No Dia Internacional da Mulher, a Revista Casa Comum reflete por que mulheres, candidatas ou eleitas, enfrentam mais desafios na política simplesmente por serem mulheres.
Por Maria Victória Oliveira
Rvista Casa Comum
|
Greve de professores pelo direito ao piso nacional e por melhores condições de trabalho. Professora usa acessório com imagem de Marielle Franco, vereadora violentada e morta no Rio de Janeiro. Assembleia Legislativa de Minas Gerai (ALMG), Belo Horizonte (MG), 2020.
Foto: Isis Medeiros.
“Para a democracia ser forte, precisamos que todos os grupos historicamente marginalizados estejam proporcionalmente representados nos espaços de poder de onde saem as decisões que impactam diretamente as suas vidas. Sem isso, nunca teremos uma democracia forte, e, sem uma democracia forte, a gente vai estar sempre à beira do abismo.”
Foto: Afroafeto.
Laura Astrolabio, responsável pela frase acima, é co-diretora executiva, cofundadora e coidealizadora da A Tenda das Candidatas, uma tecnologia social criada em 2020 com o objetivo de capacitar lideranças feministas, antirracistas e defensoras dos direitos humanos e ensiná-las a fazer campanhas eleitorais. O projeto visa a expansão da participação e da representação política de mulheres, sobretudo negras, de modo a somar na luta pelo combate à sub-representação política de mulheres, ajudando a garantir sua ocupação em espaços de tomada de decisão no país.
Se você está se perguntando por que é necessário ter uma iniciativa criada especificamente com o objetivo de apoiar a entrada de mulheres na política, os dados respondem.
Segundo ranking produzido mensalmente pela organização global dos parlamentos nacionais (IPU) sobre a porcentagem de mulheres em parlamentos ao redor do mundo, em fevereiro deste ano, o Brasil ocupava a posição 134 entre as 190 nações avaliadas.
“As causas para essa posição vexatória são muitas, desde as barreiras institucionais e objetivas impostas às mulheres por nosso sistema político-eleitoral, tais como as regras de financiamento eleitoral, a ausência de cotas de cadeiras no legislativo, a violência política de gênero, a ausência de paridade de gênero nas direções partidárias, até barreiras subjetivas e culturais, tais como a sobrecarga do trabalho doméstico e de cuidados que recaem de forma desproporcional sobre as mulheres, além do machismo e o racismo entremeados na nossa cultura, que descredibilizam e diminuem o papel da mulher na sociedade”, analisa Marina Barros, diretora executiva e co-fundadora do Instituto Alziras.
Violência política de gênero e raça
Muito dessa desigualdade que se faz tão presente é ocasionada pela violência política de gênero e raça, direcionada especialmente para mulheres e, sobretudo, negras. O fenômeno pode acontecer de diferentes formas, que envolvem a violência direta e agressões físicas, ameaças, intimidação, assédio sexual, ataques verbais e difamação.
Um caso de violência extrema que ganhou notoriedade no Brasil e no mundo foi o assassinato da vereadora, mulher, negra e lésbica, Marielle Franco, em 2018.
Segundo o MonitorA, uma parceria entre a Revista AzMina e o InternetLab que monitorou as redes sociais de 175 candidatos e candidatas para vice-prefeitura e prefeituras durante 2020, enquanto homens foram atacados por suas atuações profissionais, mulheres foram atacadas pelo que são: mulheres, negras, idosas, trans.
Já a segunda edição do Censo das Prefeitas Brasileiras, outra iniciativa do Instituto Alziras, mostra que 74% das entrevistadas apontam que a divulgação de informações falsas foi o tipo de violência mais frequente na campanha de 2020, seguida de perto por ataques, ofensas e discursos de ódio nas redes sociais, com 66%.
Censo das Prefeitas Brasileiras, do Instituto Alziras.
“Muitas candidatas ainda estão aprendendo o que é a violência política de gênero e raça. É importante que a sociedade saiba o que é e o quanto isso prejudica e coloca a democracia na corda bamba, já que a violência afasta as mulheres, sobretudo as negras, da política. Ainda é preciso lutar muito para combater e parar de naturalizar isso”, reforça Laura, que relata se deparar com frequência com mulheres que não ingressam na política com a justificativa da violência.
Subrepresentação
Apesar de as mulheres representarem 51% da população, elas governam apenas 12% dos municípios. Já as mulheres negras respondem à fatia de 28% da população, ao passo que governam 4% dos municípios (segundo Censo das Prefeitas Brasileiras).
Os números apontam para um cenário do que Laura chama de sub-representação, foco da atuação d’A Tenda das Candidatas. “Nós ensinamos as mulheres a fazerem campanha eleitoral partidária, porque os homens dominam os campos, principalmente o campo político eleitoral, e nós entendemos que é preciso que mulheres estejam ocupando esses espaços. Nunca deveria ter acontecido isso, mas precisamos mudar o cenário de homens decidindo sobre os nossos corpos e sobre como temos que viver nossas vidas”, analisa.
Especialmente direcionada a mulheres negras, indígenas, quilombolas, PCD’s (pessoas com deficiência) e LGBTQIAP+, a formação oferecida seleciona, a cada temporada, 100 mulheres defensoras dos direitos humanos para um curso online dividido em três blocos de, pelo menos, 10 aulas, com o objetivo de orientá-las no preparo de uma campanha eleitoral.
Além disso, em ano eleitoral, A Tenda verifica quais dessas 100 mulheres estão decididas a se candidatar e seleciona 10 para um processo de mentoria individual e personalizada de acordo com as necessidades de cada uma.
Falta de financiamento enquanto prática violenta
Marina Barros aponta que a desigualdade de recursos e oportunidades para candidatas mulheres pode ser caracterizada como violência econômica, uma vez que afeta sua capacidade de competir em pé de igualdade com os homens. Não à toa, a falta de recursos para campanha é apontado como principal obstáculo para as mulheres na vida política.
Censo das Prefeitas Brasileiras, do Instituto Alziras.
“Os estudos indicam que acesso a financiamento é um fator central para determinar a competitividade eleitoral das campanhas políticas. Esses mesmos estudos demonstram que as mulheres, particularmente as mulheres negras, indígenas e LGBTQIA+, são as que acabam tendo menos acesso a financiamento de campanhas”, analisa Marina.
Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) via associação Gênero e Número, o recurso destinado a campanhas de mulheres negras é cinco vezes menor que o repassado a candidaturas de homens brancos. Mesmo com 33% das candidaturas, os homens receberam 51% do fundo eleitoral para campanha. Já as mulheres negras são 17,7% das candidaturas, e receberam 11,2% do fundo. Mulheres brancas são o único grupo que recebem recursos (15,7%) na proporção das candidaturas (15,4%).
Laura, por sua vez, comenta que a falta de financiamento adequado ou, em muitos casos, de qualquer tipo de financiamento é uma prática cada vez mais naturalizada dentro de partidos políticos, mas que precisa ser denunciada e combatida, afinal, “não tem como fazer campanha política sem apoio financeiro”, pontua.
Juntas somos mais fortes
A editoria Vozes em Ação, que integra a reportagem Em Destaque da 8ª edição da Revista Casa Comum, que pauta a democracia e será lançada no final de março, traz a história da deputada Monica Seixas, que atualmente lidera o mandato coletivo do Movimento Pretas. Monica mencionou que o mandato coletivo é uma forma de ‘fazer caber mais gente’ dentro da política, sobretudo de pessoas que não teriam condições de se eleger individualmente, pois não conseguiram competir com homens brancos, por exemplo.
Marina analisa que os mandatos coletivos podem ser vistos como uma forma de não individualizar a presença de corpos que não são bem-vindos nos espaços de poder. “Nesse sentido, não estar sozinha também é uma forma de se proteger da violência política de gênero, que, muitas vezes, é uma estratégia de afastamento das mulheres. Portanto, o mandato coletivo é uma reação a essa violência, dizendo “chegamos com um bonde””.
Laura, por sua vez, comenta que A Tenda se baseia em uma política ancestral, que se pauta em uma lógica de não competitividade entre as mulheres, e sim cooperação, por mais que o sistema eleitoral partidário seja capitalista e competitivo. “Nós sempre falamos para as mulheres que fazem a formação: ‘vocês não devem competir entre si, vocês tem que disputar com homens cis, heterossexuais, brancos e ricos. É com eles que está todo o poder e são eles que não querem dividir o bolo’. Quando um homem ganha, os homens brancos, cis, héteros e ricos estão ganhando e lutando para manter seus privilégios. Mas se uma mulher ganha, todas saem ganhando.”
Avançando
O Instituto Alziras foi responsável pelo levantamento Desigualdades de gênero e raça na política brasileira, que aponta que, mesmo sendo a maioria da população brasileira e acumularem mais anos de estudo do que os candidatos homens, as mulheres correspondem a menos de 14% das candidaturas para o poder executivo municipal. Nas eleições de 2016 e 2020, apenas duas capitais brasileiras elegeram prefeitas: Boa Vista (RR) em 2016 e Palmas (TO) em 2020.
Entretanto, alguns avanços, ainda que tímidos, podem ser observados. Entre 2016 e 2020, mulheres prefeitas passaram de 11,5% para 12,1%, ritmo no qual o Brasil levaria 144 anos para alcançar a paridade de gênero nas prefeituras.
Também representam avanços as leis 14.192/2021, que estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher, nos espaços e atividades relacionados ao exercício de seus direitos políticos e de suas funções públicas; e também a Lei 12.034/2009, que determina que cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo.
A Emenda Constitucional 117 de 2022 determina que “o montante do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e da parcela do fundo partidário destinada a campanhas eleitorais, bem como o tempo de propaganda gratuita no rádio e na televisão a ser distribuído pelos partidos às respectivas candidatas, deverão ser de no mínimo 30% (trinta por cento), proporcional ao número de candidatas, e a distribuição deverá ser realizada conforme critérios definidos pelos respectivos órgãos de direção e pelas normas estatutárias, considerados a autonomia e o interesse partidário.”
Marina argumenta que, apesar de parlamentares trans e de grupos LGBTQIA+ liderando bancadas e recebendo votações expressivas, o Supremo Tribunal Federal (STF) acolhendo demandas da população indígena e concedendo cotas para candidaturas serem boas sinalizações, ainda é possível e necessário fazer mais.
“Precisamos entender que as respostas produzidas nesses espaços institucionais ainda são muito frágeis e, por isso, temos visto resultados aquém do que precisamos para avançar rumo à paridade. É preciso lembrar que as mulheres são 52% do eleitorado, são 46,2% das filiadas a partidos políticos e somente 18,2% das candidaturas eleitas são femininas. Portanto, há que se mitigar os fatores – amplamente conhecidos – que causam esse afunilamento de oportunidades que retira as mulheres do jogo político.”
Nesse sentido, Marina defende que há muito o que se aprender com países sulamericanos vizinhos ao Brasil, o que levou o Instituto Alziras a desenvolver o projeto Convergências Democráticas América Latina, que foi responsável, entre outras ações, pela realização de três estudos sobre as lições em prol de um programa político com maior representatividade dos grupos historicamente minorizados na política representativa, partindo de experiências exitosas no México, na Bolívia – que contam, respectivamente, com 49% e 46% de mulheres em seus parlamentos – e na Assembleia Constituinte do Chile, a primeira do mundo com paridade de gênero e participação dos povos originários.
O compartilhamento de experiências entre organizações brasileiras e organizações desses países e também da Colômbia possibilitou o que Marina chama de três lições centrais para as mudanças na política e democracia brasileira:
- A compreensão de que, para que o Brasil avance na participação política de mulheres, da população negra e indígena, é preciso que atingir o mínimo de 30% de representação destes grupos nas cadeiras parlamentares no Congresso Nacional e nas Assembleias Legislativas por todo o país.
- “Partidos têm papel central para ampliar e fortalecer a diversidade da participação política no país. Logo, é preciso que cumpram as leis. É dever de todos os órgãos do sistema político e também dos partidos o cumprimento da legislação voltada para ampliar a participação política de mulheres e população negra”, aponta Marina, que compartilha a experiência do México, onde o mínimo dos 30% só foi alcançado após sanções impostas pelo descumprimento da regra.
- Já o princípio constitucional e comunitário Boliviano da despatriarcalização da política contribuiu simbolicamente, segundo Marina, para “reposicionar o masculino e o feminino como forças complementares e, portanto, que precisam estar equilibradas em toda a sociedade, inclusive na política representativa”. “Este princípio se direciona para um olhar público considerando toda a diversidade da sociedade e não somente a perspectiva dos homens”, aponta.
Dados apontam abismo entre homens e mulheres
Nesse 8 de março, lembre porque a data é um dia político:
> De acordo com a pesquisa Viver em São Paulo: Mulheres, lançada em 05 de março, duas em cada três mulheres já sofreram algum tipo de assédio na cidade, o que equivale a cerca de 3,4 milhões de pessoas; 44% sofreram assédio no transporte público e 29% dentro do ambiente de trabalho.
> Já o Atlas da Violência 2023, 49 mil mulheres foram assassinadas entre 2011 e 2021, com o racismo desempenhando papel importante. A taxa de mortalidade a cada 100 mil habitantes é de 4,3 para mulheres negras e 2,4 para mulheres não negras.
> O Mapa Nacional da Violência de Gênero traz outros dados alarmantes: mais de 202 mil mulheres sofreram algum tipo de violência em 2022, 48% das mulheres brasileiras já sofreram violência doméstica, cerca de 530 mil mulheres recorreram às medidas protetivas de urgência em 2023, 61% de mulheres que sofreram violência em 2023 não procuraram uma delegacia (o que mostra que números já alarmantes ainda contam com subnotificação).
> Além da violência em casa e sobretudo de parceiros, as mulheres se dedicam mais em casa. Dados do 4º trimestre de 2023 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que elas dedicaram mais de 925 horas aos afazeres domésticos, cerca de 354 horas (15 dias) a mais do que os homens (ou 17 horas versus 11 horas por semana).
> Somado ao contexto de violências em suas diversas naturezas, mulheres também sofrem discriminação em outros espaços, como no mercado de trabalho, cenário ainda mais agravado se adicionado o componente raça. Segundo dados da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE), a taxa de desemprego de mulheres negras no estado de São Paulo é o dobro (10,7%) do que a dos homens não-negros (5,2%), ao passo que elas têm um rendimento por hora de metade (R$ 15,70) daquele dos homens não-negros (R$ 32,80).
Outros conteúdos:
[ artigo ] Mulheres negras no sistema de justiça: é preciso dizer o que se cala
A incontestável – porém, ainda, invisibilizada – a sub-representação das mulheres negras no sistema de justiça brasileiro é fator que deve ser reconhecido e debatido
Publicado em
15/06/2023
[ artigo ] A periferia tem o rosto de uma mulher negra
Por Bianca Pedrina, jornalista correspondente da Agência Mural de Jornalismo das Periferias
Publicado em
13/05/2022
[ artigo ] Perspectivas para uma Economia com Equidade de Gênero e Raça
Aprender com os que vieram antes de nós é necessário para seguir em direção ao futuro