Estudo resgata como narrativas anticomunistas e a difusão de uma atmosfera de medo ligada ao movimento político estiveram presentes nas páginas dos jornais O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo e O Globo durante a ditadura militar
Texto: Ivanir Ferreira
Arte: Joyce Tenório*
Pesquisa analisou publicações dos anos de 1964 a 1968, antes do AI-5, quando a imprensa gozava de relativa liberdade e ainda estava alinhada com a ditadura militar - Fotomontagem de Jornal da USP com imagens retiradas da pesquisa "A construção do ‘inimigo interno’ e o papel da grande mídia brasileira nos anos de 1964-1968: O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo e O Globo"
Durante a conspiração do golpe militar, em março de 1964, até dezembro de 1968, que corresponde aos primeiros anos do regime militar brasileiro, a imprensa brasileira contribuiu para a disseminação de narrativas anticomunistas, criando um “imaginário inimigo interno da nação”, e uma atmosfera de medo ligada ao movimento político. Essa é a análise de uma pesquisa do Departamento de História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, que avaliou o conteúdo de três jornais brasileiros de grande circulação – O Estado de S. Paulo, a Folha de S. Paulo e O Globo. De acordo com o trabalho, parte da imprensa estava alinhada ao novo governo, criando narrativas para justificar ações repressoras contra opositores do regime.
A dissertação A construção do “inimigo interno” e o papel da grande mídia brasileira nos anos de 1964-1968: O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo e O Globo buscou compreender a construção da narrativa anticomunista presente nos jornais da grande mídia brasileira, subdividida por temas: educação, cultura e igreja.
Nas edições de 1964, a pesquisa abrangeu todo o conteúdo das edições dos jornais paulistas que circulavam no segundo domingo do mês, quando as publicações saíam com maior número de páginas e era próximo do dia de pagamento. No jornal carioca O Globo, que não tinha edição aos domingos, as matérias analisadas foram as publicadas aos sábados. Nos anos subsequentes ao golpe (1965, 1966, 1967 e 1968), as análises focaram apenas nos editoriais.
Segundo a autora da pesquisa, a historiadora Suelen Cristina Marcelino Campos, o anticomunismo esteve presente nas páginas dos jornais durante todo o período estudado por ela. As três publicações adotaram uma postura convergente em relação às narrativas do “medo anticomunista, que, com diferentes tons discursivos, tinham a intenção de projetar a existência de um ‘inimigo interno’ no imaginário da população, que estaria à espreita” para invadir o território brasileiro e cercear todos os direitos das pessoas. “Tais discursos produzidos e reproduzidos, em alguma medida, introjetaram esse pensamento na sociedade”, relata a pesquisadora.
“Os achados me permitiram compreender outra face do autoritarismo do regime militar, que, através das mídias e de suas ferramentas persuasivas, produziu medo, instabilidade e uma espécie de sufocamento dos movimentos oposicionistas, que passaram a ser vistos como a representação do comunismo presente no solo brasileiro”, diz.
Suelen Campos explica que o recorte da pesquisa foi entre os anos de 1964 e 1968 porque até aquele momento a imprensa gozava de relativa liberdade e ainda estava alinhada com a ditadura militar. Em dezembro de 1968, sob o comando do presidente Costa e Silva, os militares fecharam ainda mais o regime editando o mais duro Ato Institucional, o de número 5, quando foi instituída censura prévia à imprensa e às produções artísticas, além de resultar no fechamento do Congresso Nacional e das assembleias legislativas dos estados. “À medida que as ações autoritárias do regime militar se intensificaram, houve o rompimento da ligação dos donos de jornais por não mais representar os interesses das classes representadas pelos meios de comunicação”, diz.
Cenário político-social do Brasil
A historiadora lembra do cenário político e social brasileiro da época. Quem estava no comando da nação era o presidente eleito João Goulart, o Jango, que tinha assumido o posto em 1961, depois da renúncia de Jânio Quadros, de quem era vice-presidente. Jango foi deposto em 31 de março de 1964 pelo golpe militar, com o apoio de amplos setores da sociedade civil, especialmente o empresariado e a grande mídia.
Jango já vinha sofrendo forte oposição das Forças Armadas, pois tinha ligações com os sindicatos, com políticos da esquerda e, principalmente, porque se encontrava na China no momento da renúncia de Jânio. Na Presidência, pautou as chamadas Reformas de Base (reformas estruturais que incluíam os setores educacional, fiscal, político, urbano e agrário) quando passou a enfrentar ainda mais pressões da ala conservadora da sociedade brasileira, culminando na sua deposição do cargo e no golpe civil-militar de 1964.
Articulação do golpe
Nos três meses que antecederam o golpe, Suelen verificou um crescente tom alarmista nos jornais com a construção de narrativas inflamadas contra o comunismo e textos que conclamavam a urgência de uma resolução organizacional contra o “perigo” que estaria ameaçando o País. Havia o manejo de palavras e de expressões que condenavam a existência de um “inimigo interno”, associando o comunismo à “corrupção”, à “infiltração deles na esfera pública” e “à imagem de João Goulart que era mal vista pelos militares”.
Neste contexto, o Muro de Berlim, que foi erguido em 1961 para separar a Alemanha Ocidental (capitalista) da Alemanha Oriental (socialista), foi tema explorado pelos jornais para criticar a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), para falar da má gestão do comunismo e para reforçar que o inimigo externo estaria avançando pelo mundo e poderia chegar ao Brasil. Uma matéria sob o título A sombria realidade do outro lado do muro da vergonha relatava distorcidamente os problemas enfrentados pela população sob dominação comunista.
Leitor amigo: você acredita naquela história de março, paridade monetária, etc.? Sabia que do lado de cá do muro há 168 cruzes de pessoas que viviam do lado oriental e foram metralhadas ao pular o obstáculo? Isso, sem contar as que morreram do lado de lá, cujo número segundo cálculos falhos anda pela casa dos dois mil. E sem falar das 13 mil mulheres separadas de seus maridos…
Trecho da matéria “A sombria realidade do outro lado do muro da vergonha”, O Estado de S. Paulo, 2 de fevereiro de 1964, Primeiro Caderno [página 61 da dissertação de mestrado]
Neste mesmo período, os jornais tentavam desfigurar a imagem de Jango na esfera pública e privada. Suelen Campos diz que durante sua pesquisa encontrou uma matéria publicada no jornal O Globo, que tinha como figura central Maria Thereza Goulart, a esposa do então presidente. O texto trazia o relato de sua maquiadora, que costumava atender a primeira dama. Ela ressaltava as preferências de Maria Thereza por maquiagem estadunidense e seu desejo de se manter distante das agitações políticas, em uma clara demonstração de que Jango estaria sozinho e não tinha apoio nem mesmo da própria esposa.
Sua maior queixa, continuava a matéria, “era não viver como gostaria, sendo ela própria, e distante da agitação que na maior parte do tempo a rodeava. Mas nos dias calmos, longe das pessoas e dos problemas, conseguia ser Maria Thereza, diferente da moça séria que aparecia nas fotos das ocasiões formais”.
… sua maior queixa é a de não viver como gostaria, sendo ela própria, e distante da agitação que na maior parte do tempo a rodeava. Mas nos dias calmos, longe das pessoas e dos problemas da Primeira Dama, consegue ser Maria Teresa, diferente daquela moça série que aparece nas fotos das ocasiões formais que enfrenta aqui fora…
Trecho da matéria “Primeira Dama vista de perto”, O Globo, 11 de janeiro de 1964. Ela, p. 3 [página 70 da dissertação]
Educação
Segundo o estudo, a educação, enquanto arcabouço de ideias, foi desacreditada e achincalhada no governo militar. Naquela época, os jornais mostravam que as raízes do comunismo estavam instaladas nos ambientes escolares e nos movimentos estudantis. Um editorial sobre um episódio que envolveu uma mobilização de estudantes da Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi), do Rio de Janeiro, é um exemplo desse discurso tendencioso.
O editorial de O Globo de 11 de janeiro de 1964 dava conta de que um levante comunista estava entranhado nos meios universitários para cooptar alunos dentro das universidades.
[…] ora, estes professores vão impregnando nas mentes dos vestibulandos com as teorias comunizantes. Quando os alunos chegam ao primeiro ano da Faculdade, já estão preparados para continuar a missão de expandir as teses aprendidas nos cursos pré-vestibulares, e na sua inconsciência se tornam elementos da mais alta importância no processo de desmoralização do regime democrático […]
Trecho do editorial “O Globo", 11 de janeiro de 1964 [página 103 da dissertação]
A Folha de S. Paulo, de 13 de outubro de 1968, na p. 4, publicou uma charge cobrando pulso firme do governo militar para combater agentes externos, os comunistas, que estavam colocando lenha na fogueira que se acendeu e estava dominando o País.
Cultura
Em relação à cultura, os jornais seguiam os preceitos da Doutrina de Segurança Nacional (DNS), decreto-lei 314/68 que surgiu em consequência da Guerra Fria, cujo objetivo era identificar e eliminar todos aqueles que questionavam e criticavam o regime estabelecido. “Controlando a cultura era o melhor meio para alcançar e manter os objetivos nacionais”, preconizava a DNS.
Nas editorias analisadas, se observava uma supervalorização da cultura hegemônica norte-americana e uma busca pelo alinhamento cultural entre o Brasil e os Estados Unidos. Nos jornais, o país norte-americano e a figura do presidente estadunidense apareciam sempre como representantes do bem. Por outro lado, movimentos de contracultura como o Hippie, que defendia uma construção social diferente, plural e libertária, passaram a ser marginalizados .
A obra produzida por Marx O Capital também sofreu duras críticas dos editoriais jornalísticos, na tentativa de mostrar que a esquerda vendia ilusões às classes trabalhadoras. O Estado de S. Paulo, de 9 de junho de 1968, publicou o editorial “Trabalho e imaginação” traçando um paralelo entre o Brasil e a França que tratava dos perigos das imaginações criadas pela esquerda nas conquistas trabalhistas.
Não se iludam. Porém, os franceses, nem nos iludamos com meros reforços salariais ou um maior alargamento no plano das vantagens. Tudo está a demonstrar que, se é exato que a participação crescente dos trabalhadores nos benefícios de uma sociedade em pleno desenvolvimento esvazia o proletariado do seu impulso revolucionário – desmentindo, desse modo, os vaticínios apocalípticos de Marx…
Editorial de OESP, de 9 de junho de 1968, p. 3 [página 132 da dissertação]
Igreja Católica
A pesquisa lembra que o anticomunismo foi amplamente divulgado e propagado pela Igreja Católica. Pela ótica da instituição religiosa, o sistema colocaria em risco o seu rebanho por acreditar que o comunismo defendia o ateísmo em detrimento de outras crenças, relata o estudo.
Temendo o comunismo, a imprensa apoiou a tese da igreja de rechaçar o mal do solo brasileiro. A edição de 12 de janeiro de 1964 de O Estado de S. Paulo publicava matérias sobre as encíclicas papais, que eram documentos direcionados aos bispos e cardeais. Sob o título Novas esperanças e responsabilidades, foi noticiado o discurso do Papa Paulo VI, no qual ele afirmava a necessidade de os países cristãos se unirem para combater “o mal”, se referindo ao comunismo.
Outra matéria, em tom alarmista, foi publicada no mês de março de 1964. O título era Bispos da Bahia denunciam clima de subversão no País. O texto se referia a cartas redigidas pelos bispos da Bahia dirigidas aos fiéis sobre a temática da crescente onda subversiva presente no Brasil e conclamava o povo para defender as instituições religiosas.
Por volta de 1967, com a ampliação da chamada esquerda católica, dos Movimentos de Educação de Base (MEB) e da Ação Popular (AP), começa a haver uma preocupação do governo militar em relação à infiltração comunista nas instituições religiosas, quando eles passaram também a ser perseguidos, relata a pesquisadora. Esse novo tom aparece nos editoriais analisados. Um deles aponta os problemas das novas estruturas das celebrações e posturas de padres e freiras.
Tempos atrás, dez anos apenas, havia uma sensível diferença entre o ambiente de um botequim e o de um templo católico na hora da missa. A diferença atenua-se e certos padres jovens estão caprichando para tornar desprezível a diferença. Já me queixei, mas de uma vez, da vulgarização do linguajar usado nos sermões dos novos padres […] Por enquanto não se usam palavrões nem se injuria a mão do sacerdote. Isto virá com o tempo. As freiras já lêem Marcuse e já vão ao teatro ouvir os palavrões de Roda Viva. Estou prevendo debates sobre amor livre e sobre a pílula em plena missa ou explosão de ódio contra os Estados Unidos na hora em que o padre falar em paz…
Trecho do editorial “Necessidade dos contrastes” publicado em O Globo, 7 de setembro de 1968, p. 2 [página 141 da dissertação]
O anticomunismo hoje nas narrativas conservadoras
Perguntada se os discursos anticomunistas não teriam sido apenas atualizados e reeditados para novos formatos para se adequarem às novas tecnologias, Suelen Campos explica que não se pode correr o risco do anacronismo, ou seja, de comparar fatos históricos em temporalidades distintas, mas, segundo ela, é possível dizer que o anticomunismo está e sempre esteve presente no imaginário popular brasileiro, carregado de simbologias, identidades, crenças e memórias. “E por se encontrar nessa condição, é muito difícil de ser combatido”, diz.
“O imaginário popular é um artifício utilizado por quem está no poder para dar sentido a uma narrativa que fabrica mitos, monumentos, identidades e fronteiras que demarcam diferenças entre o nós e o outro”, descreve. “Para combatê-lo, é necessário criar novas bibliografias e realizar debates sobre o assunto para superar a mentalidade”, sugere.
Para a historiadora e orientadora da pesquisa, a professora Maria Aparecida de Aquino, da FFLCH, “combater o comunismo foi um ponto de inflexão imposto pelo regime militar” e afirma que “a sociedade brasileira é conservadora e o anticomunismo, ainda nos dias de hoje, ancora discursos ideológicos e manifestações populares conservadoras”.
Sobre a condição da imprensa na atualidade, a historiadora acredita que ela seja livre e que ao longo do tempo vem contribuindo para a consolidação da democracia brasileira.
Porém, recomenda às pessoas que tenham um olhar crítico sobre qualquer conteúdo que for consumido, porque, por trás de cada informação veiculada, existe sempre uma intenção que nem sempre está explícita, avalia.
Mais informações: Suelen Cristina Marcelino de Campos, e-mail