Quase lá: Religiões como espaços para o exercício político do cuidado

Se as religiões, religiosidades e fiéis acreditam em uma divindade, criadora de tudo, seria por óbvio, aponta frei Marx Rodrigues, todos cuidarem da Casa Comum.

Por Elvis Marques e Amanda Proetti - Revista Casa Comum

Maria Preta durante a alvorada da Festa do Divino organizada pela família nos brejos. Barra (BA), 2019. Foto: Thomas Bauer

As benzedeiras e os benzedores atuam a partir de uma sabedoria ancestral nas curas dos males do corpo e da alma, sempre empunhando alguns ramos de seus quintais, como a arruda. No cristianismo, há uma forte relação com as águas, utilizadas para bênçãos e batismos. Os povos indígenas entendem os seus espaços de vida como territórios sagrados, com os seus corpos e o meio ambiente interligados. O budismo trata da natureza da mente dos seres, e o respeito aos seres vivos ao nosso redor. O espiritismo aponta o amor à natureza, ao cosmo, e a solidariedade ao próximo. Percebe-se que o cuidado e o amor com os seres vivos e o planeta é algo intrínseco às múltiplas manifestações religiosas.

Yalorixá Mãe Baiana de Oyá | Foto: Arquivo pessoal

Foto: arquivo pessoal

“O terreiro representa o cuidar. É como a gente cuida das nossas pessoas, tanto do físico, mas também do mental e do espiritual, inclusive cumprindo o papel que o Estado não cumpre”, acrescenta Adna Santos de Araújo, mais conhecida como Yalorixá Mãe Baiana de Oyá.

Bisneta de escrava que chegou ao Brasil em um navio negreiro, Yalorixá é autora de uma trajetória de luta em defesa da cultura afro-brasileira e pelo direito do povo negro de se expressar religiosamente. A líder religiosa é fundadora do terreiro de candomblé Ilê Axé Oyá Bagan, que faz parte da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro Saúde), espaço no qual atua com atendimento à população local em diversas frentes assistenciais.

Nascida no interior da Bahia e moradora de Brasília há mais de 40 anos, Mãe Baiana vive na pele as mazelas do racismo e da intolerância religiosa. Em 2009, seu terreiro foi derrubado pela Agência de Fiscalização do Distrito Federal (DF). Seis anos depois, o mesmo local foi alvo de um incêndio por criminosos.

Com a intensificação de casos como esse, Mãe Baiana foi responsável pela articulação de um mapeamento dos terreiros do DF em 2018, resultado de uma parceria entre a Fundação Cultural Palmares e a Universidade de Brasília, que apontou a existência de 330 centros de religiões de matriz africana na capital federal.

“O mapeamento ajudou a trazer algumas políticas públicas para o nosso povo, como água, luz e saneamento, e serviu para reativar a Lei 806, que determina a regularização fundiária dos estabelecimentos religiosos. Só que a Lei foi usada para regularizar mais de 500 templos religiosos evangélicos, só no ano passado, enquanto nossos terreiros continuam aguardando a regularização. Essas coisas comprovam o racismo institucional, religioso e estrutural que sofremos todos os dias”, conta a Mãe de Santo.

Em maio de 2023, Mãe Baiana esteve com a sub-secretária-geral das Nações Unidas e Assessora Especial para Prevenção do Genocídio, Alice Wairimu Nderitu, em visita ao Brasil para conversar com autoridades, equipes das Nações Unidas no país, representantes da sociedade civil e outros atores sobre a necessidade de ampliar a proteção de povos indígenas, pessoas afro-brasileiras e outros grupos em situação de risco.

A Renafro Saúde é uma articulação da sociedade civil composta por pessoas adeptas da tradição religiosa afro-brasileira, gestores e profissionais de saúde, integrantes de organizações não governamentais, pesquisadores e lideranças do movimento negro.

>> Conheça: renafrosaudecom.wordpress.com

Espaços públicos e as religiosidades

“As religiões precisam estar atentas aos dramas do mundo e procurando contribuir. Eu não defendo o anestesiamento do potencial público das religiões. Defendo que elas possam contribuir com a sociedade com um espírito de pluralidade, de respeito à diversidade e de diálogo inter-religioso. A experiência religiosa precisa estar a serviço do bem comum”, expõe Henrique Vieira, deputado federal pelo PSOL do Rio de Janeiro e pastor da Igreja Batista do Caminho.

O parlamentar expõe uma percepção importante e necessária sobre o potencial da fé, das religiões e das religiosidades a serviço dos direitos humanos e da natureza. Henrique acredita e defende a participação religiosa na política, mas não como um projeto de poder ou de imposição de uma doutrina religiosa para o conjunto da sociedade. Para ele, diante de um ambiente conservador, como da atual legislatura do Congresso Nacional, o campo da defesa e proteção dos direitos humanos e socioambientais precisa se colocar de forma proativa nesses espaços públicos.

“Seja na política partidária ou eleitoral, eu acho importante, sim, a presença de religiosos que ocupem esse lugar para fazer um contraponto ao fundamentalismo. Este, sim, enxerga esse local como projeto de poder, de forma autoritária, antidemocrática e antilaico. Nós, do campo progressista, podemos ocupar com outro objetivo, mostrando que a fé pode estar a serviço da República, da democracia, do Estado laico, da diversidade, dos direitos humanos e socioambientais, do povo empobrecido e trabalhador”, argumenta.

A fé não precisa e nem deve ser instrumento de violência. Ela deve ser-estar a serviço da humanidade e do bem comum”, acredita o deputado federal e pastor Henrique Vieira.

Foto: arquivo pessoal

 

A Casa Comum aos olhos de Henrique Vieira

“Entendo a Casa Comum, por um lado, como a Mãe Terra com toda sacralidade, para além de nós, seres humanos. A lógica do capitalismo transformou a Casa Comum num reservatório morto, com recursos a serem extraídos para o funcionamento da economia. Dessacraliza e coisifica a Mãe Terra. A Casa Comum me liga a esse espaço sagrado no qual a humanidade se insere. Daí, eu amplio o conceito de Casa Comum para a natureza incorporando a humanidade. Penso a Casa Comum como um espaço para o exercício político do cuidado. O cuidado que há de salvar a Terra ou a humanidade na Terra. O cuidado não como alerta, não como vigilância, mas sim como zeladoria.

Isso não é bonitinho, não é romântico. Isso significa vencer opressões, compartilhar as riquezas, distribuir as dádivas que a Terra nos dá, cair com as cercas do latifúndio, ouvir as ancestralidades e valorizar os povos originários com os seus saberes. Isso significa converter o dinheiro à dignidade humana, e não o inverso. Acho que a Casa Comum é um bom conceito e experiência para reivindicarmos essa profecia da denúncia e do anúncio.”

Na Câmara dos Deputados, Henrique Vieira, natural de Niterói (RJ) e antigo morador da favela Vila Ipiranga, avalia como desafiador esses seis meses de mandato, principalmente pela casa contar com uma extrema direita consolidada, responsável por uma política feita com violência. “Mas, ao mesmo tempo, há de se reconhecer que existem parlamentares comprometidos, querendo discutir o Brasil e melhorá-lo. Precisamos dignificar a política, fazendo-a enraizada nas lutas do nosso povo. Apesar de ser desafia- dor e, às vezes, desencantador, eu vejo sentido, propósito e relevância em ter um mandato inspirado nas lutas do povo, o que anima todos os dias o meu coração”, avalia.

Henrique é uma das exceções religiosas que não integram a Frente Parlamentar Evangélica (FPE) do Congresso Nacional. O pastor avalia as possibilidades de diálogo com o agrupamento sobre pautas de direitos humanos e socioambientais. “A bancada evangélica, por incrível que pareça, tem uma certa diversidade. Tem setores de direita e parlamentares que são base do governo atual. A própria bancada tem disputas e tensões internas. Há frações com as quais é possível o diálogo e há aquelas que não”, observa.

Independente da política partidária, eleitoral e institucional, eu defendo que as religiões tenham relevância política e pública”, ressalta o deputado federal e pastor Henrique Vieira.

As bancadas religiosas na 57ª legislatura

A Câmara dos Deputados é formada por 513 parlamentares. As bancadas ou frentes parlamentares reúnem congressistas por afinidade de pautas ou interesses. Um dos agrupamentos mais conhecidos do Congresso Nacional é a Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional, a qual conta, na atual legislatura, com 220 deputados e deputadas, e 26 senadores e senadoras.

Outro agrupamento religioso robusto, porém menos popular na mídia, é a Frente Parlamentar Católica Apostólica Romana, com 200 membros da Câmara dos Deputados. Importante destacar que há parlamentares presentes em ambos os grupos. Apesar disso, pode-se dizer que cerca da metade da Câmara integra bancadas religiosas.

Nesta legislatura, há apenas duas bancadas religiosas cristãs, diferentemente de outros períodos, como no Congresso anterior, que contava com quatro agrupamentos, sendo alguns com nomenclaturas semelhantes, porém com presidência e membros diferentes: Frente Parlamentar em Defesa da Liberdade Religiosa e da Cultura de Paz; Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Tradicionais de Matriz Africana; Frente Parlamentar Mista da Liberdade Religiosa, Refugiados e Ajuda Humanitária; e a Frente Parlamentar para a Liberdade Religiosa do Congresso.

>> Confira a vasta lista de agrupamentos e de membros por bancada: bit.ly/RCC_E6_03

A obrigação religiosa de cuidar da Casa Comum

Frei Marx Rodrigues dos Reis, diretor-secretário do Sefras – Ação Social Franciscana, entende que as religiões e as religiosidades têm [ou deveriam ter] um papel fundamental no debate sobre o cuidado com o planeta Terra e todo ser vivo. Para o frade franciscano, se as religiões e as religiosidades acreditam em uma divindade, criadora de todas as coisas, logo, todas as pessoas deveriam ser capazes de cuidar daquilo que ela fez. “A ideia primeira da religião já nos coloca no compromisso com aquilo que foi dado pelo criador. Se você ama este criador, você deveria cuidar de tudo o que ele fez”, ressalta.

Apesar de parecer algo básico para as religiões, seus fiéis e para as religiosidades, no cotidiano, ou por séculos, essa lógica de cuidar do que as divindades teriam criado não tem sido seguida com afinco. Marx argumenta que alguns autores tratam desse tema a partir da teoria das “Instituições Históricas de Hegemonia”, na qual as religiões seriam umas das principais, já que flertam com o status quo.

Foto: arquivo pessoal

As religiões, por diversos momentos da história, sentaram na mesa do capitalismo e sentenciaram a criação do criador. Por isso, teríamos a responsabilidade de pensar como mudar essa realidade. E, nesse sentido, o Papa Francisco tem uma fala importante: ‘esse sistema é perverso, degrada e mata’. O que nos instiga a repensar o atual sistema em que vivemos”, ressalta frei Marx Rodrigues

Independentemente da responsabilidade do campo religioso em contribuir para a mudança do atual cenário do planeta e dos seres humanos, as religiões têm o dever de dialogar e propor soluções para essas problemáticas, que vão da destruição do meio ambiente aos direitos humanos. “É tarefa de cada religião, porque ela detém esse lugar ético e moral, o qual deveria colaborar em cuidar da Casa Comum como um todo. Essas instituições precisam discutir esse paradigma”, acredita o frade.

E para caminhar nesse sentido de mudança, de uma conversão ecológica, e também superar a teoria, Marx frisa, com base no que estruturou anteriormente, que degradar o meio ambiente precisa ser entendido como um pecado, já que matar também é assim considerado. Ou seja, não apenas matar outro ser humano poderia ser caracterizado como uma atitude pecadora, mas sim também tudo que é vivo e é obra da divindade. “Precisamos de uma conversão para que cultivemos a harmonia com todas as formas de vida, da água à alimentação”, sublinha.

O frade ressalta que essa conversão é necessária diante do tempo crítico que o mundo vive. “A Casa Comum está em mudanças climáticas. Alguns sinais já são visíveis e ferem a terra e os mais vulneráveis. É preciso recordar que os efeitos não serão revertidos, por isso, uma conversão ecológica, tal como no antigo testamento é necessário, é preciso reconhecer nosso pecado e se empenhar em mudar as nossas formas de vida.”

Segundo o diretor-secretário do Sefras, esse passo a passo para a conversão ecológica precisa entender, inclusive, que os templos e as religiões, por múltiplas vezes, não darão conta da complexidade da vida. “Se pensarmos em São Francisco de Assis, ele diz que o ‘nosso claustro é o mundo’. Ele louva a Deus falando com a natureza, o canto dos pássaros é o louvor a Deus. O calor do sol é o louvor a Deus. Ele está dizendo que o louvor pode vir de um católico ou de qualquer outro ser vivo.”

“Assim como um mulçulmano é capaz de repartir o pão para celebrar o seu Ramadã, nós deveríamos ser capazes de partir o pão para matar a fome de quem não tem o que comer. Esse lugar de conversão cabe a todos e todas, independente da religião”, reflete frei Marx Rodrigues.

 
Encantar a Política

O projeto Encantar a Política é fruto do trabalho de uma rede de organizações, serviços, pastorais sociais e organismos da Igreja, Rede Brasileira de Fé e Política, com apoio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Ele tem como proposta retomar questões centrais das encíclicas do Papa Francisco – Laudato Si’ e Fratelli tutti – e da Exortação Apostólica pós-sinodal, Alegria do Evangelho – que tratam a política como decorrência ética do mandamento do amor, assumindo-a no sentido mais profundo da palavra.

O projeto conta com eixos prioritários de ação: informação e formação a partir do caderno Encantar a Política; capacitação de coletivos e mandatos populares e participativos nas eleições; e ação política para transformação social: apoio a candidaturas populares, fortalecimento da democracia participativa, conselhos de políticas públicas, audiências públicas e incidência política.

Conheça mais sobre a iniciativa em: cnlb.org.br/encantarapolitica

Ação pastoral junto aos povos amazônidas

As lideranças indígenas Patricia Gualinga, Irmã Laura Vicuña – ao centro – e Yesica Patiachi se encontraram no mês de junho de 2023 com o Papa Francisco. Foto: REPAM

A Amazônia Legal brasileira se estende por nove estados e, além de deter uma das maiores biodiversidades do planeta, é a casa de inúmeras manifestações religiosas e espirituais, desde as festas quilombolas do Divino, no Maranhão, passando pelo Círio de Nazaré, no Pará, até a relação dos povos indígenas com os seus encantados.

Falar de espiritualidade junto aos povos indígenas passa pelo conceito de bem-viver, de modos tradicionais de vida e de territórios, conceitos amplos que, em suma, se baseiam na convivência fraterna entre todos os seres vivos e o respeito, como apresenta o artigo O bem viver indígena e o futuro da humanidade, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). [bit.ly/RCC_E6_04]

Com mais de 30 anos de uma vida dedicada aos povos originários e como missionária do Cimi, Irmã Laura Vicuña, nasceu entre o povo indígena Kariri, no Nordeste, e atualmente atua com a etnia Karipuna, em Rondônia, e integra a Conferência Eclesial da Amazônia (CEAMA) e a Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam). “A ação pastoral que tenho junto e com os povos indígenas se concretiza na luta em defesa da terra, como ação evangelizadora fundamental para que todos possam ter vida, e vida em abundância”, declara.

A presença da religiosa indígena em meio à etnia se baseia na missão de defesa junto ao povo por seus modos de vida e pelo território, espaço de reprodução da vida. “Lutamos em espaços regionais, nacionais e internacionais, para denunciar violações de direitos e sempre chamando atenção para o cuidado da Casa Comum, nossa Amazônia, como um espaço de vida para todas as pessoas.”

Sendo uma religiosa e de outra etnia, Irmã Laura ressalta que o trabalho missionário é guiado sempre pelo respeito às diferentes culturas, expressões de fé, teologias e espiritualidades presentes entre os povos indígenas. “Os indígenas são portadores de uma cultura milenar, de uma espiritualidade integral, que conecta o todo da vida. Diante das crises socioambientais, os povos indígenas oferecem ao mundo novos paradigmas civilizatórios, pautados no bem-viver”, destaca.

Em junho de 2023, Irmã Laura Vicuña, juntamente com duas lideranças indígenas, Patricia Gualinga e Yesica Patiachi, se encontraram, no Vaticano, com o Papa Francisco, e conversaram sobre o trabalho das mulheres da Igreja no território amazônico, o reconhecimento da estrutura eclesiástica desse trabalho, a realidade dos indígenas e a educação.

Política e religião no cotidiano

Há cerca de 13 anos, Lívia Reis, pós-doutora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social no Museu Nacional (da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ), coordenadora do núcleo de Religião e Política do Instituto de Estudos da Religião (ISER), saía de um cinema na região de Botafogo, no Rio de Janeiro, quando se deparou com uma multidão de pessoas evangélicas [um milhão segundo alguns jornais], e ficou impressionada por aquele evento passar despercebido entre a imprensa e a população.

Até ela conseguir entrar em um ônibus, demorou. Nesse prazo, ela circulou entre a multidão a fim de observar o que estava acontecendo. “Quando eu entrei no ônibus, tinha uma menina que chorava muito, e dizia ‘eles estão destruindo a nossa cidade’. Aquilo me chocou muito, porque o número de evangélicos tinha crescido, mas não tinha essa centralidade midiática que tem hoje. Naquele período, essa religião era cerca de 20% da população, apesar de não ter uma grande visibilidade como atualmente. Treze anos fizeram muita diferença”, relembra Lívia.

A questão que mais chocou a pesquisadora naquele evento vem da fala da jovem do ônibus: por que essas pessoas são tidas como “os outros”, se são parte da mesma sociedade brasileira? “As pessoas enxergavam os evangélicos como ‘o outro’, como algo distante”, argumenta.

A partir desses questionamentos internos, a, então, advogada passa a pesquisar a relação entre religião e política, com um entendimento amplo sobre a política, e não apenas a eleitoral. “Penso política nesses estudos como uma forma de domínio da vida que te permite intervir e transformar o mundo, aquilo da esfera da ação”, afirma.

“Na década de 1980, havia a ideia de que evangélico não devia se meter em política, ele era apartado desse mundo, e o seu signo da salvação era o trabalho. Acredito que a prática cotidiana da igreja contribuiu para essa transformação. A igreja evangélica não seria o que é no Brasil se os fiéis não tivessem assumido, depois, o compromisso de intervir no mundo e fazer política”, aponta Lívia Reis, coordenadora do ISER.

Foto: Arquivo pessoal

Quando Lívia fala sobre religião e política, com o recorte para o grupo evangélico, ela não está tratando apenas do ato de fazer política das principais lideranças, mas de como os membros religiosos assumem o compromisso com a igreja, com Deus e com eles mesmos. “E é isso que a faz expandir, porque se o pessoal não coloca a mão na massa e faz o trabalho de formiguinha, não tem como a igreja existir.”

Em suas pesquisas, Lívia busca entender o motivo de a religião mobilizar as pessoas, e sintetiza alguns elementos:

• O sentimento de pertencimento e comunidade ajuda a explicar, mas não é tudo;

• As pessoas vão à igreja para buscar paz, já que vivemos em um sistema neoliberal que exige muito de nós. O indivíduo trabalha cada vez mais, tem menos tempo de produzir sentimento de pertencimento e de comunidade, pouco tempo para lazer etc;

• Na Igreja Universal, há, por exemplo, uma valorização do empreendedorismo, ligado ao sucesso e à prosperidade, ou seja, eu posso criar o meu bom trabalho ao invés de continuar sendo empregado ou explorado pelo outro;

• E há o discurso de valorização do ser humano nas igrejas, porque elas se adaptam ao mundo e ao contexto cruel vivido em determinado momento;

• Nas cidades, principalmente, ao ver inúmeras pessoas que não têm o que comer, os fiéis se sensibilizam. E, nas igrejas, as pessoas sentem que conseguem se mobilizar para transformar a comunidade ao seu redor ou o mundo em que vivem. É o sentimento de que estamos fazendo alguma coisa para mudar aquela realidade;

• Por último, os fiéis vão à igreja porque querem vencer na vida. As pessoas não vão nos templos somente porque sentem falta de alguma coisa, elas vão pois encontram coisas ali.

 

Lívia alega que esses elementos encontrados em suas pesquisas de campo ajudam a compreender porque o campo religioso mudou e cresce a cada dia no Brasil.

O crescimento evangélico no Brasil

Mestra em Ciências da Religião e coordenadora da pesquisa Evangélicos, Política e Trabalho de Base, do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Angélica Tostes lançou uma cartilha com o objetivo de debater as diferentes expressões da fé popular evangélica. Para a teóloga, o segmento evangélico representa cerca de 30% da população brasileira, índice ainda mais alto em regiões periféricas. A publicação visa compreender esse fenômeno religioso e como ele se organiza na sociedade.

>> Confira a cartilha “Resistir com fé – evangélicos e trabalho de base” no link: bit.ly/RCC_06_05, assim como o artigo “A importância da escuta do campo evangélico”, publicado no blog Diálogos da Fé, da Carta Capital: bit.ly/RCC_06_06

Marcas do colonialismo nos direitos de viver as religiosidades

Para a pesquisadora Lívia, o pentecostalismo se destaca no poder do Espírito Santo, “nesse Deus que é vivo, que é poder, potência. Não é um Deus que está morto na cruz. Ele entra em seu corpo e te salva nessa vida. E o neopentecostalismo – que é um termo que eu não gosto de usar, porque acredito que o campo já mudou muito, e fazia sentido na década de 1990 – deu muita centralidade para a mídia e o demônio. E essa demonização vem de onde? Porque precisamos produzir um inimigo imaginário, pois se há uma batalha espiritual própria dessa teologia que divide o mundo entre o bom e o ruim, a parte má precisa ser dizimada.”

Essa teologia foi trazida dos EUA na década de 1970, onde nasce, e é aplicada no Brasil, e o demônio aqui, frisa Lívia, assume as características das religiões de matriz africana. “Hoje estou mais empenhada em pensar porque no Sul Global isso faz mais sentido do que no Norte Global. E para mim fica evidente que o colonialismo deixa marcas que podem se perpetuar por um tempo que não sabemos. Mas a produção de inimigos nos países que têm essa experiência é uma constante, nos quais os inimigos são os negros e a cultura negra.”

 

A integrante do ISER entende que a criação desses inimigos não se limita à atuação de algumas denominações pentecostais ou tão somente ao colonialismo, mas também pelo catolicismo. “Esses inimigos têm uma origem, e ela é representada pelas tradições africanas. A gente, enquanto nação, foi forjado na ideia de que sempre temos um inimigo a combater, e quando a igreja diz que esse inimigo tem cara e são as religiões africanas, todo esse racismo entranhado nas pessoas toma uma forma violenta.”

>> Conheça a plataforma de dados, reportagens e artigos, Religião e Poder: bit.ly/RCC_E6_07

Caminhos para o diálogo inter-religioso

Frei Marx Rodrigues aponta um elemento que aproxima as diferentes religiões: a crença em uma ou mais divindades. Essa concepção da existência de uma divindade, a qual norteia a vida das pessoas, congrega milhões de seres humanos. Logo, essa crença contribuiria para o diálogo entre diferentes credos.

“Outro ponto é enxergar como os valores fundamentais de diferentes religiões são comuns, como o valor da vida, da esperança, do amor, da crença, de ser capaz de acreditar mesmo que a vida esteja em intempéries. E é esse lugar comum que ajuda a unir as religiões num espaço inter-religioso que movimenta as pessoas, mais ainda do que as normas. É entender que, mesmo estando em diferentes religiões ou religiosidades, a maioria dessas pessoas têm valores em comum”, justifica o franciscano.

A coordenadora Lívia Reis argumenta que, no ISER, há a premissa em dialogar com as múltiplas religiões ou religiosidades, inclusive com os setores mais conservadores. Para além disso, ela ressalta algo importante que norteia o trabalho da organização: a valorização das diferenças. “Você não tem que respeitar o seu próximo, você tem que valorizar a existência dos diferentes. Precisamos valorizar as diferenças, e não transformá-las em inimigas e aniquilá-las.”

Por fim, o pastor Henrique Vieira frisa que, como religioso, cristão e discípulo de Jesus, não deseja que a sua fé seja instrumento de constrangimento em relação às demais pessoas. O seu desejo é que se construam pontes e conexões a serviço do bem comum. “Estou no parlamento para defender pautas comuns, como de justiça socioambiental e de direitos humanos. A minha fé se realiza à medida que eu me coloco ao lado dos pobres, oprimidos, famintos, dos sem terra, dos sem teto, das mulheres, dos indígenas, do povo negro.”

Na quinta edição da Revista Casa Comum foi produzida a reportagem Fé, política e diversidade: por uma democracia permeada pelo cuidado com a Casa Comum.

Vozes em ação

Em defesa da cultura dos povos tradicionais de matriz africana, que vai muito além da religião

A promoção de políticas públicas pela liberdade religiosa das populações afro-brasileiras tem sido o alvo da militância de lideranças como Adriana da Silva, Iyálorisà Adriana t’Ọmọlú.

Pedagoga e professora aposentada da rede pública de educação, a matriarca da Unidade Territorial Tradicional Ilé Àsẹ Ọmọlú Àti Òsún, atua no Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana (Fonsanpotma).

Foto: Arquivo pessoal

Nesse espaço, luta contra o racismo e em defesa dos direitos dos povos tradicionais de matriz africana, por meio de ações de formação e de incidência política, como a que resultou no Projeto de Lei 1.279/2022 (PL Makota Valdina), protocolado em maio na Câmara dos Deputados, que exige do Estado a promoção de políticas públicas de reparação histórica referente aos crimes contra a humanidade cometidos durante o período da escravidão.

“O racismo sistemático afeta o nosso sagrado para nos desumanizar, mas também nos limita ao religioso. Nossa luta passa pelo reconhecimento de nossas populações enquanto povos, com uma língua, um território, um sagrado, um alimento, uma indumentária, enfim, com uma cultura própria que orienta nosso modo de viver e de nos relacionar conosco mesmos, com o meio ambiente e com as pessoas.”

Adriana comemora avanços como a instituição do Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé (celebrado em 21 de março), primeira lei assinada pelo presidente Lula em seu novo mandato. A data, cujo objetivo é homenagear e dar visibilidade aos cultos que mais sofrem com o racismo religioso, coincide com o marco da Organização das Nações Unidas (ONU) pelo Dia Internacional contra a Discriminação Racial.

“Falar de religião no Brasil é falar de liberdade de crença, que está garantida em lei. Em um país cristão, nossa luta é pela legitimação dessa liberdade. Nossas origens são anteriores ao cristianismo”, afirma a Iyálorisà.

A Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais tem como principal objetivo promover o desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tradicionais, com ênfase no reconhecimento, fortalecimento e garantia dos seus direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais, com respeito e valorização à sua identidade, suas formas de organização e suas instituições. >> Saiba mais: bit.ly/RCC_E6_08

Iyá Gilda Oxum lidera primeira Coordenadoria Geral da Promoção de Liberdade Religiosa do MDHC

Com apenas 30 dias de nomeação, quando entrevistada pela Revista Casa Comum no final de julho de 2023, Iyá Gilda Oxum é a primeira coordenadora geral de Promoção da Liberdade Religiosa do Ministério de Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC). Como a pasta é nova e a oficialização do cargo é recente, a servidora pública explica que o caráter do espaço não é decisório, mas funciona como ponte entre a sociedade e o ministério.

“Nesse período, após a minha nomeação, só estamos apagando fogo. É muito bombardeio e informações atravessadas. A intenção, na verdade, é que, no segundo semestre, tenhamos um tempo para respirar e conhecer realmente as demandas ligadas à coordenadoria”, aponta Gilda, integrante da casa de axé Centro Cultural Ilê Odé Axé Omo Oxum, da Nação Keto, em São Paulo.”

Uma das demandas já assumidas pela pasta está ligada aos refugiados afegãos barrados no aeroporto de São Paulo. “A intolerância religiosa atinge muito esse grupo, já atendido por outros setores dentro do ministério. Também estamos lidando com casos de intolerância contra brasileiros residentes em outros países. A proposta é recebermos as denúncias e tentar a paz entre as pessoas”, afirma a coordenadora.

Foto: Arquivo pessoal

No caso dos refugiados do Afeganistão, segundo Gilda, uma das demandas eram os banhos para que pudessem fazer os seus rituais. Então, a coordenadoria entra em contato com o aeroporto para tentar solucionar o problema. Outro exemplo apontado pela servidora se refere às religiões de matriz africana, que enfrentam dificuldade, nos aeroportos, para transportar as ervas e santos para suas celebrações. Em ambos os casos, a coordenadoria pode recorrer ao diálogo com outros ministérios, órgãos ou autarquias do governo.to bombardeio e informações atravessadas. A intenção, na verdade, é que, no segundo semestre, tenhamos um tempo para respirar e conhecer realmente as demandas ligadas à coordenadoria”, aponta Gilda, integrante da casa de axé Centro Cultural Ilê Odé Axé Omo Oxum, da Nação Keto, em São Paulo.

 

“Não estamos aqui para ensinar nada às religiões, estamos aqui para dialogar, fazer pontes. No caso das denúncias, o Disque 100 será uma das principais fontes de recebimento de informações. Mas ainda está em reconstrução esse canal.”

fonte: https://revistacasacomum.com.br/religioes-como-espacos-para-o-exercicio-politico-do-cuidado/

 


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