Ao negar ou omitir algumas de suas principais bandeiras, parte do campo progressista deixa caminho aberto para extremistas fincarem raízes. O “curtoprazismo” eleitoral pode custar caro. É preciso pensar além para transformar o futuro
Publicado 07/06/2024 às 17:57 - Atualizado 07/06/2024 às 18:21
Evaristo Sá/AFP
Publicado originalmente na Revista Fórum
O episódio em que a deputada federal Maria do Rosário (PT-RS) votou contra o próprio governo na análise do veto do projeto que acabava com as saídas temporárias de presos é ilustrativo de um dos dilemas atuais da esquerda brasileira. Como justificativa para um posicionamento que contrariava seu histórico, a parlamentar afirmou que pretendia evitar que seu voto fosse usado como alvo de “ataques rasteiros” da extrema direita, pontuando que o veto de Lula teria sido um “equívoco”.
Difícil compreender qual o ganho político que a deputada, pré-candidata do PT à prefeitura de Porto Alegre, poderia ter com a atitude. Não só chamou mais a atenção para a questão como certamente não vai evitar que os extremistas levantem toda sua trajetória (louvável) de defesa dos direitos humanos para fomentar uma ofensiva baseada no pânico moral. Passa a impressão, corroborada por ela mesma, que se trata de uma postura com viés puramente eleitoral, o que também ajuda a desmobilizar seus apoiadores.
Mas ela não é a primeira e nem a única a reagir diante de ataques (nesse caso, nem realizados ainda) baseados na pauta moral em campanhas eleitorais. E a forma como a esquerda em geral lida com isso mostra bem um dos porquês de a extrema direita encontrar terreno quase livre para avançar com sua agenda.
O pânico moral nas eleições
Mesmo antes de ganhar um corpo mais concreto no bolsonarismo, a direita sempre instrumentalizou questões relacionadas aos direitos humanos para atacar a esquerda. Na campanha para a prefeitura de São Paulo em 2000, por exemplo, a campanha de Paulo Maluf, então no hoje extinto PPB, espalhou cartazes pela capital paulista com os dizeres “Mamãe, vote em quem nunca usou drogas” e “Mamãe, vote em quem é contra o aborto” para atacar sua adversária Marta Suplicy (PT)
“A ‘dona’ Marta nunca fez nada por São Paulo. Só defendeu a liberação das drogas e do aborto, o casamento de gays e a redução de pena para os criminosos”, disse Maluf na ocasião, em meio a outros tantos ataques pessoais e misóginos feitos contra a candidata petista. Mesmo assim, Marta derrotou Maluf.
Em 2010, a campanha de José Serra (PSDB) trouxe de forma desvirtuada o aborto como pauta para atacar Dilma Rousseff (PT), evidenciando o rebaixamento da forma de debate político promovido pelo tucanato, que teria seu auge quatro anos depois, com Aécio Neves. Em sua primeira aparição no horário eleitoral gratuito, Serra afirmou que sempre havia condenado o aborto e dizia ter “valores cristãos”.
Se a campanha petista em São Paulo, em 2000, não entrou no embate moral com Maluf, a nacional de 2010 reagiu de outra forma. Dilma contou com a ajuda do então deputado federal Gabriel Chalita (PSB) para mobilizar a ala carismática da Igreja Católica e promover o diálogo com setores religiosos.
Nas últimas eleições municipais, na disputa pela prefeitura de São Gonçalo, segunda cidade mais populosa do Rio de Janeiro, Dimas Gadelha (PT) foi alvo de uma campanha subterrânea no segundo turno, o relacionando ao aborto e à fantasiosa “ideologia de gênero”. Em resposta, divulgou uma carta na qual se comprometia a criar uma “Subsecretaria de Assuntos Religiosos”, utilizando o próprio jargão da extrema direita ao se opor à “doutrinação nas escolas” e “destruição dos valores da família” no documento.
Também em 2020, Marília Arraes, então no PT, sofreu com uma campanha similar. No segundo turno, foram distribuídos na capital pernambucana panfletos apócrifos acusando a candidata de defender a legalização das drogas e do aborto e, sim, a tal “ideologia de gênero”. “Tirou a Bíblia da Câmara do Recife, pertence ao PT que persegue os cristãos em todo o Brasil, votou contra o perdão das igrejas”, dizia o texto. A campanha de João Campos usou na TV uma peça com uma declaração descontextualizada de Marília afirmando que ela seria “contra a Bíblia”.
Acuada, no último debate a então petista tentou se agarrar ao discurso de valores familiares e cristãos, mas não evitou a derrota para o atual prefeito.
A “guerra cultural” da extrema direita
No cenário político brasileiro em que a extrema direita passou a figurar como protagonista, trazendo para si boa parte daquilo que já foi chamado de centro ou centro-direita, os pontos da chamada pauta moral — que, na verdade, trata da distorção do debate sobre direitos — são capazes de mobilizar politicamente muito mais do que no início dos anos 2000. A mudança de postura de candidatos de esquerda, principalmente os envolvidos em disputas acirradas nos turnos finais, não se dá à toa. Em algumas situações, a virada de pequenos percentuais de votos pode ser decisiva.
Mas e o resto? Se as eleições municipais são a oportunidade para que circule toda sorte de desinformação, também são espaços para o debate de ideias. E estas importam, já que, abrindo mão da discussão, a esquerda tem dado aos extremistas a possibilidade de consolidarem ainda mais o pensamento reacionário na sociedade.
“Ah, mas o Brasil é conservador…”. Sim, mas o papel da política é transformar, não enxergar um panorama como imutável e desistir de valores, deixar de jogar o jogo. Nos Estados Unidos, quando o Instituto Gallup fez o questionamento a respeito da legalização da maconha pela primeira vez, em 1969, apenas 12% aprovavam e, em 2013, o apoio ultrapassou 50% pela primeira vez, alcançando 70% em novembro de 2023. Ainda que o direito ao aborto esteja em risco em alguns estados do país, após decisão da Suprema Corte estadunidense, nos locais em que ele foi à votação por referendo popular continuou valendo.
A extrema direita raramente abre mão de reafirmar seus valores, e assim amplia e consolida seu capital político. Nas disputas municipais, veremos candidatos que os defenderão mesmo que isso implique ser derrotado por afastar eleitores menos radicais. Aqui, a conta também é fácil de ser explicada: mesmo perdendo, o extremista poderá angariar apoio para se candidatar a deputado estadual ou federal, ou mesmo ao Senado, já que as eleições de 2026 contarão com duas vagas. É bom lembrar que, em 2018, alguns senadores foram eleitos com percentuais próximos a 16%.
O erro de negar bandeiras históricas e não contestar os extremistas em pautas tidas como “sensíveis” tem efeitos eleitorais imediatos e futuros. Enquanto este segmento à direita faz seu proselitismo o tempo todo, inclusive (e principalmente) fora do período de campanha, boa parte da esquerda finge que os temas presentes no Whatsapp dos brasileiros a quase todo o momento não existem. E quando estas questões tomam corpo no debate público, os progressistas são reativos, acabam pautados em vez de pautarem. Os cálculos precisam ser melhor calibrados.