País naturalizou a desocupação e a precariedade. Mas há alternativa: rejeitar a condição subalterna; colocar as novas tecnologias a serviço das maiorias — em especial da Economia Solidária. Outras Palavras abre investigação sobre o tema
Publicado 23/10/2023 às 20:02 - Atualizado 24/10/2023 às 19:40
Por Ricardo T. Neder, Rafael Grohman, Joaquim Melo, Camila Capacle, Letícia P. Masson, Julice Salvagni, Flávio Chedid, Aline Os, Antonio S. Cangiano, Roberto Moraes, Celso A. Alvear eDaniel Santini
Título original:
Para sair do labirinto do desemprego no Brasil: autogestão do trabalho com plataforma digital como base da Economia Popular e Solidária1
O golpe de 2016 atingiu políticas de emprego, salário e relações trabalhistas. Os governos de Michel Temer (2016-2018) e Jair Bolsonaro (2019-2022) cortaram mecanismos de proteção social e restringiram direitos. Agravaram uma crise que é econômica e bastante concreta, mas também simbólica pois o desemprego assumiu uma normalidade bizarra, em meio a uma crise de esperança na qual as condições precárias foram naturalizadas e dadas como certa.
O movimento sindical, os movimentos sociais e a sociedade civil vão dar a volta por cima e conseguir elaborar alternativas e construir caminhos para o Brasil? O momento pede não apenas regulamentação das novas formas de trabalho, mas sobretudo uma abordagem propositiva. É preciso projetação para a defesa de formas de organização do trabalho que integrem políticas ativas de geração de trabalho qualificado, renda e ocupação digna na economia popular rural e urbana.
Trata-se da incorporação das transições para relações mediadas por plataforma digital, combinadas com políticas de qualificação e renda mediante uma economia que resulte em impactos positivos profundos, tanto em termos ambientais quanto de inclusão social.
Estas transições e novos modelos podem ser construídos mediante a união de forças do movimento sindical e dos movimentos sociais em diálogo com diferentes níveis de governo. Devem ser seus principais protagonistas, pois têm a legitimidade para dar direcionamento de longo prazo e cobrar políticas de estímulo ao que chamamos de Economia Solidária 2.02. Ou seja, incentivar o uso de tecnologia para, a partir do acúmulo histórico que o Brasil tem na Economia Solidária, fomentar novos modelos de cooperação e organização econômica pensados não apenas a partir do lucro. Políticas como, para citar um exemplo, o fortalecimento das inversões mediante compras públicas em organizações produtivas populares (OPPs). Platraforma digital não é um santo milagreiro, mas ajuda!
Mais do que isto, defendemos aqui o aumento da capacidade de projetarmos modelos alternativos e colaborativos de redes com estruturas sociais e digitais coletivas que levem à criação de valor fora do ambiente das gigantes e predatórias corporações de tecnologia. Nesses espaços, híbridos de estruturas sociais e digitais coletivos, vários elementos podem ser inseridos para além das plataformas digitais coletivas (moradia, educação, qualificação, cultura, transferências sociais; acesso a crédito e assessoria sociotécnica para circuitos populares da economia, etc).
Esse tipo de apoio só pode prosperar se as cooperativas, associações e coletivos de economia solidária foram reconhecidas como atores legítimos, recebendo incentivos e estímulo para avançar com projetos alternativos. A economia solidaria não pode ser encarada como periferica, local, ou invisivel no contexto do desenvolvimento economico e tecnologico de um pais – como defendem Veronica Gago e colegas em livro recente.
Para elaborar e construir soluções são necessários modos de interação e gestão compartilhada entre movimentos sociais com suas demandas populares e desenvolvedores de software livre para Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs). Articular tais segmentos é o desafio para o desenvolvimento de algoritmos com protagonismo social em projetos capazes de operar em favor do bem público – esse é o melhor caminho para garantir a soberania digital e avançar com empreendimentos econômicos solidários no Brasil.
Ampliar espaço para organização coletiva
As OPPS demandam uma reforma oficial ousada e adequada com titulação fiscal, creditícia, securitária, previdenciária e trabalhista a exemplo do E-SOCIAL (modelo avançado desenvolvido no governo Lula 2 pelos técnicos da empresa pública SERPRO que reúne escrituração digital das obrigações fiscais, previdenciárias e trabalhistas para as relações entre empregados e empregadores domésticos).
Por que não seria viável um modelo do tipo E-ECOPOPSOL semelhante ao E-SOCIAL para reconhecer oficialmente o que de fato, já ocorre? Que é a existência de milhões destas OPPs como categoria própria de organização econômica (que seriam oficialmente separadas da camada de 5,5 milhões de PMEs – Pequena e Micro Empresas) nos variados circuitos populares da economia que abarcam desde agricultores e assentados da reforma agrária, trabalhadores da reciclagem, alimentação, têxtil e vestuário, pequena e micro-industrias, oficinas de todos os tipos, até os entregadores e motoristas sob plataformas de trabalho, hoje foco de atenção exclusiva do GT criado pelo governo para debater o tema. Por que não criar condições e abrir espaço para pequenos coletivos de trabalhadores e trabalhadores, hoje atuando na informalidade, poderem se formalizar e fazer parte do ecossistema nacional de cooperativas nacional? Ou a política nacional deve beneficiar apenas cooperativas gigantes, como as de crédito?
O cenário do trabalho no mundo mudou e segue mudando com velocidade. Tendências recentes apontam que as plataformas de trabalho remoto configuram uma das características contemporâneas da reestruturação do capitalismo. Gigantes transnacionais como Microsoft, Amazon, Meta/Facebook e as antigas Basf, Syngenta e Bayer apresentam em comum investimentos estratégicos para tornar as plataformas digitais elementos centrais na reestruturação do mundo do trabalho em todos os segmentos produtivos e de serviços ondem atuam, no campo e nas cidades. As tecnologias emergentes reunidas nas Plataformas Digitais (PDs) têm aumentado, progressivamente, o seu peso na economia das nações, mas não no número de pessoas envolvidas. Em 2016, nos EUA, o setor de tecnologia possuía apenas 6,8% do valor agregado das empresas e 2,5% da força laboral. Mesmo no relativamente desindustrializado EUA, o setor de tecnologia emprega quatro vezes menos que a indústria. No Reino Unido, quase três vezes menos empregados que na produção industrial. Em suma, as tecnologias emergentes têm uma enorme e veloz tendência de produzir de forma simultânea explosão, exclusão e aumento da competitividade no sistema [10].Os oligopólios também estão concentrados em termos espaciais (MORAES, 2020).
Metade (49) da lista total das Top 100 (FT) estão localizadas nos EUA; outras 24 na China e outras 27 espalhadas pela Europa e Ásia. Dentro desse sistema hegemonicamente financeiro e tecnológico (dois setores com bens e fluxos intangíveis que se encontram), a América Latina se torna ainda mais periferia, vendo a sua dependência se ampliar em termos de infraestruturas tecnológicas, como consumidora de pacotes que controlam seu imenso e desejado mercado. O que mostra os impactos do gigantismo do setor de tecnologia e seus espaços no território, para além da centralização setorial que o uso expandido das Plataformas Digitais deixa evidente (MORAES, 20203).
Sabemos que há estudos co-relacionando tendências de posicionamento político e visão de mundo decorrentes da radicalização de modelos de negócios baseados no acirramento da competição, do livre mercado e de um tipo de empreendedorismo profundamente individualista com resultados que apontam que o discurso conservador é causa e consequência do capitalismo de plataforma que opera sob a batuta do neoliberalismo desde abajo, manipulando novas dinâmicas sociais estruturadas no vácuo de proteção social deixado pelo Estado4. As centrais sindicais têm participação assegurada nesse processo de ampliação dos direitos sociais para pessoal dentro e fora dos contratos de trabalho, pois a transição tecnológica reúne várias camadas de trabalhadore/as – todos e todas sob uma mesma plataforma não importa se tem relação trabalhista ou não5. Empresas públicas como o SERPRO e DATAPREV (que implantaram o E-SOCIAL no segundo governo Lula) poderão ser os laboratórios de protótipos.
A necessidade de imaginar
Por estas e outras razões o movimento trabalhista depara-se com uma esfinge que pode devorá-lo se não situar o mundo do trabalho centralmente nas estratégias de desenvolvimento econômico, socioambiental e do uso das plataformas para gerar e distribuir trabalho e renda. Seja no campo, seja nas cidades, em atividades formais ou nos circuitos populares da economia, em todos os segmentos que envolvem trabalho dá-se o mesmo fenômeno: a reprodução social das famílias não tem como ser equacionada no Brasil sem políticas públicas adequadas.
É preciso ousar, imaginar, construir caminhos alternativos. Os governos têm o dever de garantir espaço para essa nova Economia Solidária 2.0 florescer. Movimentos sociais e sindicatos têm a oportunidade de criar e avançar com novas formas de organização social e econômica. Não preencher esse espaço é arriscado, o poder não aceita vácuo.
Quando deixadas sob a hegemonia do Capital, esta reprodução social fratura a sociedade e a economia, com empresas e governo operando sob a forma de assalariamento, e a partir de 2016 de forma intensa como acesso ao trabalho remunerado temporário. O andar de cima coloniza e extrai valores dos circuitos populares da economia recorrendo ora ao trabalho precarizado sob diferentes modalidades, ora ainda por meio das relações de base familiar e comunitária que garantem o mínimo, básico para a sobrevivência.
Em períodos de crise dos circuitos empresariais e dos investimentos do Estado, como o que o Brasil atravessou de 2019 a 2022, os circuitos populares da economia perdem suas reservas de autoproteção e aumenta vertiginosamente o risco de fome e miséria. Os indicadores sociais e econômicos são a expressão de uma crise de múltiplas dimensões.
Uma delas atende pelo nome de precarização das relações trabalhistas e sua face relacionada às estratégias empresariais de impor um modelo de negócio – o do trabalho remoto mediante plataformas digitais ao vasto contingente de pessoas que dependem das trocas nos circuitos populares da economia.
Estas plataformas são controladas quase na sua totalidade por corporações e empresários, que se aproveitaram da desorganização do metabolismo social, devido a uma gestão de governo que vitimou milhares de trabalhadore/as e familiares, afetando sobretudo o tecido social das camadas mais pobres. No mundo do trabalho deu-se em paralelo o aprofundamento do desemprego e da subocupação com a desregulamentação trabalhista promovida com o lobby de grandes empresas.
A ausência de governo e a retirada de cena dos mecanismos de mediação com a extinção do Ministério do Trabalho e o da Previdência – provocaram a vácuo necessário aos empresários para turbinar o capitalismo de plataforma.
Dados preliminares estimam em 2,5 milhões de trabalhadores e trabalhadoras foram atraídos e subordinados a um modelo de negócios fundamentado na precarização e desregulamentação, cujo gerenciamento se tornou viável devido aos dispositivos orientados pela tecnologia de algoritmos opacos e literalmente nas “nuvens” que serve como verniz tecnológico para reativação de práticas de exploração há muito superadas.
A crise econômica já existente no país no período pré-pandemia foi agravada pela necessidade de isolamento social, gerando maior desemprego, de modo que o trabalhadores passaram a ser obrigados a buscar trabalho, seja através da clássica informalidade, ou como novos “servidores” do trabalho de plataformas a partir de empresasPara explicitar essas questões é necessário ampliar e focalizar algumas linhas de atuação estratégicas. É o que propomos neste texto inicial, um convite para pensar problemas e imaginar alternativas.
Esta serie de artigos está organizada em oito partes:
1. Plataformismo: outra etapa do Modo de Produção capitalista?
A revisão das tendências econômicas, jurídicas, psicossociais, culturais e sociológicas da penetração do capitalismo de plataforma no Brasil para identificar sua relação com as lógicas de exclusão e de inclusão produtiva e atividades econômicas de contingentes consideráveis da PIA (População em Idade Ativa)
2. Uma proposta de política economia popular e solidária começa pelo mapeamento e cartografia
Realizar pesquisa nacional sobre cooperativismo de plataforma, identificando especificidades regionais e tipologias de experiências que utilizam as plataformas digitais para alavancar projetos cooperativos. A partir dessa pesquisa promover encontros entre as iniciativas mapeadas, poder público, instituições da sociedade civil, movimentos sindicais e pesquisadores da temática com intuito de construir políticas públicas voltadas para o setor entre produtores e consumidores, associados e gestores de associações e cooperativas solidárias
3. Se não trabalho me matam, se trabalho me acabo! (direito e saúde dos trabalhadores de Plataforma).
Em parceria com a Fiocruz, que há anos estuda os efeitos na saúde dos trabalhadores de plataforma, promover debates sobre esse tema com pesquisadores e atores sociais afetados pelo plataformismo.
4. Centrais sindicais, sindicatos e Confederações podem assumir as lutas dos movimentos pela Economia Popular e Soliudária?
Com as centrais sindicais e a Unisol Brasil, promover seminários para discutir a incorporação das pautas relacionadas aos direitos dos trabalhadores de plataforma nas lutas sindicais.
5. A luta dos movimentos sociais pela construção da visibilidade da Economia Popular e Solidária
Como chegar ao cooperativismo solidário de plataforma: Como resultado do mapeamento nacional de cooperativismo de plataforma, promover encontro com as cooperativas/associações mapeadas para disuctir os resultados encontrar e encaminhar propostas de política pública para o setor.
6. Políticas públicas para Eco Pop e Ecosol: como criar uma estratégia a partir da plataforma digital
Incorporar os gestores públicos no debate com os movimentos sociais e sindicais para elaborar propostas participativas de programas voltados para o cooperativismo de plataforma
7. Software livre para apoio à gestão de empreendimentos da economia solidária
Em parceria com a cooperativa EITA, que atua com desenvolvimento de software livre para movimentos sociais, desenvolver uma ferramenta para facilitar a gestão de cooperativas
8. De volta ao princípio: crédito e financiamento para alavancagem da Economia Popular e Solidária?
Financeirização das experiências associativas e de cooperativismo solidário em plataformas: Com apoio do Banco Palmas, promover troca de experiencias sobre capilarização do crédito e da renda mediante ferramentas digitais via bancos comunitários de desenvolvimento local
1Apoio CNPq Chamada nº 40/2022 – Linha 4B – Projetos em Rede – Políticas públicas para a inovação e para o desenvolvimento econômico sustentável. Pro-Humanidades 2022 – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. (proc. 4208772/2022-1).
2Celso Alvear. Ricardo Neder e Daniel Santini. – “Economia Solidaria 2.0: por um cooperativismo de plataforma solidário”. Disponível em: https://revista.ibict.br/p2p/article/view/6268
3. Roberto Moraes, “Commoditificação de dados, concentração econômica e controle político como elementos da autofagia do capitalismo de plataforma”. Revista Comciencia – 16 set 2020.
4 Fernanda Canofre. “Trabalho por app pode estar empurrando pessoas para a direita, diz antropóloga”. Folha de S. Paulo, 21 março 2022.. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/03/trabalho-por-app-pode-estar-empurrandopessoas-para-a-direita-diz-antropologa.shtml. Acesso em 26 jul. 2022
5 Clemente Ganz Lucio. “Transformações no mundo do trabalho exigem respostas inovadoras”.Poder 360. Disponível em: https://www.poder360.com.br/opiniao/transformacoes-no-mundodo-trabalho-exigem-respostas-inovadoras-escreve-clemente-ganz-lucio. Acesso em: 20 mar 2023