fomos a primeira vez de dezenas de pessoas que foram indenizadas pelo seu tempo e, pela primeira vez, me senti de fato fazendo Teatro Preto. Segundo o conceito do sociólogo W. E. B. Du Bois,

“As peças de um teatro realmente negro devem ser: I. Sobre nós. Isto é, elas devem ter enredos que revelem a vida dos negros como realmente é. 2. Por nós. Isto é, elas devem ser escritas por autores negros que entendam, de nascimento e contínua associação, o que significa ser um negro hoje. 3. Para nós. O teatro deve dirigir-se primordialmente às plateias negras, sendo apoiado e mantido para seu entretenimento e aprovação. 4. Perto de nós. O teatro deve localizar-se num subúrbio negro, próximo à massa de pessoas comuns.”

Por fim, entendo que modelos europeus oferecem destaque a uns poucos ditos “gênios” enquanto modelos africanos e indígenas são circulares. Esta foi apenas a primeira vaquinha, muitas outras virão e meu convite pra você é o de vir com a gente! Algumas pessoas têm dinheiro, outras têm disposição, outras têm conhecimento. Pega o que você tem e vá ajudar seu formigueiro, ele vai te recompensar.

“Tudo, tudo, tudo que nós tem é nós!” (Emicida)

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* Naiara Lira é atriz, cantora e produtora cultural na capital.

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.

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Edição: Flávia Quirino

 

fonte: https://www.brasildefatodf.com.br/2024/09/21/teatro-preto-sobre-nos-por-nos-para-nos-perto-de-nos


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