Quase lá: O escândalo da violência contra as mulheres: papel e responsabilidade da Igreja. Artigo de Selene Zorzi

80% dos assassinatos de mulheres são cometidos no âmbito afetivo e familiar, se não diretamente por companheiros ou ex-companheiros, isto é, por pessoas que diziam que as amavam.

 

"É necessário reconhecer, como já fazia o Papa João na Pacem in Terris, que o próprio movimento de emancipação das mulheres se estabeleceu principalmente nos povos de tradição cristã"

A opinião é da teóloga italiana Selene Zorzi, professora do Instituto Teológico Marchigiano e ex-professora do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, da Pontifícia Universidade Lateranense e do Instituto Superior de Ciências Religiosas de Ancona, do qual foi vice-diretora. É membro da Coordenação das Teólogas Italianas (CTI).

O artigo foi publicado por Rocca, n. 5, 01-03-2024. A tradução é de Luisa Rabolini

Eis o artigo. 

De todos os assassinatos cometidos, apenas uma pequena parte tem as mulheres como vítimas. No entanto, 80% dos assassinatos de mulheres são cometidos no âmbito afetivo e familiar, se não diretamente por companheiros ou ex-companheiros, isto é, por pessoas que diziam que as amavam. É disso que se trata quando se fala de feminicídio: o feminicídio, de fato, não é simplesmente o assassinato de uma mulher, mas indica a mentalidade que leva a tal assassinato. A mentalidade que considera as mulheres subordinadas e funcionais ao homem.

Existe uma corresponsabilidade da Igreja nessa mentalidade? A resposta é sim, e vários exemplos podem ser apresentados. Proponho apenas alguns.

Ainda hoje os textos de Gênesis 1-3 fazem parte de um imaginário coletivo, embora a sociedade hoje tenha quase completamente se emancipado de uma cultura bíblica e também cristã.

Em Gênesis 2-3, Adão e Eva tornaram-se símbolos do gênero masculino e feminino, portanto referência para todos os homens e mulheres. Embora hoje quase ninguém mais interprete dessa forma literal e historicista esses textos, ainda assim o seu impacto na doutrina, nas instituições, na estrutura eclesial, mas também na sociedade e na mentalidade, ainda é muito forte.

Lembrarei muito rapidamente como o texto de Gênesis 1,26 tenha tido ao longo da história da teologia diferentes interpretações antropológicas.

Os modelos antropológicos propostos por Børresen

A teóloga K.E. Børresen havia identificado três modelos antropológicos de interpretação desse texto:

  • um primeiro modelo que chamava de monismo androcêntrico, onde apenas o Adão homem era considerado à imagem de Deus;
  • um segundo modelo que chamava de dualismo androcêntrico, onde homens e mulheres deveriam ter chegado a uma imagem assexuada ou metassexual de Deus, considerando que Deus não tem sexo e
  • um terceiro modelo que a teóloga chama de monismo holístico, onde tanto homens como mulheres por serem homens e mulheres (e não apesar de serem) são considerados criados à imagem de Deus.

Este último modelo foi iniciado pela exegese feminista e agora é aceito teoricamente pelo Magistério.

Nem é preciso dizer que na base da teologia, da antropologia teológica e das instituições cristãs prevaleceu, contudo, o primeiro modelo ou, no máximo, uma síntese entre o primeiro e o segundo.

Os teólogos podiam contar com um rico dossiê de textos bíblicos que apoiavam essa interpretação e que foram formados também com base em uma certa cultura pagã, tanto grega quanto romana, em que os textos foram escritos.

Papel da mulher secundário e funcional

Essa concepção da mulher como secundária e funcional também esteve na base das argumentações, bastante inconsistentes, para a exclusão das mulheres do ministério da ordem.

Em relação a Gênesis 2-3, a teóloga M. Dely destacou como esses textos contribuíram para a criação do bode expiatório Eva. O tipo de interpretação que emerge teve um impacto negativo nas relações entre os sexos que se inseriu na doutrina, nas instituições, nas leis, na sociedade, na cultura, mas também na psique. Ao atribuir ao outro, isto é, à mulher, todo o mal, o homem se exime de sua própria responsabilidade. O resultado é uma perspectiva fortemente distorcida sobre Deus, sobre a mulher, sobre o homem, sobre as relações entre homens e mulheres, por fim, também sobre o que é bem e o que é mal.

De fato, o ponto de vista do homem torna-se o ponto de vista de Deus com um consequente erro de denominação de toda a realidade. Os efeitos dessa interpretação são devastadores não só para a mulher, mas também para o homem: é justificada uma abordagem sexista da sociedade e da Igreja, se justifica a opressão do homem sobre a mulher.

A feminilidade é desprezada e assim a mulher dirige esse desprezo para si mesma; também o homem, não reconhecendo uma positividade no papel do outro, dirige o desprezo para si mesmo, isto é, para aquela outra parte de si que tem dentro de si (referimo-nos ao conceito de sombra de Jung). Isso também resulta em uma relação competitiva das mulheres entre si.

Condenadas a desempenhar o papel de outro, de fato, as mulheres aceitam assumir o comportamento de complacência em serem aceitas pelo homem, entrando em competição entre si; assumem, portanto, uma visão negativa de si mesmas e, finalmente, aceitam agir por si mesmas apenas indiretamente através do homem. Segue-se que à feminilidade são associados valores como amor sacrificial, resistência ao sofrimento, humildade, silêncio, secundariedade.

São considerados vícios femininos atitudes como a loquacidade, a independência afetiva e sexual, a emotividade, a vulnerabilidade.

Paralelismo entre Eva e Maria

A esse esquema acrescenta-se um paralelismo de origem patrística (Justino e depois Irineu) aquele entre Eva e Maria. Trata-se de um binário feminino que coloca de um lado uma única mulher perfeita e inatingível, que, no entanto, funciona como um modelo coercitivo para todas as outras mulheres que de fato só podem ser reconduzidas até Eva, a péssima. De fato, nenhuma de nós é virgem e mãe, portanto somos todas Eva. Trata-se de um sistema binário também conhecido pelas culturas patriarcais onde as mulheres respeitáveis são aquelas que se enquadram nos papeis do patriarcado ou que o patriarcado decide para as mulheres aqueles de filha virgem e obediente, mãe atenciosa e esposa dedicada e casta.

Do outro lado, existem as mulheres ‘pouco de bom’, ou seja, todas aquelas que de alguma forma vão além desses esquemas rígidos, as “desviantes”: foram chamadas de bruxas, histéricas, ninfomaníacas e punidas como tais.

De fato, toda vez que os homens atribuíram um nome a mulheres que não se enquadravam nos esquemas das mulheres respeitáveis, atribuíram nomes fortemente depreciativos.

Concepção arcaica da sexualidade na Bíblia

Outro ponto em que a Igreja parece corresponsável pela cultura do estupro é estar ainda ancorada a uma concepção arcaica de sexualidade: na Bíblia os termos que indicam homem e mulher podem ser traduzidos como penetrante (zara) e penetrável (qebah). Nessa concepção o corpo masculino funciona como uma arma, enquanto o feminino como algo que sofre violência. E uma abordagem predatória das relações sexuais. Porém, é também uma visão da sexualidade reduzida à genitalidade, numa perspectiva exclusivamente masculina, onde o prazer está sempre ligado à fertilização.

Trata-se de uma abordagem que se encontra na concepção aristotélica da reprodução, onde a mulher ainda é considerada totalmente passiva. Uma concepção que implica um dualismo antropológico muito forte entre corpo e alma e que ainda não se abriu aos conhecimentos que derivam da psicologia em relação à energia erótica.

Por fim, a própria igreja continua a ser um lugar produtor de abusos: sabe-se, de fato, como o desequilíbrio de poder produza violência e abusos sexuais em todos os lugares. Na igreja, o poder está exclusivamente ligado à masculinidade. A estrutura binária, ou se quisermos clerical, da Igreja permite uma injustiça de fundo que prevê um grupo de batizados ontologicamente diferentes em relação a outro grupo de leigos, entre os quais as mulheres. Justamente pelo fato de todo o poder estar nas mãos exclusivamente do sexo masculino também o circuito de feedback não existe.

Possíveis saídas

Gostaria agora de esboçar algumas saídas que encontramos no próprio cristianismo. Em primeiro lugar, a práxis de Jesus: o Evangelho fala-nos de um homem, bem fora dos esquemas no que respeito ao seu ser homem, mestre e Senhor, que chama ao seguimento homens e mulheres sem discriminação de gênero.

É necessário reconhecer, como já fazia o Papa João na Pacem in Terris, que o próprio movimento de emancipação das mulheres se estabeleceu principalmente nos povos de tradição cristã. Isso porque é justamente na práxis e na mensagem de Jesus que se identificou uma mensagem de libertação para os pobres, para os excluídos e, portanto, também para as mulheres.

Quanto à interpretação de Gn 1, já nos referimos ao terceiro modelo interpretativo que vê homens e mulheres como homens e mulheres ambos feitos à imagem de Deus. No entanto, continua presente uma incongruência entre a aceitação teórica dessa interpretação e a estrutura institucional ainda influenciada pela antiga concepção.

Em relação a Gn 2-3 temos diferentes interpretações desse texto e uma tarefa para nós, mulheres, que deveríamos nos libertar da interiorização de uma feminilidade negativa, do sentimento de culpa e de alguma forma ter a coragem de comer da árvore do conhecimento e “cair na liberdade” como fala Mery Daly, ou seja, ousar nós mesmas em todos os campos. Descobrir nós mesmas na irmandade, libertando-nos de papéis já prontos. Na realidade, as mulheres já começaram a rejeitar os modelos padrão de feminilidade típicos do patriarcado.

Mas é aqui que não se consegue entrar em novos modelos de relação entre homens e mulheres e se experimenta a reação violenta dos homens. De fato, tal libertação impele a um “todos livres”, até mesmo para os homens, porque eles também são forçados pelo patriarcado a papéis e identidades que oprimem um desempenho autêntico das suas personalidades. A teologia moral deveria confrontar-se mais seriamente com as pesquisas que vem das ciências humanas, penso na concepção de S. Freud sobre o erotismo, de A. Adler sobre o poder, de G. Jung sobre os elementos masculinos e femininos de cada pessoa, sobre dispositivos de poder e controle dos corpos analisados por M. Foucault, talvez também sobre o poder da linguagem em revelar ou ocultar corpos “abjetos”, conforme ilustrado por J. Butler.

Finalmente, haveria duas tarefas claras para os homens:

  • refletir coletivamente sobre a associação acrítica e invisível entre masculinidade e poder (talvez em círculos exclusivamente masculinos, nos moldes das práticas feministas da década de 1970) e,
  • em segundo lugar, assumir uma responsabilidade coletiva sobre a violência contra as mulheres, mesmo que, como indivíduos, não sejam responsáveis pela violência.

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